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NATO, 75 anos de guerra contra a humanidade (I)

A NATO proclama-se em permanente cruzada pela democracia, atribuindo-se até o direito de invadir países para implantar um regime político que obedeça às suas exigências e onde as eleições dêem sempre os resultados por ela pretendidos.

Harry Truman (no centro), presidente dos EUA, observa o secretário de Estado Dean Acheson, enquanto este assina o Tratado do Atlântico Norte, a 4 de Abril de 1949 
Créditos / NATO

                         «A adesão à Aliança significou um maior prestígio e o reforço do estatuto de Portugal no seu conjunto. Também injectou um grau de estabilidade na frente doméstica».

             (Site oficial da NATO sobre a presença do Portugal de Salazar na fundação da organização)

Passaram os anos, exactamente três quartos de século, e a NATO da actualidade mantém-se uma fiel respeitadora dos mitos fundadores, actualizados por uma dinâmica propagandística que sempre esteve na base da sua actuação mas adquiriu hoje uma amadurecida sofisticação de mensagem e meios, além de uma capacidade de controlo totalitário quase absoluto da opinião pública ocidental. O que lhe permite praticar abertamente, e sempre a coberto da proclamação das melhores intenções, a política belicista, expansionista e colonial-imperial que determinou a sua criação.

Asseguraram os fundadores da NATO, entre os quais, com papel determinante, os estrategos da integração europeia – sempre sob a tutela dos Estados Unidos da América – que a aliança nascia como organização «defensiva» para se precaver contra as ameaças de grande envergadura, existentes naquele pós-guerra, visando a civilização ocidental, os seus valores humanistas e matriz religiosa. Essa tarefa deveria assentar numa convergência de práticas políticas, princípios de liberdade, harmonia dos sistemas económicos, integração dos aparelhos militares, tudo isso para cultivar e assegurar a paz no mundo. Não é um equívoco: a NATO de então, e de sempre, que durante sete décadas e meia se dedicou a uma estratégia de terror e provocação durante a guerra fria, que actualmente se desmultiplica em guerras sem fim, que tem nos seus activos as vidas de milhões de cidadãos inocentes e a cumplicidade em numerosos crimes de guerra, faz tudo isto em nome da paz. Fiel a um dos seus princípios de sempre: a paz nasce da guerra.

Além dos objectivos «defensivos» e de segurança, em nome dos quais se permite tutelar militarmente 32 países, quase o triplo dos 12 da fundação, e de ter alargado a sua área de intervenção para todos os oceanos em vez do norte do Atlântico, a NATO proclama-se em permanente cruzada pela democracia, atribuindo-se até o direito de invadir países para implantar um regime político que obedeça às suas exigências e onde as eleições dêem sempre os resultados por ela pretendidos.

O intrigante esquecimento da democracia

Se lermos os discursos dos 12 ministros dos Negócios Estrangeiros que assinaram em Washington, em 4 de Abril de 1949, o chamado Pacto do Atlântico que deu origem à NATO, apuramos, porém, que em nenhum deles está presente a palavra «democracia». Presume-se que não fosse assim tão necessário, em termos propagandísticos, declarar expressamente esse princípio, ao contrário do que acontece hoje – em que parece indispensável afirmar uma democracia única contra outros sistemas políticos plurais em países que têm o azar, ou a ousadia, de não se situarem no mesmo plano geoestratégico da Aliança Atlântica.

Também poderia atribuir-se a omissão da palavra «democracia» nos discursos fundadores ao facto de entre os signatários do pacto estar um representante de um país fascista, Portugal, acolhido sem reservas como um esteio da civilização ocidental, a não ser a de ter sido obrigado a trocar  as «ajudas» do Plano Marshall pela protecção e solidariedade política e diplomática do regime dos Estados Unidos.

