Nos gloriosos anos da Revolução Bolchevique, a arte, as vanguardas artísticas, mantendo a sua autonomia estética, colaboraram activamente com a vanguarda política na construção de uma sociedade nova. Na música os concertos em fábricas eram uma vulgaridade, o que originou inovações radicais como a introdução dos ruídos industriais na música. Vários compositores o fizeram, com destaque para Mossolov e Deschevov. Essa tradição de saltar das salas de concertos para os locais mais inesperados manteve-se pós-revolução. As excelentes orquestras que se formaram na União Soviética, mesmo as unanimemente consideradas das melhores orquestras mundiais, faziam regulares digressões por todo o país actuando em salas sem grandes condições. São bem conhecidas as viagens de Sviastoslav Richter, um dos maiores pianistas da história da música, pelo imenso território soviético tocando em pianos com marcas tão improváveis como Outubro Vermelho, em que a qualidade sonora estaria nos mínimos aceitáveis. Itália, no apogeu da popularidade do Partido Comunista Italiano, seguiu esse exemplo. O maestro Claudio Abbado e o pianista Maurizio Pollini organizaram uma orquestra que percorria fábricas e colectividades dando concertos. O mesmo fez o compositor Luigi Nono que esteve em Portugal na primeira Festa do Avante! e usou os ruídos da Festa numa composição que fez executar ao vivo. Essa tradição perde-se com a implosão da União Soviética e com a perca de horizonte ideológico do PCI.
«A Festa do Avante! de há uns anos a esta parte recuperou essa prática. O seu concerto inaugural é composto por obras sinfónicas»
Que se pretendia com esses concertos? Não certamente deleitar ouvidos já habituados a ouvir música sinfónica, muitos deles com tiques de requinte que de facto não têm, embora o pretendam exibir. Esses concertos tinham o objectivo primeiro de fabricar ouvidos novos. Ouvidos que desconheciam ou conheciam mal esse género de música e assim dela se aproximavam, a começavam a entender e a entender melhor toda a música.
A Festa do Avante! de há uns anos a esta parte recuperou essa prática. O seu concerto inaugural é composto por obras sinfónicas. Não se espera, nem sequer é exigível dadas as condições específicas em que são realizados, que esses concertos se imponham como obras de referência. O que exige o público que vai sendo conquistado para a música erudita, que cresce de ano para ano, e o público que sendo conhecedor dessa música vai a esses concertos, é que a música seja tocada com competência e rigor. Do outro lado os músicos a quem foi colocado esse desafio pela organização que teve a audácia e inteligência de o lançar, verificaram, ao longos desses anos, que não só o universo de pessoas que acorre aos concertos aumenta como o seu ouvido se vai apurando. Isso sente-se tanto na direcção musical como em cada um dos músicos e cantores. Ao grande profissionalismo do primeiro concerto, agora, arriscamo-nos a dizer, adiciona-se uma adesão afectiva.
O Concerto deste ano assinalava o 40.º aniversário da Festa do Avante! Seria expectável um programa que celebrasse esse sucesso com enfoques diversos. Foi o que sucedeu com um alinhamento musical em que o todo foi constituído por duas partes praticamente distintas, sendo que a obra final, a Fantasia Coral, op. 80 em dó menor de Beethoven, retornava ao tom principal da primeira parte.
Não se pode dizer que a primeira obra tocada, L’Arlesienne n.º 2 de Bizet, tenha sido entusiasmante. Os desequilíbrios entre naipes e uma direcção que não os conseguiu ultrapassar não ajudaram a audição de uma obra que não figura entre as paradigmáticas de Bizet. Muito melhor o Va Pensierio da obra de Nabucco de Verdi. O trecho escolhido, o coro, é das músicas de Verdi mais tocadas e gravadas, tento integradas na ópera como com autonomia. Tem a aura, justa aura, de ser uma das músicas dos garibaldinos na luta pela reunificação de Itália, em que Verdi se empenhou e em que o seu nome servia para camuflar uma palavra de ordem clamando pelo rei unificador. Quando os patriotas italianos gritavam Viva Verdi estavam de facto dizer de forma dissimulada Viva Victor Emmanuel Re Di Italia, uma feliz coincidência. Va Pensiero foi interpretado competentemente, com o Coro Sinfónico Lisboa Cantat a anunciar a sua excelência.
Glinka, com a abertura de Ruslan e Ludmilla, foi a obra seguinte. Pode-se questionar a inclusão dessa obra de Glinka. No quadro geral do programa não se percebe bem esta escolha já que nas outras o sentido é mais óbvio, mesmo que obliquamente. Foi tocada com rigor mas sem grande brilho, o que ainda se tornou mais nítido quando uma obra relativamente menor Le Chant du Depart, de Étienne Nicolas Méhul, foi interpretada com um vigor por todos os intervenientes que souberam transmitir a glória que a música pretende por celebrar a vitória histórica dos revolucionários franceses voluntários, que mal armados e mal equipados, mas em quem ardiam as chamas da Revolução Francesa, derrotaram em Valmy os bem treinados e equipados exércitos austro-prussianos chamados por Luís XVI e pela austrichienne Maria Antonieta para salvar o Antigo Regime. Encerrou-se este capítulo com a abertura Coroliano de Beethoven, com as excitantes dificuldades que o compositor coloca em todas as suas obras e que foram ultrapassadas pela orquestra e pelo maestro.
