Barry Lyndon, cenas da luta de classes ao som de grande música

Estudar esta obra de Kubrick e discuti-la será certamente uma forma possível de contrariar o clima de alienação e estupidez em que nos querem submergir.

Fotograma do filme «Barry Lyndon» de Stanley Kubrick, 1975
Créditos

Quando vi pela primeira vez Barry Lyndon, de Stanley Kubrick – corria o ano de 1977, creio –, estava longe de ter uma cultura geral aceitável (duvido ainda hoje que a tenha). Em quase tudo, isso sim, tinha uma «ignorância enciclopédica», como diz um amigo meu de Santiago referindo-se aos «periodistas» (embora a expressão também seja atribuída a Julio Camba, escritor espanhol e ele próprio jornalista, que morreu em 1962).

Nessa época, por exemplo, ouvia sobretudo rock, canções de intervenção e, por isso, Barry Lyndon ensinou-me alguma coisa do quase nada que hoje sei sobre história da música. E mostrou-me como a montagem de uma banda sonora feita de peças musicais já existentes, em sintonia com uma sequência dramática, com olhares, emoções, movimentos, constitui, só por si, um singular trabalho de criação artística, apenas possível quando se possui uma sólida e refinada cultura musical.

Com o filme de Kubrick, o que restava da minha estouvada adolescência iniciava-se enfim na escuta activa de Bach, Vivaldi, Händel, Mozart, Schubert (porque todos eles estão lá, na banda sonora). O meu gosto pelo barroco musical, a afeição a Schubert é daí que vêm. Tornou-se-me inesquecível, por exemplo, o adagio do Concerto em Dó-menor, BWV 1060, de Bach, que nunca me cansei de ouvir – essa divina e obsessiva «machine à coudre» dos dois cravos (dela falava, creio eu, Marguerite Duras), que pontua uma das mais admiráveis sequências do filme, a que se desenrola no salão de música, simultaneamente cómica e dramática. E já nem discorro sobre a trágica Sarabande de Händel, da qual Kubrick faria uma espécie de leitmotiv musical do seu filme, nem sobre o andante con moto do Opus 100, de Schubert (o seu célebre trio para piano, violino e violoncelo), peça melancólica e obsidiante que acabaria por ser enjoativamente utilizada noutras bandas sonoras.

Schubert é um compositor do período clássico já com traços pré-românticos, mas interessa notar a associação deste trio, escrito cerca de trinta anos após o tempo histórico recriado em Barry Lyndon, a uma personagem, Redmond, ele também um herói pré-romântico numa época de desagregação – a história do filme termina em 1789, ano um da Revolução Francesa, do outro lado do Canal da Mancha.

Mas o filme ensinou-me ainda a ver a pintura do século XVIII (Gainsborough, Watteau, Hogarth, Fragonard…), em que Kubrick se inspirou para a composição de planos e para a reconstituição de um mundo desaparecido (John Alcott era o director de fotografia). «Quadros» de visualidade deslumbrante, quis o realizador que fizessem o espectador imergir numa época histórica e numa paisagem. 

«Com a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) em fundo (e o herói participará nela), esta é uma história, em suma, marcada pelas tensões sociais entre a pequena nobreza irlandesa arruinada e a grande aristocracia britânica.»

Com esta fita aprendi ainda todo o poder de revelação/construção de mundos possíveis de que é capaz a grande ficção romanesca, tanto na literatura como no cinema – importa lembrar que Kubrick adapta livremente, e alterando o estatuto do narrador, um interessante romance de William Makepeace Thackeray (1811-1863), The luck of Barry Lyndon (1844) – publicado em português, em 1977, pela Perspectivas & Realidades, sob o título Memórias de Barry Lyndon do Reino da Irlanda (tradução de Isabel Braga).

A história do filme é a das aventuras, audácias e misérias de um jovem irlandês, oriundo da pequena nobreza rural e com muito de herói pícaro. Segue-se, por via do casamento, uma vertiginosa ascensão e queda. Belo e ambicioso, dado a caras bonitas (e a de Lady Lyndon / Marisa Berenson é sublime), não resiste à riqueza e aos luxos da grande aristocracia. Essa riqueza, transitória, não é todavia suficiente para o impor na alta-roda da nobreza britânica. Quase no final, com a fortuna da mulher em definhamento acelerado (e publicamente conhecido), com um conflito familiar por resolver envolvendo a herança do primeiro marido de Lady Lyndon, o aventureiro e arrivista social Redmond Barry aprende à sua custa que poder, estatuto social, dinheiro são coisas efémeras – e é ferido inapelavelmente na sua vanitas, acabando de novo pobre e com uma perna mutilada, na sequência de um duelo. Com a classe dominante longe de o admitir como um dos seus, arcando com uma reputação pouco edificante, e ainda por cima irlandês, o protagonista deixa de ser a aposta certa para aqueles cujos interesses antes servia. E não logra vingar-se, nos grandes, das muitas humilhações sofridas na juventude – ou só em pequena parte o consegue fazer.

Com a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) em fundo (e o herói participará nela), esta é uma história, em suma, marcada pelas tensões sociais entre a pequena nobreza irlandesa arruinada e a grande aristocracia britânica. A esta moldura não falta outra tensão, ainda que menos notória: a de uma Irlanda oprimida e humilhada pelo poderio inglês.