O mesmo teria acontecido com a Espanha franquista – e Salazar meteu uma cunha nesse sentido – se o Reino Unido não se tivesse oposto liminarmente, não como país em si mesmo, mas porque o Partido Trabalhista, no governo, determinou que uma entrada de Madrid na aliança estava dependente da legalização por Franco do Partido Socialista Operário Espanhol.

«Também poderia atribuir-se a omissão da palavra "democracia" nos discursos fundadores ao facto de entre os signatários do pacto estar um representante de um país fascista, Portugal, acolhido sem reservas como um esteio da civilização ocidental, a não ser a de ter sido obrigado a trocar  as "ajudas" do Plano Marshall pela protecção e solidariedade política e diplomática do regime dos Estados Unidos.»

Na verdade, o conceito anti-nazifascista da NATO tem sido bastante elástico desde a fundação até hoje. Primeiro, admitindo um regime fascista na sua fundação; logo a seguir, três anos depois da criação, integrando como membros de pleno direito os fascismos grego e turco; posteriormente, durante a guerra fria, criando e apoiando sangrentas ditaduras militares na «defesa dos valores ocidentais» contra a omnipresente «ameaça soviética», hoje reciclada em «ameaça russa»; expandindo-se de maneira fulminante a seguir à queda do muro de Berlim, apesar de ter prometido à Rússia não avançar um centímetro que fosse para Leste; actualmente, por defender os seus interesses recorrendo à utilização de selváticos grupos terroristas ditos «islâmicos» e por se envolver até ao tutano na sobrevivência do regime nazi de Kiev, que criou, e na guerra contra o seu povo que este alimenta desde 2014.

Há uma coerência histórica, ao longo dos seus 75 anos de vida, na cumplicidade e na tolerância da NATO em relação a comportamentos nazifascistas. Ao ponto de hoje confundir deliberadamente o seu conceito de democracia com o sistema nazi ucraniano, que remete para o colaboracionismo sangrento com as hordas e o aparelho de extermínio de Hitler. Sem esquecer a integração plena na organização, como aliás acontece na União Europeia, de regimes como os dos Estados bálticos, Polónia, Hungria, República Checa e Croácia, altamente influenciados ou mesmo controlados por correntes nacionalistas, fascistas e revisionistas da história no sentido de branquear as referências que mantêm em relação à Alemanha hitleriana.

Se penetrarmos ainda um pouco mais fundo na história da NATO verificaremos, já sem grande surpresa, que os seus fundadores não hesitaram em recorrer a condecorados oficiais nazis, acabados de sair das hostes de Hitler, para criarem as fundações das estruturas militares e de propaganda da organização, como veremos mais adiante.

A NATO como berço da União Europeia

A NATO nasceu grávida da integração europeia que, 50 anos depois, culminou na União Europeia como instituição autárcica, globalista, federalista e inimiga das soberanias nacionais, funcionando exclusivamente ao serviço da oligarquia económica e financeira transnacional através do neoliberalismo, o sistema de capitalismo extremista e selvagem. Os Estados Unidos exerceram, desde o início, a tutela inquestionável sobre este processo, pelo que não existe qualquer alteração substancial na actual submissão rastejante de Bruxelas à vontade de Washington, mesmo quando representada por um indivíduo desqualificado e com as capacidades mentais limitadas como é o presidente Joseph Biden. A dependência dos países da NATO e da União Europeia em relação aos interesses e às políticas imperiais de Washington, transformando-os em satélites, autênticos protectorados, esteve na essência da NATO na origem, tal como está hoje.

«Há uma coerência histórica, ao longo dos seus 75 anos de vida, na cumplicidade e na tolerância da NATO em relação a comportamentos nazifascistas.»

A cerimónia de criação da NATO decorreu em Washington, cumprem-se agora exactamente 75 anos, e o Pacto do Atlântico foi assinado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros dos 12 Estados fundadores. Outras nações, como a Irlanda e a Suécia, também foram convidadas, mas rejeitaram. A Suécia, no entanto, demorou 74 anos a «pensar» e acabou por ceder: pelo caminho da longa neutralidade sueca ficou um primeiro-ministro, Olof Palme, de facto assassinado por defender, sem admitir interferências externas, o estatuto de soberania do país. Tal como o primeiro-ministro italiano democrata-cristão Aldo Moro foi liquidado por desobedecer às ordens da NATO, de proibir a presença de comunistas na área do poder governativo.

