EXPOSIÇÕES
Cem anos de figura humana
A representação da figura humana foi, desde sempre, dominante na pintura e na escultura desde que a arte começou a ser reconhecida como arte, até aos dias de hoje. Os últimos anos foram pródigos na radicalização dos modos de ver e de como os artistas dão a ver o corpo humano. Gente, mostra cem anos de representação humana, de Amadeo Souza-Cardoso a Pedro A. H. Paixão, na colecção Manuel Brito, um marchand culto e informado. Até 19 de Março 2017, no Centro de Arte Manuel Brito, Palácio Anjos, Algés.
Eu não Evoluo, Viajo
Uma exposição que não pode deixar de ver. O que se poderia dizer é bem melhor dito por José Luís Porfírio (JLP) a sageza, a lucidez, a clareza com que a sabe analisar e nos introduz no seu conhecimento das artes. Aqui inserimos o texto que integral o Expresso, onde JLP escreve com regularidade, publicou parcialmente,
OS NOVELOS DO SENTIDO
«Obra que exige, para um futuro que se deseja próximo, um trabalho de apresentação e de leitura mais vasto, se possível com um comissário jovem que respeite a memória, mas que trabalhe uma história que está por fazer» (José Escada: Repetir Transformando, Expresso 6/8/2011).
Este desejo formulado vai para cinco anos encontrou agora uma cabal resposta na exposição do Museu Gulbenkian acrescentado com o acervo do extinto Centro de Arte Moderna. Temos uma exposição e um catálogo preocupado em ir ao encontro da história de José Escada (1934-1980), da sua obra em 205 exemplos entre 1951 e 1980 – praticamente do mesmo tamanho da antologia improvisada no ano da sua morte, mas com outra organização – dos seus escritos e entrevistas, bem como do modo como a crítica sua contemporânea o recebeu com textos fundamentais de José-Augusto França, Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes e Nelson Di Maggio, num catálogo que é um excelente prolongamento da exposição.
A mostra organiza-se em cinco tramos onde a cronologia passa, mas nem sempre manda porque não deve mandar, a não ser nas singulares obras do final da vida do pintor, já que vista no seu conjunto há uma grande unidade na investigação plástica onde uma figuração constante é dissimulada, obliterada, ou transformada no correr dos tempos desde a figurações sacras dos anos cinquenta aos nós que são corpos enlaçados de setenta.
«Joie de vivre» (Alegria de viver) é o primeiro tramo iluminado por uma pintura agora descoberta destinada a uma fabrica de tabaco, mas essa alegria vem de trás, e quer no desenho quer na pintura busca uma espécie de informe onde a mancha no desenho e a cor na pintura parecem imigrar para dentro do suporte. Já no segundo tramo se dá o inverso pois a cor e forma parecem sair do suporte como num vitral, enquanto em Metamorfoses, tramo terceiro, são essas mesmas formas que ganham corpo é o suporte que se recorta para ganhar uma terceira dimensão para a pintura de transformar em relevo em cartão, plástico ou metal. «As nossas Amarras», o quarto tramo tem as cordas, os nós, os laços que escondem ou manifestam corpos por vezes presos em estranhas redes ou teias.
Finalmente a esplendorosa obra final vista «Da minha Janela» onde o pintor precocemente envelhecido parece querer reter o que lhe está mais próximo o quarto onde trabalha, a janela sobre o Tejo, os cães que repetidamente retrata e o Alto de Santo Amaro com a capela, as velhas oliveiras que são outros tantos nós e laços (e, aqui faltam na exposição alguns desenhos excelentes dos seus troncos) num agarrar ao concreto que a doença e a proximidade da morte lhe deram.
Há em toda a obra de José Escada uma permanente busca de sentido que atravessa os territórios da não figuração e do informal, tão discutidos nos anos da sua formação, e se torna numa contante do seu trabalho que desagua no início de oitenta no assumir de uma inocência renovada do espanto perante o mundo mais próximo onde os enleios e novelos do sentido se resolvem pelo lado do VER intensamente. No Museu Calouste Gulbenkian até 31 de Outubro.
Miró
Enfim, o novelo da saga Miró chega ao fim, fica em Serralves. Não é um dos pintores que esteja nem na primeira nem na segunda linha dos meus eleitos. Mal seria que as minhas preferências, os meus gostos pessoais contaminassem a apreciação crítica numa variante dessa coisa abominável que são as políticas do gosto.
