Desta vez fico sentado em Lisboa

O guião do filme «São Jorge» é de extrema densidade. Uma ficção que documenta a situação que Portugal viveu em anos recentes, que ainda vive e viverá enquanto estiver submetido aos imperativos tecnoburocráticos da União Europeia e ao euro.

São Jorge, de Marco Martins
Créditos / SapoMag

Os dias da semana das sugestões culturais não coincidem com a outra, os dos da semana do calendário gregoriano com o sétimo dia em que deus descansou, depois de falsificar a história de milhões e milhões de anos da evolução da natureza e da humanidade num big bang de seis dias a fabricar um mundo que ele julgava acabar naquele jardim plantado de virtudes para alegria e triunfo da ignorância, da fé plana e cinzenta na vida eterna sem estórias que se inscrevessem nas linhas de horizonte daquele deserto desalmado.

Para salvação do mundo havia o diabo, que lhe provocou imensa ira quando o confrontou com a sua fissurada omnisciência e omnipresença incapaz de prever a fuga de Eva e de Adão do pesadelo climatizado do paraíso para se aventurarem pelas incertezas do mundo. A tudo assistiu impotente.

Vingou-se publicando um decálogo de leis estratificadoras de uma sociedade dividida em classes e que incentivava despreocupadamente a ocorrência do paganismo idólatra do dinheiro, estatuia uma moral farisaica, as raízes dos fundamentalismos. Começam estas sugestões com um filme que coloca em causa esse paganismo, mergulhando nos dramas que provoca. É esse o pano de fundo de uma humaníssima história de amor familiar atirada para o labirinto das contradições a que a sobrevivência obriga. Um filme político e moral que nunca se deixa enredar em juízos morais ou políticos.

Estamos a falar de São Jorge, o último filme de Marco Martins, que está nos cartazes de cinema em quase todo o país. Um filme em que se recupera uma das funções mais antigas da arte: a da pedagogia didáctica que quase se perdeu totalmente na actualidade. Um filme na linhagem das obras de arte que não se subtraem ao que se pode chamar de lições morais e políticas, presentes das tragédias gregas e shakespearianas à vasta e prodigiosa obra de Brecht que as reafirma de forma original e inovadora.

É a função da transmissão de conhecimento pela arte, em todas as disciplinas da arte, que se inicia antes das épocas clássicas, se prolonga até ao modernismo, quase se perde no pós-modernismo. São Jorge recupera e transforma essas ferramentas com olhar crítico do nosso tempo.

O guião do filme é de extrema densidade. Uma ficção que documenta a situação que Portugal viveu em anos recentes, que ainda vive e viverá enquanto estiver submetido aos imperativos tecnoburocráticos da União Europeia, à submissão ao euro, às políticas económicas que impõem, de forma directa e indirecta com a frieza bárbara do não há alternativa, o domínio dos mercados, à irracionalidade dessa entidade abstracta que escapa a qualquer escrutínio democrático e tem um objectivo único: o lucro que promove a acumulação do capital nos bolsos de uma escassa minoria de ricos. Na actualidade, 1% dos mais ricos detém uma riqueza que supera a de mais de metade da população mundial, sem escândalo de maior.

Em São Jorge está lá tudo filtrado na história de um homem em falência económica, desempregado que luta para sobreviver, que procura por todos os meios garantir o sustento e o sustento da mulher e do filho. Sobreviver à crise financeira instalada num país em que um governo cumpria, e miseravelmente se orgulhava de ir além, o que os mandantes da troika, (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) exigem para resolução da dívida soberana, esse cancro universalmente instalado.

Jorge, uma interpretação excepcional de Nuno Lopes, luta e luta com o que aprendeu. Pugilista sem futuro no mundo do pugilismo está treinado no corpo a corpo dos ringues de boxe que frequenta sem ilusões, para manter a forma física. Não está treinado para os desafios da vida, para o desafio maior de ver a sua vida familiar esboroar-se e ser ameaçada de amputação pela ameaça da mulher, brasileira, e o filho emigrarem em fuga a um futuro que em Portugal lhes é recusado. Desesperado aceita o que no imediato é possível.

Aceita um emprego de cobranças onde usa o que sabe e aprendeu quando tinha o objectivo de triunfar desportivamente. Um desesperado que vai enfrentar outros desesperados, tão desesperados quanto ele. A sobrevivência empurra-o para a amoralidade, para as fronteiras do submundo da criminalidade. É sujeito de uma situação em que é sujeito e vítima. A espessura do filme adensa-se por se situar em bairros sociais, Jamaica e Bela Vista, onde a crise, o desemprego e a falta de dinheiro, que já faziam parte do quotidiano se agravaram nos anos de austeridade e não acabaram. Uma montanha russa sem fim.

Marco Martins faz um filme sobre os tempos difíceis que vivemos. Situa-o em Portugal no limitado tempo histórico da austeridade, no pico da sua maior inumanidade. Está bem para lá, antes e depois, desse tempo e ultrapassa as nossas fronteiras, apesar de ser uma história bem portuguesa. Dá-nos uns valentes murros, não para ficarmos com os olhos vítreos do nocaute, mas para os encaixarmos bem encaixados, os devolvermos com força suplementar e de olhos mais abertos.

Um belíssimo filme que faz a realidade entrar com estrondo pelas portas do quotidiano, arrombando a que nos era e é vendida pela comunicação social estipendiada, muita dela peralvilha travestida de referência, para nos enredar nas teias do pensamento único dominante.

Um belíssimo filme de Marco Martins com Nuno Lopes, José Raposo, Mariana Nunes, Gonçalo Waddington, Adriano Luz, Beatriz Batarda, pessoas dos bairros Jamaica e Bela Vista.