Os discursos pronunciados no acto fundador foram bastante redundantes, com a preocupação comum de alimentarem a fábula da superioridade civilizacional do Ocidente, um conceito xenófobo e colonial que marca os três quartos de século de existência da NATO; e agitarem com tonalidades terroristas o espectro da ameaça soviética, qualificada como «uma epidemia» na verve do ministro fascista português Caeiro da Matta, ecoando a propaganda salazarista.

Mais interessante que os discursos é conhecer um pouco melhor os ministros presentes em Washington e os seus dotes especiais para as performances hipócritas.

Pelos Estados Unidos esteve o secretário de Estado da administração militarista de Harry Truman, Dean Acheson. Declarou na ocasião que «a realidade não reside na busca comum de objectivos materiais ou de um poder sobre outro. Reside na afirmação dos valores morais e espirituais que rege o tipo de vida que propomos levar e defender por todos os meios possíveis, caso essa necessidade nos seja imposta».

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O terrorismo da NATO no seu esplendor

«Chegámos, vimos e ele morreu», proclamou imperialmente Hillary Clinton após o desfecho da bárbara operação de tortura e execução de Muammar Khaddafi, supervisionada pelos serviços secretos franceses

Habitantes locais mostram a jornalistas casas destruídas e corpos de civis mortos por bombardeamentos da coligação da NATO, em Tripoli, a 19 de Junho de 2011 
CréditosMAHMUD TURKIA / AFP VIA GETTY IMAGES

Em Março de 2011, quando a NATO já bombardeava a Líbia, Muammar Khaddafi enviou uma mensagem ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, lembrando que as forças de segurança do seu país estavam «a combater a al-Qaeda no Magrebe islâmico, nada mais», pelo que a intervenção estrangeira «era um risco de consequências incalculáveis no Mediterrâneo e na Europa». O apelo do dirigente líbio não surtiu efeito: afinal, para as forças atlantistas a operação não era «um risco» mas sim uma estratégia deliberada – para todos os efeitos, uma estratégia terrorista.

A Líbia de hoje, moldada pela NATO sob o comando de Obama, Joseph Biden, presidente dos Estados Unidos em funções, e Hillary Clinton, um suporte da actual administração norte-americana omnipresente nos bastidores, é uma amostra em carne viva das práticas efectivamente terroristas da Aliança Atlântica. Um país desgovernado, desmembrado, um viveiro de mercenários terroristas «islâmicos» sob múltiplas chancelas que deixam os seus rastos de horrores através do Médio Oriente e África, da Síria a Cabo Delgado, em Moçambique; um país que funciona como um florescente entreposto de comércio de drogas, tráfico de seres humanos, um maná de petróleo de alta qualidade para as multinacionais francesas, britânicas e norte-americanas e, simultaneamente, um imenso campo de concentração para refugiados de incontáveis origens sustentado pelos contribuintes da União Europeia.

« A Líbia de hoje, moldada pela NATO sob o comando de Obama, Joseph Biden, presidente dos Estados Unidos em funções, e Hillary Clinton, um suporte da actual administração norte-americana omnipresente nos bastidores, é uma amostra em carne viva das práticas efectivamente terroristas da Aliança Atlântica»

Não existem indícios de que a situação tenda a melhorar. Negoceia-se apenas para negociar e para dar cobertura às actividades criminosas e desumanas instauradas na esteira da operação da NATO. O «governo» de Tripoli foi entregue à Irmandade Muçulmana sob tutela da ONU, isto é, dos Estados Unidos; o «governo de Benghazi» é um instrumento do «general» Khalifa Haftar, reconhecidamente um activo da CIA desde que desertou das hostes de Khaddafi; pelo meio campeiam os poderes de milícias «islâmicas» e estruturas sectárias de índole tribal vivendo de uma rica panóplia de negócios criminosos que vão desde a guerra aos tráficos de droga e humano passando pelo contrabando de petróleo e pela multiplicação de «guardas costeiras» patrocinadas directa e indirectamente pela União Europeia – braços dos grupos que controlam o tráfico de refugidos.