Miró é um importante pintor da radicalidade moderna, da modernidade que Octávio Paz definiu de forma precisa: «a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora: a arte moderna não é somente filha da idade crítica, é crítica de si-própria». O que está bem presente nesta exposição de Miró com obras de várias técnicas, temporalmente muito distantes. Há uma evidente irregularidade entre elas o que torna mais evidente o modo como o pintor com as suas formas abstractas se apropria dos automatismos introduzidos pelos surrealistas e como deriva das propostas sobre cor iniciadas com Cézanne e Matisse, o que é particularmente interessante e dá maior relevância a esse acervo.
Desinteressante foram as notícias televisivas que se centravam mais nas mundanidades e no valor monetário da colecção, no que valeria se fosse vendida em bloco ou peça a peça. Bolas! O Jeff Koons atinge valores astronómicos e a sua obra é, na esmagadora generalidade, uma m****. A repescagem noticiosa dos lances da tentativa de venda pelo governo PSD-CDS eram um bródio. Realce para um Barreto Xavier entrincheirado em explicações fatelas e para as intervenções da Maria Luís Albuquerque a vender chita a metro na retrosaria da austeridade. Uma comerciante de arroz do Brecht: não sei o que é o arroz, nunca vi o arroz, do arroz só sei o preço.
Festival do Desassossego
Em especial para os nossos leitores em França e países de língua francesa limítrofes.
Paris está a ser o palco, na delegação da Fundação Gulbenkian, desde 4 de Outubro e até 18 de Dezembro, de uma exposição com a biblioteca particular de Fernando Pessoa. São mostrados livros oferecidos ou adquiridos e lidos por Fernando Pessoa, com as notas que o escritor deixou nas margens, capas, contracapas, por vezes suporte de poemas completos, manuscritos a lápis.
O Festival Do Desassossego integra um ciclo de conferências e outras exposições com trabalhos de artistas contemporâneos, como Fernando Calhau, João Onofre, Dora Garcia e Pierre Leguillon, projecção de filmes cuja temática se centra entre o desconhecido e a utopia, cinco séculos depois da publicação de «Utopia» de Thomas Moore.
A viagem até Paris de grande parte da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa é um acontecimento inédito e tem a colaboração institucional da Fundação Calouste Gulbenkian.
maat
Dia 4, inaugurou um novo museu: o maat, Museu de Artes, Arquitectura, Tecnologia na área da Central Eléctrica da EDP em Belém, promovido pela fundação dessa empresa. Inaugurações são sempre o acotovelar nas ondas entre conhecidos e desconhecidos. Pouco se consegue ver. A dominante são as fragâncias a pairar sobre deambular com ou sem copo na mão a apertar mãos. A exposição, rarefeita naquele espaço contínuo em curva que é dominante e interessante, estava com volume alto misturando os sons do que era dado ver de forma bastante imperfeita pelo atropelamento entre encontros e desencontros de quem por lá andava.
Deixar pousar a poeira da curiosidade para verificar como se vão resolver os condicionalismos que aquela arquitectura impõe. A vista para o rio tem um percurso magnifico, os projectistas tiveram clara intenção de a valorizar, mas a motivação principal para visitar um museu não será essa.
TEATRO
A Embarcação do Inferno
Centro Dramático de Évora (Cendrev) e A Escola da Noite, de Coimbra, estão a co-produzir Embarcação do Inferno, peça baseada no mais conhecido e emblemático texto de Gil Vicente, o Auto da Barca do Inferno, no ano em que se assinalam os 500 anos sobre a primeira apresentação deste texto de Gil Vicente, intitulado o Auto de Moralidade da Embarcação do Inferno ou Auto da Barca do Inferno. As duas companhias juntam as suas equipas para celebrar um dos momentos mais importantes da história do teatro português.
Com encenação conjunta dos directores artísticos das duas companhias, José Russo (Cendrev) e António Augusto Barros (A Escola da Noite), a peça é intrpretada por Ana Meira, Jorge Baião, José Russo, Rosário Gonzaga, Rui Nuno, Igor Lebreaud, Maria João Robalo e Miguel Magalhães.
