Estas verbas transferidas (ANACOM) ou cobradas diretamente pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) garantem, assim, o financiamento possível da produção cinematográfica em Portugal. Dos 20.982.085 euros respeitantes ao orçamento do ICA para 2017, 20.200.000 euros resultam da cobrança destas taxas. Tal relação de dependência do cinema português com empresas privadas está na origem das formas de pressão que o setor vive atualmente.
Em plena governação de PSD-CDS foi promulgado o Decreto-Lei n.º 124/2013, de 30 de agosto, que cria a Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual (SECA), onde têm assento os grupos económicos que contribuem financeiramente com as taxas que são canalizadas para o ICA.
O artigo 14.º refere que cabe à SECA aprovar os júris para os vários concursos do ICA. Mas a Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual (SECA) é um órgão consultivo que integra o Conselho Nacional de Cultura (CNC), que é um órgão consultivo no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), cujo presidente é o, agora, ministro da Cultura.
«A pressão dos grupos económicos tem-se verificado, também, ao nível do tipo de pessoas que são convidadas para exercer a função de júri.»
Desde 2013 que várias organizações do setor denunciam o abuso de poder da SECA, mas só agora se opuseram de forma mais concertada e com um parecer jurídico, que esclarece o âmbito meramente consultivo da SECA, sublinhando a ilegalidade do poder de nomeação dos júris do ICA.
A pressão dos grupos económicos tem-se verificado, também, ao nível do tipo de pessoas que são convidadas para exercer a função de júri. Em vez de «personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade e com manifesto mérito cultural», tem-se observado que o currículo de vários membros dos júris escolhidos pela SECA não corresponde ao exigido pela lei.
Além de associações de cinema, representantes de cineclubes e festivais e técnicos de cinema, têm assento na SECA empresas de televisão, exibidores de cinema, distribuidores de cinema e empresas de comunicação e de serviços de TV por subscrição. O realizador Miguel Gomes sublinha que as decisões são tomadas por «pessoas que têm interesse direto no resultado dos concursos e por entidades privada». Além do mais, salienta o produtor Luís Urbano (da Associação dos Produtores de Cinema Independente), «há uma transferência de poder contranatura de um organismo (ICA) para outro (SECA)».
«Há uma transferência de poder contranatura de um organismo (ICA) para outro (SECA)»
lUÍS URBANO, ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTORES DE CINEMA INDEPENDENTE
Tal situação no setor do cinema deu origem a uma carta aberta dirigida ao Governo português por um conjunto de associações, festivais e sindicatos do setor, e subscrita por uma vasta maioria de realizadores e técnicos do cinema português.
Alguns dos signatários desta carta aberta aproveitaram a sua presença no festival de Berlim (a maior representação de filmes portugueses neste festival até à data) para divulgar aos seus colegas estrangeiros a situação de fragilidade do cinema português. A carta aberta do cinema português foi acolhida com a máxima solidariedade, individual e institucional, e subscrita por personalidades de grande relevância cultural e artística de todo o mundo (a carta encontra-se disponível na página do DocLisboa).
Ao longo destes últimos anos tem-se assistido a uma degradação das funções do ICA. Ao permitir a continuidade desta «secção especializada» – a SECA –, o ICA perde o seu sentido; torna-se mera instituição burocrática, ao serviço de interesses financeiros que ameaçam a diversidade do cinema português, conforme tem sido expresso pelos vários representantes das associações em protesto.
Imagine-se se, em dezembro de 2015, a ineficácia do ICA, devido aos atrasos na cobrança das taxas, tivesse gerado outro organismo que cobrasse pelo ICA o que esta instituição deve cobrar a tempo e horas. O que aconteceu de lá para cá foi uma aposta na melhoria das competências do ICA nesta matéria.
Os signatários da carta aberta dirigida ao Governo não vêem, por isso, qualquer legitimidade das «deliberações» desta secção especializada (SECA) mas, em vez disso, propõem que volte a ser o ICA a responsabilizar-se pela escolha dos júris dos concursos. Tal reversão poderia consistir na introdução de melhorias das competências conferidas à instituição que promove e regula a atividade cinematográfica em Portugal.
O secretário de Estado da Cultura mas, também, o ministro da Cultura têm justificado a permanência da SECA com o compromisso, que deve haver, entre os beneficiários dos apoios e os financiadores. Mas ao fazê-lo o Estado transforma o dever contributivo das empresas privadas com assento na SECA (aquelas que mais interesses têm na escolha do tipo de filmes) num direito de escolha das políticas do cinema em Portugal.
Não deixa de ser desconcertante ver os mais altos responsáveis da cultura em Portugal falar no tal compromisso entre «beneficiários» e «financiadores», quando o motivo real do «compromisso» é o adiamento da responsabilização do Estado em relação ao financiamento e à garantia da diversidade do cinema português.
Representantes da plataforma que congrega as várias associações, festivais e sindicatos em protesto reuniram-se recentemente com o primeiro-ministro, António Costa, na esperança de que a mais alta figura do Governo de Portugal considere as suas preocupações. Como resultado deste encontro, ficou estabelecido que as alterações ao decreto-lei 124/2013, que regulamenta a Lei do Cinema, vão continuar. A diretora do DocLisboa, Cíntia Gil, expressou à saída deste encontro a sua satisfação porque «foi começado um diálogo» com uma «sessão de trabalho» sobre «o artigo 14.º» e sobre a (urgente) política do Estado para o cinema.
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