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O capitalismo em guerra sobre os escombros da Líbia

A realidade da situação da Líbia está para lá do que possam conceber as imaginações mais treinadas em tentar perceber os sentidos dos desenvolvimentos na arena internacional.

Forças aliadas do governo de Tripoli, apoiado pela ONU, em Sirte, Líbia, a 12 de Março de 2019.
CréditosAyman Al-Sahili / Reuters

A herança caótica deixada pela agressão da NATO contra a Líbia e que se aprofunda há quase nove anos está a degenerar numa situação aterradora de guerras cruzadas, motivadas por múltiplos interesses, capaz de fazer explodir alianças político-militares, afinidades religiosas e relações institucionais – com repercussões em todo o panorama internacional. O início, no dia de Natal, da transferência de terroristas da Al-Qaeda da Síria para território líbio, de modo a reforçar as forças do governo de Tripoli reconhecido pela ONU e a União Europeia, é apenas um dos muitos movimentos em curso na sombra dos holofotes mediáticos. E a Turquia acaba de aprovar o envio de tropas regulares para a Líbia.

A realidade da situação da Líbia está para lá do que possam conceber as imaginações mais treinadas em tentar perceber os sentidos dos desenvolvimentos na arena internacional. Habituada às notícias quase rotineiras relacionadas com os movimentos migratórios nas costas líbias e aos altos e baixos da guerra das tropas do governo de Benghazi contra as forças do executivo de Tripoli, a opinião pública mundial não faz a menor ideia do que está a acontecer. E do que pode vir a suceder de um momento para o outro.

A Líbia deixada pela guerra de destruição conduzida pela aliança entre a NATO e grupos terroristas islâmicos do universo Al-Qaeda/Isis tem actualmente três governos, além de um xadrez de zonas de influência controladas por milícias armadas correspondentes a facções tribais, tendências religiosas ou simples negócios de oportunidade, à cabeça dos quais estão o contrabando de petróleo e o tráfico de seres humanos.

«A Líbia deixada pela guerra de destruição conduzida pela aliança entre a NATO e grupos terroristas islâmicos do universo Al-Qaeda/Isis tem actualmente três governos, além de um xadrez de zonas de influência controladas por milícias armadas correspondentes a facções tribais, tendências religiosas ou simples negócios de oportunidade, à cabeça dos quais estão o contrabando de petróleo e o tráfico de seres humanos»

Os três governos em actividade são: o chamado Governo de Unidade Nacional, com sede em Tripoli, chefiado por Fayez al-Sarraj, apoiado pela Irmandade Muçulmana e reconhecido pela ONU e a União Europeia; o governo de Benghazi, apoiado pela Câmara dos Representantes – única entidade eleita no país – e cujo homem forte é o agora marechal Khalifa Haftar, à frente das tropas do chamado «Exército Nacional Líbio»; e um governo instalado no hotel Rixos, em Tripoli, formado pela Irmandade Muçulmana e do qual se diz que ninguém reconhece mas tem muitos apoios.

Nos últimos meses, a ofensiva das tropas do marechal Haftar chegou às imediações de Tripoli mas não conseguiu tomar a capital, apesar dos sangrentos bombardeamentos. Nos bastidores desta guerra diz-se que nenhum dos beligerantes está em condições de levar a melhor, esgotando-se num conflito sem solução à vista.