Embarcação do Inferno, para todos os públicos, em particular o escolar, estreou-se dia 6 de Outubro no Teatro Garcia de Resende em Évora, onde fica em cena até 30 de Outubro, rumando depois para Coimbra, de 10 Novembro a 4 Dezembro, no Teatro da Cerca de São Bernardo. Depois inicia-se digressão nacional, por algumas das principais salas e cidades do país, ao longo do primeiro trimestre de 2017.
As duas companhias teatrais prevêem a apresentação de sessões para o público em geral e para grupos escolares, bem como a realização de oficinas para professores e de outras iniciativas comemorativas da efeméride.
O Palco Lugar de Descobertas
Um homem e uma mulher sem nome. Ele diz à mulher que a ama e que nunca tinha trazido ninguém àquele lugar. Que lugar é aquele e com quem ele fala? Entre um passado que se entrevê, um presente desconhecido e um futuro improvável, O Rio é uma meditação sobre o amor e a saudade, Jez Butterworth torna visíveis os fantasmas de vivências mutáveis como o fluxo do rio. A peça sobe à cena no Teatro da Politécnica, em Lisboa, no que é uma estreia de O Rio, fora do universo anglófono, revela Jorge Silva Melo: «A peça esteve com muito êxito em Londres e tem sido representada nos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Canadá e noutros países de língua inglesa, mas esta é a primeira vez que é representada numa outra língua, que não o inglês».
«É com uma peça inquietante, oscilante (…) é uma peça que me assombra, com fantasmas, mulheres mortas, desafios vitais, 'o que é isso de amar?' e peixe no forno».
Encenação de Jorge Silva Melo, com Ruben Gomes, Inês pereira, Vânia Rodrigues e Margarida Jorge. A peça foi traduzida por Joana Frazão, a encenação é de Jorge Silva Melo, actores Rúben Gomes, Inês Pereira, Vânia Rodrigues e Maria Jorge, a cenografia e figurinos são de Rita Lopes Alves, a luz de Pedro Domingos. No Teatro da Politécnica até 22 e Outubro.
CINEMA
Não esquecendo três filmes em cartaz, Táxi-Driver um clássico de Martin Scorsese, 40 anos (!) com a célebre frase dita ao espelho «You talking to me?» sempre a ecoar, em cópia digital restaurada no Nimas, Julieta, um Almodovar no seu melhor, Snowden de Oliver Stone, um bom filme sem o brilho de outros filmes do mesmo realizador, estes dois últimos em várias salas de cinema no país, o destaque vai para a Festa do Cinema Francês que se iniciou 6 de Outubro. A organização do Instituto Francês viajará por todo o país durante cinco semanas. Várias ante-estreias, 25 filmes de produção recente, entre títulos já adquiridos para Portugal e outros que procuram ainda distribuição.
A Festa, um ciclo programado pela associação de produtores e distribuidores independentes (ACID), faz uma Viagem através do Cinema Francês, inspirada pelo documentário do mesmo nome do realizador Bertrand Tavernier.
Podem-se ver As Inocentes, de Anne Fontaine, na Polónia do pós-Segunda Guerra Mundial, interpretado por Lou de Lâage e Vincent Macaigne. Cézanne e Eu, de Danièle Thompson com Guillaume Canet e Guillaume Gallienne nos papéis principais. As realizadoras apresentarão os seus filmes. Quem também vem a Portugal é Éric Cantona que, depois de ter pendurado as chuteiras, tem feito carreira como actor, para apresentar o filme de Sébastien Betbeder, Marie et les Naufragés, onde contracena com Vimala Pons, Emmanuelle Riva e André Wilms.
Em Lisboa até 16 de Outubro, a Festa estará no cinema São Jorge, Cinemateca Portuguesa, cinema Ideal. No São Jorge a maioria das ante-estreia com os últimos filmes de consagrados como Christophe Honoré, Pascal Bonitzer ou Dominik Moll e jovens realizadores como Justine Triet ou Antonin Peretjatko.
A Cinemateca receberá o ciclo histórico Uma Viagem pelo Cinema Francês, inspirada no já referido documentário Bertrand Tavernier, que será distribuído em Portugal em Janeiro. Os títulos a serem exibidos entre 10 e 18 de Setembro incluem obras clássicas de Jean Renoir, Le Crime de Monsieur Lange, Jean-Pierre Melville, Deux hommes dans Manhattan, mas também títulos menos recordados de realizadores como Jacques Becker, Julien Duvivier, Jean Delannoy ou Claude Chabrol.
