|E o mundo é a nossa tarefa

Dez começos de contos para Clarice Lispector

E o mundo é a nossa tarefa é uma escolha semanal de Manuel Augusto Araújo.

Le cahier de Freud
CréditosÁlvaro Lapa

O coração cavalgou-lhe a flor
do hímen, pisoteou-a.
Por isso sangrou a menina,
apesar do gozo.
É um rosto que se vira
como um lenço ao vento.
Um lenço com uma só nódoa
na íris castanha.
Como pesa o castanheiro
na sua semente
– sai-lhe o broto
como um soluço de dor.
Enquanto um segredo
se suicida no ramalhar
dos lábios,
põe-se a tarde — quente.
Felizes dias em que bastava
assobiar para a sorte
e o amor
içarem guindastes.
Doeu-lhe a cidade, na pulsação
dos semáforos depois dele
revelar que a deixava — ubérrima
urbe, essa mãe com taxímetro.
Às tantas lembrava um vulcão,
outras vezes um marmóreo sentimento
assentado sobre palavras nunca ditas
- um rosto quase inábil, de inconsútil.
Eis um bairro sem divisas,
folha de jornal aos baldões
e torcida pelo vento
que um gala-gala esgaravatou.
Pode uma vida agastar-se sem reboco
os fios eléctricos bamboleantes ao vento
e à chuva e o tijolo
descontinuado, pardo?
Às vezes, que Deus lhe perdoe,
o Livro que Não Sabia Ler
desprendia-se-lhe num espasmo
no peito incicatrizado da alba.

António Cabrita

Tópico

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