Uma guerra internacional

A guerra está num impasse, o caos e a ingovernabilidade agravam-se, mas não existe qualquer esforço de entendimento entre as facções líbias. Pelo contrário, cada centro de poder tem vindo a ser reforçado no quadro das perspectivas de continuação do conflito – porque não se trata de uma guerra civil, mas de uma guerra internacional.

No dia de Natal, como já se escreveu, começou a deslocação de grupos terroristas filiados na Al-Qaeda da província de Idlib, na Síria, para a Líbia. A movimentação é patrocinada pela Turquia, que deixou claro aos mercenários islâmicos que a única possibilidade de se salvarem da ofensiva final das tropas governamentais sírias é abandonarem as posições que ainda ocupam e, de certa forma, regressarem às origens. Recorda-se que grande parte dos terroristas que combateram na Síria contra o governo de Damasco foram transportados da Líbia, onde estiveram ao serviço da coligação com a NATO.

«A guerra está num impasse, o caos e a ingovernabilidade agravam-se, mas não existe qualquer esforço de entendimento entre as facções líbias. Pelo contrário, cada centro de poder tem vindo a ser reforçado no quadro das perspectivas de continuação do conflito – porque não se trata de uma guerra civil, mas de uma guerra internacional»

A operação iniciada no Natal foi montada pela Turquia com a colaboração da Tunísia: o presidente Erdogan acordou com o seu homólogo tunisino, Kais Saied – apoiado pela Irmandade Muçulmana – a utilização do porto e do aeroporto de Djerba para transporte dos grupos armados e material militar em direcção a Tripoli e Misrata, onde irão engrossar as fileiras do Governo de Unidade Nacional (GUN).

Em 15 de Dezembro, o presidente turco recebera em Istambul o chefe do GUN, al-Sarraj, a quem prometeu a entrega de drones e blindados ao exército às ordens do governo reconhecido pela ONU e a União Europeia; o legislativo turco acaba de aprovar o envio de forças militares regulares para a Líbia. Ao mesmo tempo, a Turquia acelerou o processo de produção de seis submarinos militares, encomendados à Alemanha.

Choques petrolíferos

A Turquia foi um dos países aos quais o governo de Tripoli pediu auxílio quando se iniciou a ofensiva das forças de Khalifa Haftar. Al-Sarraj dirigiu-se também à Argélia, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. Sabe-se, entretanto, que Washington está de bem com todos os governos da Líbia e vê com muito bons olhos a continuação do conflito.

Não existem dúvidas, porém, de que foi a Turquia quem mais rápida e concretamente respondeu aos apelos do governo instalado em Tripoli.

Há razões que explicam porquê.

Erdogan revelou que assinou um acordo de princípio com al-Sarraj para exploração conjunta de petróleo no Mediterrâneo, podendo para isso dispor de instalações portuárias líbias – que se juntam assim às que a Turquia já utiliza em Chipre, onde ocupa militarmente o norte do país.

Como a Turquia tomou conta, em termos de exploração petrolífera, das águas territoriais de Chipre que confinam com o sector ocupado, o acordo com o governo de Tripoli proporciona uma combinação de Zonas Económicas Exclusivas que atingem águas cipriotas e gregas. A actuação de Ancara parece violar a Convenção do Direito Marítimo (UNCLOS), que aliás a Turquia ainda não assinou.

Em 22 de Dezembro, exactamente uma semana depois do encontro entre Erdogan e al-Sarraj em Istambul, o ministro grego dos Negócios Estrangeiros, Nikos Dendios, foi directamente a Benghazi encontrar-se com o próprio Khalifa Haftar e outros representantes do governo local. Depois viajou para o Cairo e para Chipre.

«a opinião pública mundial não faz a menor ideia do que está a acontecer. E do que pode vir a suceder de um momento para o outro. […] a guerra internacional com epicentro na Líbia passa pelo meio da NATO e da União Europeia»

Atenas exige ao governo de Tripoli que se retire do acordo de incidência petrolífera e militar com a Turquia, num quadro em que as relações greco-turcas estão no nível mais elevado de agressividade de há muito tempo a esta parte.