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Na que se pode chamar segunda parte do concerto intercalaram-se obras corais populares ou de cariz mais popular com duas peças sinfónicas. Podia-se esperar que as assimetrias naturalmente decorrentes quebrassem a unidade do espectáculo. Isso não aconteceu. A um espiritual, Free at last, que adquiriu celebridade num comício de Martin Luther King, seguiram-se dois poemas de José Gomes Ferreira, Acordai e Jornada postos em música por Fernando Lopes-Graça, que integram o célebre cancioneiro antifascista Canções Heróicas. Se os acompanhamentos órgão, Filipe Melo, nos espirituais, e piano, António Rosado, foram exemplares o que há que sublinhar são as intervenções do Lisboa Cantat, sobretudo em Lopes-Graça que teve aqui talvez uma das melhores interpretações ao vivo. A fechar, do cancioneiro popular soviético ligado à II Guerra Mundial, Katyusha que o maestro Vasco Pearce Azevedo enriqueceu orquestrando.
Shostakovich sempre foi um homem complexo e torturado. A Sinfonia n.º 10 é provavelmente a sua obra mais pessimista, mesmo que ele quisesse que fosse de um pessimismo positivo. O 2.º andamento é tão breve como violento. Baseia-se em dois temas que são uma paráfrase de Boris Goudonov de Mussorgski tocados de maneira obsessiva sobre um tratamento rítmico quase primário o que produz um som totalmente novo, em sintonia com as angústias que devoravam o compositor. A execução foi irrepreensível, mas não conseguiu como Mravinsky ou Mariss Jansons penetrar na alma de Shostakovich. Transmitir toda a angústia que o consumia e passava para a pauta. Isto não é uma crítica. É uma nota porque grandes maestros com grandes orquestras também não o conseguiram ainda que as interpretações sejam excelentes. Antes da música de fecho um espiritual Ain that Good News e El Pueblo Unido jamas sera Vencido. Todos os louvores são poucos para o Lisboa Cantat não só pela qualidade, mas também por escapar aos maneirismos que poderiam contaminar a segunda canção.
A finalizar o concerto uma obra muito pouco ouvida de Beethoven, a Fantasia Coral em dó menor. É uma obra em que Beethoven faz algumas experiências musicais que ganhariam outra expressão em músicas posteriores. Um processo criativo normal no compositor que escreve obras geniais que lhe abrem caminho para outras obras igualmente geniais. Ouçam-se por exemplo os Quartetos e descubra-se o que aí se enuncia das sinfonias.
Sendo um concerto que lhe foi encomendado especialmente, nota-se particularmente o que ecoa de obras anteriores e o que anuncia de novas, nem sempre sem deixar as costuras à vista, o que não menoriza a obra.
Com destaque para a brilhante execução do pianista António Rosado, uma interpretação impecável, que colocou em palco todos os intervenientes neste concerto: a Orquestra Sinfonietta de Lisboa com a direcção de Vasco Pearce de Azevedo; o Coro Sinfónico Lisboa Cantat com a direcção de Jorge Carvalho Alves, a soprano Ana Paula Russo, o meio-soprano Cátia Moreno, o tenor Marco Alves dos Santos e o barítono Jorge Curvelo.
Nota final: este como os anteriores concertos sinfónicos de abertura da Festa do Avante! foram esquecidos pela comunicação social, como se numa festa popular como é a Festa do Avante! e com a sua dimensão isso fosse coisa de somenos.
O mais extraordinário é que os noticiários da RTP 1, supostamente obrigada a fazer serviço público, guardam normalmente os últimos minutos do seu noticiário de maior audiência para dar notas supostamente de interesse cultural. Não falha um desses «festivais alives» de músicas internacionais nos sentimentos e anglo-saxónicas na forma que se repetem sem fim. Ou para coisas importantíssimas como os Madre de Deus reaparecerem garantindo que deixaram de fabricar salsichas frescas, agora só enlatadas. Ou coisas quejandas do mesmo jaez aproveitando mesmo como se fosse notícia vídeos promocionais dos grupos ou cantores que por lá desfilam. Um concerto sinfónico numa festa popular, mesmo de um partido político, não merece menção. A música sinfónica deve ser, para essa gente, uma chatice. A selecção que fazem está ao nível dos livros do seu pivot Rodrigues dos Santos, um jihadista contra a literatura. As excepções, de tão brutalmente raras, confirmam estrondosamente a regra.
Quando o actual governo foi empossado disseram que o Ministro Cultura ficava também com a pasta da Comunicação Social. Não parece, até agora tudo mais ou menos na mesma! Na RTP 1, a de maior audiência, as outras são residuais, que programas culturais surgiram? Que notícias culturais são dadas? À cultura dizem nada!
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