«Porque se na fase intermédia da carreira cinematográfica de Kubrick há película que aborda, como as de Visconti, a luta de classes (neste caso na Europa do século XVIII), é esta precisamente.»

Na sua monografia, Stanley Kubrick (Horizonte, 1992), Pierre Giuliani escreve: «Barry Lyndon é um filme muito belo, isto é, um filme sobre o belo, um filme do belo. Música (a que Kubrick faz ouvir em banda sonora e a que se toca no filme), pintura (tanto na composição das imagens, como na evocação directa da arte pictural, em especial a breve sequência em casa do negociante de quadros), vestuários, arquitectura, arte dos jardins e dos seus lagos… na segunda metade do século XVIII (no total, os três decénios que precedem a Revolução Francesa) tudo se encontra no apogeu, num aprumo de civilização que não sabe ainda que em breve, a seguir aos Insurrectos das colónias americanas, vão surgir os Republicanos. Equilíbrio demasiado perfeito, mortífero (…)» (p. 129).

Com este filme aprendi eu também o poder redentor – ou não? – da beleza (a do corpo, a da natureza e a da arte – palavra, imagem, música…), bem como a importância das questões de gosto, em arte e na cultura em geral. Barry Lyndon fez-me ingenuamente desejar, nesse início de juventude já longínquo, ter vivido no século XVIII, preparou-me para Choderlos de Laclos e Sade, e converteu-se num dos filmes da minha vida, juntamente com Morte em Veneza e Violência e paixão, de Visconti, e com 1900, de Bertolucci (a que tenho de juntar um ou dois filmes de Truffaut, alguns de Antonioni e de Ford). Vale a pena, a propósito, recordar que Barry Lyndon se inscreve nessa tradição de grandes frescos sócio-históricos a que igualmente pertencem, por exemplo, filmes maiores como O Leopardo ou Sentimento, de Visconti. Porque se na fase intermédia da carreira cinematográfica de Kubrick há película que aborda, como as de Visconti, a luta de classes (neste caso na Europa do século XVIII), é esta precisamente. Lembre-se que, na obra do realizador de 2001 – Odisseia no Espaço, existia já esse outro inesquecível precedente que é Spartacus, de 1960, entre outros.

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Finalmente, vem-me ainda à memória tudo o que se sabe sobre a história fascinante da produção e realização desta obra-prima: por exemplo sobre o recurso às lentes especiais usadas pela NASA em fotografia de satélite, para filmar cenas de interior à luz de velas; ou ainda sobre a escolha dos cenários, sejam eles palacianos ou naturais (na Alemanha e na Bélgica, cheguei a ir à procura de alguns deles, apesar de grande parte do filme ter sido rodada na Irlanda). E há ainda as presenças inapagáveis do par Ryan O’Neal e Marisa Berenson, de Patrick Magee, Marie Kean e Leonard Rossiter, como nunca mais os veríamos em nenhum outro filme, intérpretes que se juntaram ao naipe de admiráveis secundários kubrickianos (Godfrey Quigley, Philip Stone…) que nesta história comparecem uma vez mais, alguns vindos da obra anterior: Laranja Mecânica (1971).

Além de tudo o que fica dito, Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, é um prodígio de aventura romanesca, graça e humor (apesar do travo amargo que a partir do meio do filme se sente); é um saber único na manipulação do tempo narrativo, na composição dos planos e das sequências, na concepção de coreografias e movimentos (a sequência do jogo de cartas, seguida da do primeiro beijo entre Redmond e Lady Lyndon, lenta e ao som de Schubert, ficam na história do cinema). Barry Lyndon permite, ademais, escutar, em delicioso inglês, um dos mais fabulosos narradores irónicos que conheço em cinema: a voz-off condutora, lírica ou judicativa, mas sempre sedutora e sóbria, apesar de omnipresente, do shakespeariano Michael Hordern. A escuta desta voz, do seu discurso (dir-se-ia outra peça musical) é por si só um elemento de fruição bem peculiar: ora convida o espectador à reflexão, ora o entristece, ora o diverte e o faz sorrir.

Por tudo isto se torna tão marcante o regresso actual de Barry Lyndon aos cinemas portugueses, em nova versão digital restaurada. É de facto um daqueles filmes que só no grande ecrã podem ser devidamente desfrutados (e o restauro promete). Um filme em contraciclo, clássico e moderno afinal, ao arrepio deste tempo revoltante, de caça-aos-pokemons, em que vivemos. Estudar esta obra de Kubrick e discuti-la será certamente uma forma possível de contrariar o clima de alienação e estupidez em que nos querem submergir. Irei vê-lo pois, talvez pela… vigésima vez? Diálogos há que quase sei de cor…

É seguro que, nos dez a quinze melhores filmes da história do cinema, figurará sempre uma das obras magistrais de Kubrick. Não faltarão, já se sabe, hesitações: como escolher entre Lolita, Laranja Mecânica, Barry Lyndon ou Dr. Strangelove (que a figura do sinistro ministro alemão das finanças, Schäuble, tanto faz lembrar e não pelas razões mais óbvias)? Pela minha parte, a escolha está feita: optarei sempre pela extraordinária história das aventuras e desventuras de Redmond Barry, Esquire, de Barryville.

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