Uma afirmação da qualidade do cinema português que, nos últimos decénios, tem sido distinguido nos principais festivais de cinema. Os mais recentes além de São Jorge foram o filme de animação Estilhaços de José Miguel Ribeiro no Anima-Festival do Cinema de Animação de Bruxelas e a curta-metragem Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante, Urso de Ouro no Festival de Berlim.

Cinema que continua a viver uma situação precária em contra-ciclo com o reconhecimento internacional que tem adquirido. Cinema realizado e produzido num País que não tem nem nunca terá mercado para sustentar uma indústria cinematográfica.

«Não queremos um ICA meramente distribuidor de dinheiros numa lógica de empreiteiros»

Luís Urbano, Associação de Produtores de Cinema Independente

Cinema que devia ter apoio directo do Estado que se subtrai às responsabilidades que deveria assumir ficando na dependência das verbas resultantes das taxas de exibição, das telecomunicações e das subscrições da televisão por cabo. Dos 20.982.085 euros respeitantes ao orçamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) para 2017, 20.200.000 euros resultam da cobrança destas taxas, o que gera uma anómala relação de perda de autonomia por parte do Estado, está na origem das formas de pressão de grupos económicos, com presença não despiciente nos júris, na composição do júris que seleccionam os projectos a concurso.

Lógica que se agravou com o governo PSD-CDS e que o actual, na proposta de decreto-lei que está para aprovação no Conselho de Ministros, não altera substantivamente. Realizadores, produtores, actores, organizadores de festivais e outros técnicos ligados ao cinema contestam o decreto-lei, com fortes apoios no mundo do cinema. O que licitamente exigem são mecanismos de avaliação claros, libertos de princípios economicistas, bem expresso no dizer de Luís Urbano, produtor e responsável da Associação de Produtores de Cinema Independente, uma das onze associações que a contestam – «Não queremos um ICA meramente distribuidor de dinheiros numa lógica de empreiteiros».

Uma situação grave pelas especificidades da produção cinematográfica, mas que se inscreve nos problemas com que se debate a Cultura em Portugal, enquanto o seu orçamento for um resto, o que sobra no Orçamento de Estado o que dá razão às exigências do Movimento 1% para Cultura.

Depois de se justificar tão longamente esta sugestão cultural o que fazer? Saltar da normalidade, fazer sugestões alternativas sem sair de Lisboa.

Ainda cinema, na Casa da Achada-Centro Mário Dionísio, no Largo da Achada, continua, às segundas-feiras, o ciclo de cinema Revolta e Revoluções n’América. A 13 de Março, Que Viva México, de Eisenstein, dia 20, Ilha das Flores, de Jorge Furtado e Os Fuzis, de Ruy Guerra.

Em Campo de Ourique o movimento de cidadãos CampOvivo e a Padaria do Povo organizou o ciclo Os Filmes das Nossas Vidas, filmes escolhidos por pessoas do bairro. Dia 13, O Cerco de António Cunha Telles, escolha de Carla Bolito; dia 20, Veludo Azul, de David Lynch, escolha de Carla Oliveira da livraria Baobá; dia 27, Os 400 Golpes, de François Truffaut, escolha de Jorge Wemans.

Outras sugestões? Porque não Ciência?

No Museu Nacional da História Natural e da Ciência, Rua da Escola Politécnica, muito para descobrir nas suas exposições permanentes, todas muito interessantes, e nas temporárias, algumas de longo prazo como a exposição Joias da Terra: O Minério da Panasqueira sobre a única mina de volfrâmio a laborar na Europa e uma das poucas em todo o mundo, com minerais que são famosos pela sua beleza, qualidade e dimensão. 

Uma exposição em que fica a conhecer a história e a vida das Minas da Panasqueira, a sua formação e evolução geológica, as diferentes artes mineiras ao longo dos tempos, as aplicações à vida quotidiana do principal metal aí explorado, o volfrâmio. Se aceitou a sugestão faça uma viagem pelo Jardim Botânico, em obras de requalificação, e o Borboletário. Dê uma saltada ao Planetário, em Belém,para contemplar o céu dos hemisférios norte e sul, numa simulação que proporciona uma viagem tão real como fascinante pela astronomia e a astrofísica.

Em março celebrou-se o Dia Internacional da Mulher. No Pavilhão do Conhecimento-Ciência Viva presta-se homenagem às mulheres cientistas portuguesas, que representam 45% do total de investigadores no nosso país e cujo trabalho tem sido fundamental para o progresso que a Ciência e a Tecnologia nacionais registaram nas últimas décadas.

Foi publicado um livro Mulheres na Ciência que mostra a participação das mulheres portuguesas investigadoras nos diversos ramos da ciência e o seu envolvimento na aventura do conhecimento. Do livro há uma versão digital em exposição permanente no Pavilhão do Conhecimento, no Parque das Nações, que continuará a acolher novos rostos e testemunhos da investigação no feminino.

Conheça essas mulheres e o seu trabalho. Não perca a oportunidade de explorar as inúmeras actividades que a Ciência Viva oferece, não só aqui em Lisboa mas nos núcleos que tem por todo o país. A Ciência Viva é um dos projectos mais interessantes e com actividades muito diversificadas e projectos para todas as idades que nunca deixam de surpreender.
Desta vez sugestões sem música e há excelente música para ouvir. Sem teatro e há excelente teatro para ver. Sem exposições e há excelentes exposições para visitar. Sem livros e são vários os livros que se poderiam sugerir. Sem outros filmes que se devem ver antes que saiam de cartaz. Sem isso tudo mas com tudo o que fica submerso nestas sugestões fora dos eixos do que seria expectável.

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