Um desejo de golpe caracterizado por episódios dramáticos de extrema violência, entre os quais vou destacar apenas, para não me alongar, a chamada «estratégia de tensão», sucessão de actos terroristas nos anos setenta e oitenta executados por grupos «vermelhos» ou «negros», conforme calhava, e que tiveram por trás sectores dos serviços secretos nacionais e internacionais, bem como militares ligados a estruturas conspirativas e clandestinas da NATO; e o repugnante assassínio de Aldo Moro, carismático dirigente humanista da Democracia Cristã.
É um processo de golpe extenso no tempo e que, na fase mais recente, visa implantar um sistema bipartidário com um mínimo de peias políticas, «à americana», com um «centro-esquerda» e uma direita alternando no governo – ou até aliados – para cumprirem os mesmos objectivos políticos, económicos e financeiros da ditadura neoliberal de fachada democrática.
Na fase actual do golpe trata-se de «agilizar» as instituições, de modo a criarem governos rápidos, estáveis e expeditos, suprimindo o debate e os «inconvenientes» levantados pelo pluralismo de ideias que se expressa através do universo dos partidos políticos, seja qual for a dimensão de cada um.
Para tal, o agente de turno na condução da estratégia de golpe, Matteo Renzi, pretende impor a nova lei eleitoral, onde a força vencedora tem direito automático a maioria parlamentar absoluta, seja qual for a sua percentagem – através de um sistema de bónus de deputados –, e uma nova articulação das câmaras parlamentares, juntamente com a concentração dos poderes em Roma, retirados aos órgãos regionais e locais.
É na figura de Matteo Renzi e na estrutura do seu Partido Democrático que encontramos as raízes mais profundas da fase actual do golpe, lançadas em finais dos anos oitenta. Nessa altura, na ressaca do desmoronamento do muro berlinense, da União Soviética e do Tratado de Varsóvia, o cenário político italiano entrou numa convulsão que se caracterizou pela eliminação do Partido Comunista Italiano (PCI), o maior da Europa Ocidental, e do Partido Socialista, substituídos por uma criatura designada Partido Democrático, incarnando aquilo a que pode chamar-se a «terceira via blairista», isto é, a vertente pretensamente de «centro-esquerda» ou «social-democrata» das facções políticas neoliberais de que Renzi, Hollande e a sua corte são os expoentes de hoje.
Sempre se disse, tanto no auge da «estratégia de tensão» como no aproveitamento desestabilizador dos grupos ditos «maoístas» e de «extrema-esquerda» – de que as Brigadas Vermelhas foram o exemplo mais nocivo e sangrento – que a CIA tinha em Itália a sua principal plataforma na Europa, por razões geoestratégicas mas também para agir de perto contra o PCI.
Na verdade, a emergência do Partido Democrático traduziu o êxito absoluto da guerra contra os comunistas italianos, através da liquidação do seu partido, pelo que se pode afirmar, sem qualquer dúvida, que se a criação de tal entidade não foi obra da central de conspiração norte-americana, o resultado obtido é perfeitamente a seu contento.
«(Matteo Renzi) Tanto atacou
a democracia que a democracia
exercida através do voto lhe deu o troco.»
Importa recordar que a transfiguração política italiana não se ficou pela esquerda. À direita, também a velha Democracia Cristã foi desmantelada e dividida em grupúsculos, castigo por ter um dia caído no erro histórico de ousar admitir uma maioria de governo com apoio parlamentar dos comunistas – atitude tacitamente proibida pela NATO e por Washington e que, em boa verdade, custou a vida a Aldo Moro.
Da recomposição à direita saíram grupos às ordens de Berlusconi e, no presente, algumas expressões do populismo pós-mussoliniano. E enquanto se ouvem lamentos, uivos e ranger de dentes por causa do papel da extrema-direita na derrota do referendo de Renzi é oportuno lembrar que a eliminação da esquerda consequente e o liberalismo caótico e austeritário da União Europeia escancararam as portas para a plena afirmação do neofascismo italiano nas suas vertentes diversas, incluindo a berlusconiana.
A União Europeia não tem de que se queixar: colhe hoje, através da sua inevitável derrapagem para o abismo, aquilo que foi plantando em asfixia da democracia e na desumana perseguição aos cidadãos.
Por isso, parece-me importante lembrar ainda que foi Matteo Renzi quem, mal tomou conta da chefia do Partido Democrático, visitou o próprio Sílvio Berlusconi para com ele planificar a reforma constitucional que agora pretende impor, lei eleitoral incluída.
Ora acresce que a tentativa de imposição da reforma constitucional em clima de chantagem política, jogando (excesso de confiança) com o maniqueísmo «eu ou o caos», não foi a estreia de Matteo Renzi nas estratégias golpistas. Foi assim que ele próprio chegou à chefia do partido e do governo, assaltando o poder do seu correligionário Enrico Letta à cabeça do PD e do executivo, através de um congresso organizado graças a uma descarada manipulação do aparelho partidário.
E eis que o chão se abriu agora sob os pés do aprendiz de feitiçaria política Matteo Renzi, oriundo da área da Democracia Cristã e para quem as petroditaduras do Qatar e dos Emirados Árabes Unidos são regimes económicos nos quais a Itália e o resto da União Europeia deveriam por os olhos. Tanto atacou a democracia que a democracia exercida através do voto lhe deu o troco.
Agora há que ter a noção da gravidade da crise em que a Itália mergulhou, uma vez que no cenário político não existe rectaguarda sólida para o falhanço do golpe: a esquerda não tem expressão nem unidade que lhe permitam intervir, uma vez que está ainda dispersa numa miríade de grupos e movimentos; o Partido Democrático, na verdade uma coligação criada sem princípios, é um saco de gatos na luta pelo poder interno e nacional; a extrema-direita e o populismo parecem pujantes, mas balançando entre a decrepitude octogenária de Berlusconi e o niilismo e o aventureirismo do clown Grilo e seus comparsas.
Busca-se, mais uma vez, um chefe de governo tecnocrático – fala-se em Padoan, agente do FMI em funções de ministro das Finanças – para evitar eleições antecipadas e arrastar o problema, agravando-o.
À imagem de Itália, a União Europeia, sem conserto, arrasta-se numa agonia irreversível, enquanto os seus dirigentes centrais e nacionais falam como se tudo evoluísse no correcto sentido, insistindo em que os problemas explodindo por todo o lado nada têm a ver uns com os outros. E, com a União Europeia, todo o continente se vai precipitando no abismo, tecendo loas à moeda única e à «integração», teimando em olhar a avalanche xenófoba, racista e fascista como fenómeno passageiro, folclórico até.
De novo, um trágico engano.
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