Primeiramente.
Isso, é isso mesmo que estão a pensar. Em Maio do ano passado, Aquarius, o candidato brasileiro à Palma de Ouro, foi falado primeiro que tudo porque na sua estreia em Cannes foi precedido por um tranquilo protesto contra o impeachment de Dilma Rousseff. Realizador, actriz principal e parte considerável do elenco, colocando um «primeiramente» antes do filme que ali os trazia. E é tudo isto relevante para o filme? Sim. Porque se por um lado seria fácil dizer que Aquarius merece ser olhado como o filmaço que é, independentemente de qualquer contágio político, por outro o grande cinema brasileiro sofre muito — e, a meu ver, de um bom, óptimo, sofrer — de não fugir ao contágio. «Verás que um filho teu não foge à luta» e Aquarius é um filme respirado, acordado, que nos instala na costa do Atlântico e na pele da Sónia Braga. É político, claro, porque é tudo o resto, e consegue sintetizar as conquistas e as limitações de todas as revoluções dos últimos quarenta anos numa cómoda de madeira que delas é testemunha, símbolo e suporte. Uma cómoda de madeira que aguenta tudo. «Se tu gostas, é vintage. Se tu não gostas, é velho.» Aquarius é tempo, é vinyl e mp3, é a cómoda, são as maminhas da Sónia Braga, é o Atlântico quente onde há risco de nadar com tubarões, é o «eu prefiro dar um cancro do que ter um». Portanto, e porque as sessões se reduzem a olhos vistos e quando derem por ela o filme já saiu de sala: primeiramente, Aquarius.
Mais aquários.
E se o filme de Kleber Mendonça Filho ainda pode ser caçado não só em Lisboa (no El Corte Inglês e no Monumental) mas também no Porto, no muito felizmente reaberto Cinema Trindade, em Lisboa uma outra sala resiste e resistirá à invasão multiplex com pipocas. A partir de 13 de Abril, o Espaço Nimas apresenta cópias novas e restauradas de um outro aquário cinematográfico, tão contemplativo como inquieto: o de Kenji Mizoguchi. Segundas e terças, Os amantes crucificados, quintas e sextas, A mulher de quem se fala, sábados e domingos, Contos da Lua Vaga. A aproveitar, porque há mundos aos quais o écran de casa ou o do computador nunca farão justiça.
Não é vintage, é Old School
Na Rua das Gaivotas6, continua a residir o projecto curatorial de Susana Pomba, que «apresenta obras inéditas de artistas plásticos num acontecimento que se circunscreve às horas úteis de uma noite apenas». Na Old School de sábado, 22, a partir das 22h, o espaço e o tempo são de Alice Reis e a entrada é livre.
Este é para quem o apanhar
Fosse eu habilitada a tal, e já estaria a trabalhar na tradução deste livro, com ou sem encomenda de editora interessada. Ou seja, o livro deste mês é sugestão para quem está à vontade a ler romances em inglês. Mas simultaneamente é um pedido encarecido para quem decide do que se traduz em Portugal. Vencedor do Man Booker Prize de 2016, The Sellout (que se pode traduzir por qualquer coisa como O Vendido) é uma maravilha que, para citar Sarah Silverman, parece escrita por anjos dementes. Não é por acaso que o autor, Paul Beatty, é o editor de Hokum: An Anthology of African-American Humour. Com uma inteligência, uma sensibilidade e uma crueldade agudas, Beatty faz humor negro e preto, em que nada fica de pé: a segregação racial, a segregação social, a segregação sexual, a luta de classes, a construção e o uso dos poderes. Tudo balança, tudo treme, tudo ri em gargalhadas incrédulas, toda e qualquer noção de identidade na América da alucinação do pós-tudo, que é só mais uma forma de tentar disfarçar que o caldeirão ainda ferve e não vai parar de ferver proximamente. Para um travo do festim que se serve durante 289 páginas de gozo puro, bastaria a primeira frase do prólogo: «This may be hard to believe, coming from a black man, but I’ve never stolen anything.» («Isto pode parecer inverosímil, vindo de um homem negro, mas eu nunca roubei nada.»)
Editoras, tradutores, leitores: fica o pedido feito, dirigido a quem o apanhar.
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