Urgência
Um homem chegou e deitou-se,
era aquele que avançava contra o vento frio,
que se abraçava às palavras, às árvores, às flores
e no seu ventre amanhecia a luz de uma chaga,
de onde saiu um pássaro.
As nuvens voavam à altura dos seus olhos
e era preciso escutar a voz, o canto das sílabas
que sufocava no sangue,
a urgência, a terra contra o sangue
que corria nos veios azuis do seu corpo.
Na claridade do seu olhar movia-se velozmente
a paisagem, como em incertos dias de Verão,
nos seus olhos iluminava-se o assombro,
reflectiam-se as imagens e as sílabas da catástrofe,
a obscura gramática que neles se desenhava
em linhas de solidão, como sulcos de água,
escoando-se lentamente.
Era preciso lembrar a luz, recordar os vestígios,
o canto que emanava das vísceras, interrompendo o mundo,
era ali o início do círculo, o lugar onde tudo recomeçava,
o começo da liberdade, exacto,
recapitulando o destino do voo alucinado, na noite.
E era preciso não temer os nomes, a escuridão,
a alquimia que tudo funde, emergindo do sonho.
Era preciso não temer as imagens que se sucediam,
a memória interrompida, antigos nomes
que se escreviam contra as raízes, para que cantasse
a glória da infância renascida.
Na claridade do seu olhar, era já a morte em sonhos,
florescendo no horizonte do tempo
e então disse-me: bebe da minha luz,
bebe, a noite descia, puro anil,
bebe do meu sangue, bebe-me,
só aí terei sido porque te vi. Sou tu.
Maria João Cantinho
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