Sabe-se ainda que a Grécia pretende accionar a NATO e a União Europeia para que cancelem o reconhecimento do governo líbio de Tripoli. Em suma, a guerra internacional com epicentro na Líbia passa pelo meio da NATO e da União Europeia.

Acresce que esta dança política, diplomática e militar decorre em simultâneo com os movimentos norte-americanos para usar a Grécia como antídoto à degradação das relações com a Turquia e no âmbito de um novo quadro de segurança regional para bloquear a Rússia no Mar Negro.

Isto é, Washington usa um membro da NATO contra outro membro da NATO e dá um novo passo na estratégia de quebrar as relações entre Atenas e Moscovo originalmente assentes em afinidades religiosas que têm vindo a ser deterioradas por conspirações dentro da Igreja Ortodoxa iniciadas na Ucrânia.

Não é difícil confirmar o ecumenismo dos Estados Unidos em relação aos governos líbios. Se está ao lado do executivo de Tripoli, juntamente com a União Europeia, a ONU e a NATO, também aposta em Benghazi, como se percebe através da estratégia montada com a Grécia.

O xadrez dos gasodutos

São amplos os cenários de confrontação a partir da situação líbia. Mais amplos ainda porque os acordos entre Ancara e o governo de Tripoli vêm potenciar a crise aberta com a exploração ilegal de petróleo pela Turquia na Zona Económica Exclusiva de Chipre.

Em causa não estão apenas interesses cipriotas, mas também da Grécia e de Israel, parceiros na exploração de hidrocarbonetos no Mediterrâneo e respectiva distribuição através do eixo Griscy (de Grécia, Chipre e Israel) – ideia fortemente encorajada pelos Estados Unidos para criar vias que permitam à Europa ter mais alternativas às fontes russas de energia. Trata-se de uma opção contra a Rússia que atinge também a Turquia, porque põe em causa o gasoduto turco-russo Turkish Stream.

Deste modo, não é surpreendente que a Turquia tenha procurado patrocinar o governo líbio de Tripoli.

Surpreendente, em termos abstractos, deveria ser a declaração do marechal Khalifa Haftar segundo a qual o governo de Benghazi tem todo o interesse em fazer entendimentos com Israel.

«Washington está de bem com todos os governos da Líbia e vê com muito bons olhos a continuação do conflito»

Na realidade, aprofundando a leitura desta declaração à luz da guerra internacional em torno da Líbia iremos encontrar países como a Arábia Saudita e o Egipto – muito próximos de Israel – ao lado de Khalifa Haftar em termos financeiros, políticos e militares; não espanta que Israel se junte ao grupo por estas afinidades e pelas explicadas razões energéticas. Através das quais iremos encontrar Estados Unidos Israel, Grécia e Chipre em oposição a um governo reconhecido por ONU, União Europeia, NATO e… Estados Unidos.

Sinal dos tempos

As frentes em confronto nesta guerra da Líbia são um sinal dos tempos. Os tempos em que os conflitos de interesses inter-capitalistas começam a dissolver linhas que definem alianças político-militares, coligações de países, associações regionais, afinidades religiosas, políticas e sistémicas que têm formatado o mundo desde a queda do Muro de Berlim. Com a particularidade de entidades como a NATO e a União Europeia não estarem a salvo da turbulência.

Tomemos como exemplo o assustador caso líbio. Do lado do governo de Tripoli, cuja legitimidade representativa do país é reconhecida pela ONU e a União Europeia, estão a Turquia, a Tunísia, o Qatar e terroristas islâmicos do universo Al-Qaeda e Estado Islâmico defendendo interesses económicos que coincidem com os da Rússia.

Do lado de Khalifa Haftar e do seu governo de Benghazi estão os Estados Unidos, Israel, Egipto, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, países da União Europeia como Chipre e Grécia, além de forças de reacção rápida sudanesas, mercenários russos e grupos terroristas próprios de uma região, a Cirenaica, considerada das mais fortes no abastecimento do extremismo islâmico internacional. Saif Khaddafi, filho do dirigente líbio assassinado pela NATO, juntou-se igualmente a Haftar1.