No Ideal, entre 7 e 12 de Outubro, será exibida uma selecção de filmes da ACID, organismo de distribuição e divulgação do cinema independente cuja selecção anual durante o festival de Cannes se tem tornado num dos pontos altos daquele certame. O ciclo inaugura a 7 com Isola de Fabianny Deschamps, que estará presente para apresentar o filme, a par do autor da banda-sonora, Olaf Hund, que actuará nessa noite no Music Box. Como habitualmente, a Festa segue depois em digressão nacional: ainda em Outubro será a vez de Almada (Forum Romeu Correia), Leiria (Teatro Miguel Franco), Coimbra (Teatro Académico Gil Vicente), Porto (Rivoli) e Viana do Castelo (Teatro Sá da Bandeira). Até 13 de Novembro seguir-se-ão Faro, Seixal, Aveiro, Beja e Setúbal. A programação completa poderá ser consultada no site.
MÚSICA
Ainda a tempo, é hoje dia 7, na Fundação Gulbenkian às 21h, o concerto de Marta Agerich, uma das mais brilhantes pianistas vivas, com o Cuarteto Quiroga, em destaque a Partita n.º 2 para tecla de J.S. Bach e o Quinteto com piano de Schumann. Se não chegar a tempo, logo no dia seguinte, sábado dia 8, Tristão e Isolda, de Wagner, a febre ardente da paixão como nunca em música se ouviu, numa interpretação dirigida por Simon Ratle, com Nina Stemme, Ekaterina Gubanova, Stuart Shelton, Evgeny Nikitin, René Pape. Em CD tem duas excelentes e sublimes interpretações dirigidas por Carlos Kleiber, a minha preferida, e a de Karl Böhm.
Na Casa da Música, O Outono em Jazz, um género musical que se distingue pela improvisação e inovação, com todas as derivações actuais pela música afro-cubana, o choro, o tango revisitado por Piazzola e demais formas abertas que têm revitalizado o jazz. Vão-se fazer ouvir nomes clássicos como o pianista cubano Chucho Valdés e o saxofonista americano Joe Lovano que pela primeira tocam juntos, a cantora Maria João e o compositor brasileiro Guinga, o guitarrista brasileiro Alessandro Penezzi, o bandonéon de Dino Saluzzi, considerado um dos mais notáveis herdeiros de Piazzolla, a moçambicana Selma Uamusse, que cruza várias influências, Nina Simone em primeiro lugar. Já há muitos anos o jazz europeu tem cultores em destaque. Na Casa da Música estarão os sons vanguardistas do pianista suíço Moncef Genoud com os galegos Sumrrá, o jazz nórdico dos Angles 8 e o free‑jazz dos turcos Konstrukt com a voz deslumbrante de Sara Gazarek. De 13 a 18 de Outubro, um programa a não perder.
LEITURAS
No meio de tantos livros que se editam, relembro-me sempre do que Séneca aconselhava a Lucílio lembrando-lhe que a leitura de inúmeros autores e livros de toda a espécie podem provocar confusão, indecisão e instabilidade. Uma bela carta em que escreve: Lê, portanto, constantemente autores de confiança e quando sentires vontade de passar a outros regressa aos primeiros.
Cartas a Lucílio (edição da Fundação Calouste Gulbenkian), obviamente o primeiro livro que recomendo e de que me lembrei quando, em conversa com um amigo, nas veredas e atalhos por onde andámos desembocámos numa clareira: O Atlas do Corpo e da Imaginação de Gonçalo M. Tavares (Leya/Caminho). Um livro que caminha com segurança pela literatura, o pensamento e as artes, passando pela imagem e por temas como os da identidade, tecnologia; morte e ligações amorosas; cidade, racionalidade e loucura, alimentação e desejo, etc. Centenas de fragmentos que definem um itinerário no meio da variedade multiforme do mundo. Um livro para ler e para ver com uma paginação cuidada, que se integra na narrativa, feita por Os Espacialistas, um grupo de artistas plásticos que colaborou com o autor. São muitos os pensadores contemporâneos, escritores, poetas, músicos e artistas a que Gonçalo M. Tavares recorre para os cruzar com muitas disciplinas que surgem no texto, numa lúcida viagem pelo labirinto do mundo em que vivemos.