São dados a ter em conta quando a nova tragédia da Líbia explodir, então já sob os holofotes mediáticos.

  • 1. Ayesha Khaddafi, irmã de Saif, apelou aos líbios para repelirem a invasão turca, em declarações à Jamahiriya Satellite TV: «quando as botas dos soldados turcos profanarem a nossa terra, adubada pelo sangue dos nossos mártires, se não houver entre vós que alguém para repelir esta agressão, então deixem o campo de batalha às mulheres livres da Líbia, e eu estarei entre as primeiras». Ver Almarsad, 3 de Janeiro de 2020.
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A situação caótica alimenta-se a si própria; com ela convive tranquilamente o chamado «mundo civilizado», que realmente em nada contribui para tentar resolvê-la.

A mensagem de Khaddafi para Obama só podia ter o destino que teve porque aqueles que foram destruir a Líbia não tinham «riscos» a medir mas uma estratégia a cumprir. E esta continua à vista de todos: terrorista e colonial.

«… E ele morreu»

«Chegámos, vimos e ele morreu», proclamou imperialmente Hillary Clinton, então secretária de Estado de Obama, após o desfecho da bárbara operação de tortura e execução de Muammar Khaddafi, supervisionada pelos serviços secretos franceses1. O presidente francês em exercício, Nicolas Sarkozy, era dos mais interessados em silenciar o dirigente líbio, sobretudo depois de ter deflagrado o escândalo dos apoios milionários de Khaddafi à sua eleição.

Não houve qualquer «intervenção humanitária» na Líbia, ao contrário do que foi invocado pelos agressores2. Nem o Congresso dos Estados Unidos deu autorização ao presidente para realizar os bombardeamentos3, alegando que Obama não apresentou qualquer razão que os justificasse.

«a criação de mecanismos económicos e monetários de índole especificamente africana, como por exemplo o Fundo Monetário Africano e uma moeda pan-africana, […] que minariam a estrutura neocolonial estabelecida pelas principais potências, sobretudo a França, que controla o franco CFA (moeda da África Central), foram impulsionadas pela Líbia de Khaddafi com base nos 150 mil milhões de dólares em activos no estrangeiro e nas reservas de ouro em 25 países que ascendiam a quase 150 toneladas. Tais circunstâncias transformaram a agressão da NATO contra a Líbia numa típica operação colonial»

A violência na Cirenaica invocada sobretudo pelo Departamento de Estado norte-americano para desencadear a «Responsability to Protect (R2P)», a suposta responsabilidade de proteger populações civis através de operações armadas, foi empolada para provocar a agressão. Os próprios e-mails de e para Hillary Clinton, em boa hora tornados públicos pelo website WikiLeaks – uma das principais razões da sanha persecutória contra Julian Assange –, reconhecem isso mesmo. Duas semanas antes de iniciados os bombardeamentos, uma enviada da USAID, Harriet Spanos, comunicou a Clinton que «Benghazi tem estado calma nos últimos dias, a actividade económica continua, lojas e bancos estão abertos, os telemóveis funcionam e a internet regressou».

As supostas urgências «humanitárias funcionaram, mais uma vez, como pretextos para desencadear uma guerra e provocar uma mudança de regime programada alguns anos antes. Em 2 de Março de 2007, um ex-comandante da NATO, o general norte-americano Wesley Clark, enunciou os sete países «a desmantelar» pelos Estados Unidos: Iraque, Líbia, Síria, Irão, Somália, Sudão e Líbano. Mais tarde sublinhou: «a invasão da Líbia por Obama foi planeada na administração Bush; a Síria é a seguir». O general sabia do que falava; e ainda hoje nos ajuda a perceber o que está a acontecer com o Irão e o Líbano.