Outro livro a revisitar é Da Estupidez, Robert Musil (Relógio D’Água). Musil parte de uma ideia que tinha expressado no O Homem sem Qualidades: «Não existe um único pensamento importante que a estupidez não saiba imediatamente utilizar», para explicar que há uma «estupidez inteligente», uma doença mental especialmente perigosa que «ameaça a própria vida». A estupidez pode ser uma abdicação da inteligência, mas todos somos por vezes estúpidos e essa estupidez desinformada possui utilidade, porque se triunfasse a regra de ninguém julgar ou decidir antes de ter toda a informação sobre um tema, o mundo ficaria paralisado. «Como o nosso saber e o nosso poder são limitados, estamos reduzidos, em todas as ciências, a enunciar juízos prematuros», escreve Musil.
Mais recente na sua edição em português-brasileiro é A Utilidade do Inútil, Nuccio Ordine (Zahar Editores). Contesta a máxima neoliberal de que só é útil o que produz lucro ou tem uma finalidade prática. Defende que existem saberes considerados «inúteis» indispensáveis para o crescimento da humanidade. Útil é tudo aquilo que nos ajuda a termos uma vida mais plena e um mundo melhor. Uma demonstração brilhante e lúcida de como a lógica utilitarista, o culto da posse ossifica o espírito das pessoas, pondo em perigo não só a cultura, a criatividade e as instituições de ensino, mas valores fundamentais como a dignidade humana, o amor e a verdade. Um livro de grande actualidade em Portugal que está a sair do túnel onde nos últimos quatro anos o encurralaram. O governo PSD-CDS que desprezava as humanidades, até as queria eliminar do ensino. No livro um ensaio de Abraham Flexner, que demonstra como as ciências exactas ensinam a utilidade do inútil.
TELEVISÃO
Até começou por me parecer estranho a vontade de incluir a televisão nas sugestões. Vejo pouca, pouquíssima televisão. Não me desgasto com noticiários de alinhamentos insuportáveis, programas com comentadores cujas opiniões parecem, apesar das esforçadas diferenças, clonadas, as excepções são tão raras que é uma perda de tempo procurá-las. Notícias encontro-as na Internet. No Mezzo, que transmite óperas com excelentes elencos, bons maestros e boas orquestras há encenações que me deixam atónito. Começo a esperar o mais insólito. Um Cosi fan Tutte numa Casa dos Segredos, uma Carmen apaixonada por um corredor de fórmula 1, a Madame Butterffly a fazer hara-kiri com um punhal da Star Wars e o filho vendado por óculos de realidade virtual, o Don Giovanni dono da Play Boy. A imaginação é escassa para prever o que por aí virá depois do que vê. Outros programas vejo quando me chamam a atenção para eles. Coisas excelentes, normalmente fora de horas (no dia seguinte não se trabalha? Sei que se pode recorrer à gravação, mas…) e, por essa resistência à pantalha televisiva, muitos outras perdi e perderei. Esta nota vem a propósito de uma série policial de grande qualidade que tem sido transmitida na FoxCrime. Uma série em que o crime é pretexto, não um fim em si, a normalidade das agathascrhisties de ontem, de hoje e de amanhã, o padrão das outras séries que enchem o espaço da FoxCrime. A série que refiro tem o inspector Morse por figura central. O jovem Morse em Endeavour, o Inspector Morse na sua maturidade, Lewis, o sargento de Morse promovido a inspector depois da morte deste. Guiões, diálogos, personagens, ambientes e música que prendem ao ecrã do primeiro ao último momento. Nada é óbvio. O perfil psicológico dos intervenientes nunca é linear. Mesmo os investigadores vão-se revelando aos espectadores, aos outros personagens e a eles próprios. Os meios sociais onde os crimes pretexto acontecem são criteriosamente seleccionados nas classes altas, nos meios universitários e intelectuais. Um móbil para citações literárias, históricas, artísticas e musicais. Um desenvolvimento das acções, como nos grandes policiais de Chandler e Hammet.
LUGARES
Outono em Trás-os-Montes
Já aqui o referimos em anteriores sugestões culturais, mas não é superlativo repetir. Portugal, para a sua dimensão, é um dos países com maior diversidade de paisagens. Essa diversidade está em constante mutação com as estações do ano. Devíamos ter um Guia Turístico que seleccionasse regiões por estações do ano estabelecendo um roteiro que certamente surpreenderia pela alteração aos normais paradigmas. Entrados no Outono ir a Trás-os-Montes é um deslumbramento. O particular revestimento florestal transmontano multiplica as cores, dos verdes mais profundos das árvores de folha perene aos vermelhos sanguíneos das de folha caduca. As suas mutações com o ciclo solar transformam aquele microcosmo em algo que surpreende sem fadiga o olhar, envolve todos os sentidos, não só os cinco sentidos, mas todos os sentidos humanos. Ouvir o som das cores em Trás-os-Montes é uma experiência impar. Muitos outros motivos de interesse haverá para descobrir nessa região, mas o Parque Natural de Montesinho é de visita quase obrigatória.
Palácio Nacional da Ajuda
No apogeu do romantismo desenvolveu-se uma atracção, por vezes quase doentia, pela beleza e o exotismo das ruínas. Em Lisboa há cenários de ruínas deslumbrantes como as do Convento do Carmo que tem sido utilizado, desde 2010, para concertos organizados pelo Instituto Goethe/Fundação Calouste Gulbenkian. Excelentes programas musicais que sofrem com as más condições acústicas de algum modo superadas pelo cenário onde decorrem. O Palácio Nacional da Ajuda nunca foi acabado. Uma das suas alas é uma espécie de ruína. Depois de várias ameaças, a última, em 1987 quando Gonçalo Byrne foi convidado a desenhar a ala poente que continua por rematar, anuncia-se formalmente que isso irá acontecer com um projecto de João Carlos Santos. Sem colocar em causa a qualidade do projecto, devia o Estado ter realizado um concurso público. O Estado tem, deve ter responsabilidades pedagógicas.
Se tem algum fascínio por ruínas tem uma derradeira oportunidade. Vá à Ajuda, visite o que hoje é visitável antecipando a visita que deve fazer quando o palácio ficar concluído com um novo projecto museológico.
INDIGNAÇÕES
Nas sugestões culturais também deve haver espaço para a indignação. O Ministério da Cultura tem a intenção de privatizar trinta monumentos e edifícios públicos. O argumento é o de sempre: o Estado não tem dinheiro para conservar, restaurar, manter. Solução, privatiza-se. É aplicar o importado TINA (There is No Alternative), o triunfo da ideologia de direita que embandeira em arco com o que chama realidade, a deles evidentemente, onde não há espaço para alternativas. Este caso exige reflexão mais geral e profunda, com ramificações particulares em relação à cultura, aos bens patrimoniais materiais e imateriais. Uma discussão a fazer noutro espaço.
O que aqui se regista é a inquietante falta de critério dos responsáveis pela cultura que alinham trinta monumentos históricos como quem está a vender batatas, não olhando para o seu particular significado histórico. Entre os trinta figura o Forte de Peniche, prisão histórica do fascismo. Há um longo processo em relação à sua reabilitação. Existe um esquecido projecto de Álvaro Siza, que entrou em conflito com os promotores de um empreendimento turístico-hoteleiro. A musealização existente é miserável, estão por lá albergadas colecções aberrantes. A privatização do Forte de Peniche marcha para a sua descaracterização total. Mais um passo para apagar a memória. A sede da PIDE na António Maria Cardoso, onde foram torturados dezenas de milhares de resistentes antifascistas, é um condomínio de luxo com uma pífia placa na lapela. Só o Aljube escapou. Podem os promotores da privatização dar as cambalhotas que quiserem para descansar as suas consciências. Podem mesmo integrar no Caderno de Encargos a exigência de se instalar uma suite na cela centro da célebre fuga dessa sinistra prisão com a obrigatoriedade de se chamar Suite Fuga de Peniche e da colocação todos os dias 3 de Janeiro de uma corda de lençóis na janela por onde esses heróicos combatentes pela liberdade se escapuliram para continuar a luta. Qualquer intervenção no Forte de Peniche deve passar pela preservação integral das suas características prisionais e por um projecto de musealização sério que tarda em ser feito. Indigne-se! Subscreva a petição pública.
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