Os preciosos e-mails de e para Clinton confirmam, por outro lado, que a inclusão de hordas de mercenários «islâmicos» no dispositivo operacional da NATO para desmantelamento da Líbia foi uma opção estratégica idêntica à assumida noutros teatros de operações, como por exemplo na Síria e no Iraque, embora de maneira menos assumida.

Uma criança africana é resgatada por um membro da ONG Proactiva Open Arms no Mar Mediterrâneo a 20 milhas náuticas a norte da Líbia, 3 de Outubro de 2016. CréditosAris Messinins / AFP

Numa mensagem de correio electrónico enviada a Hillary Clinton dedicada à necessidade de «estabelecer a segurança no Norte de África», Sidney Blumenthal, conselheiro da secretária de Estado, assume «que o regime de Khaddafi tem tido êxito em suprir a ameaça jihadista na Líbia, pelo que a situação actual (aliança da NATO com o terrorismo islâmico) abre a porta ao ressurgimento do jihadismo».

No aparelho político dos Estados Unidos e da NATO havia, portanto, uma noção real das relações de forças, pelo que a aliança operacional com o terrorismo islâmico foi deliberada e transformada numa estratégia que não funcionou apenas no cenário líbio.

Uma questão de urgência

A agressão contra a Líbia foi uma operação de mudança de regime de certa maneira atípica e ditada por urgências que não se registaram noutros casos em que foi dispensada uma tão evidente – e comprometedora – intervenção massiva e continuada de forças aéreas da NATO.

O ano de 2011 seria o do início da criação de mecanismos económicos e monetários de índole especificamente africana, como por exemplo o Fundo Monetário Africano e uma moeda pan-africana que permitiria, por exemplo, contornar o dólar em relações comerciais, designadamente no campo energético.

Essas acções, que minariam a estrutura neocolonial estabelecida pelas principais potências, sobretudo a França, que controla o franco CFA (moeda da África Central), foram impulsionadas pela Líbia de Khaddafi com base nos 150 mil milhões de dólares em activos no estrangeiro e nas reservas de ouro em 25 países que ascendiam a quase 150 toneladas.

Tais circunstâncias transformaram a agressão da NATO contra a Líbia numa típica operação colonial. Uma das primeiras decisões da administração Obama, coincidente com o início da guerra, foi o congelamento dos activos financeiros líbios no estrangeiro – cerca de 100 mil milhões de dólares só em países da NATO – e das suas reservas de ouro.

«Dez anos passados, a Líbia continua de rastos. Aquele que foi o mais desenvolvido país de África, com um crescimento de 16,6% em 2010 e o 55º entre 194 no índice de desenvolvimento humano da ONU, caiu mais de 50 lugares nesta tabela [...]. Perante um Estado destruído, um quinto dos 7,5 milhões de habitantes necessitam agora verdadeiramente de ajuda humanitária – que não lhes chega – e mais de 700 mil carecem de apoio alimentar»

O congelamento traduziu-se, de facto, num esbulho. Quando os mecanismos internacionais do costume, o Banco Mundial e o FMI, começaram a estabelecer os orçamentos e os condicionalismos económicos e político-sociais a impor ao Estado líbio destruído, parte desses activos – o resto continua em parte incerta, mas certamente não é usado em proveito do povo líbio – transformaram-se em empréstimos à própria Líbia. Moral da história: um país que não tinha dívida externa, essencialmente porque geria a riqueza energética em proveito da própria população, passou a receber o dinheiro que lhe pertence sob a forma de empréstimos de instâncias internacionais.

Dez anos passados, a Líbia continua de rastos. Aquele que foi o mais desenvolvido país de África, com um crescimento de 16,6% em 2010 e o 55º entre 194 no índice de desenvolvimento humano da ONU, caiu mais de 50 lugares nesta tabela em menos de uma década. Perante um Estado destruído, um quinto dos 7,5 milhões de habitantes necessitam agora verdadeiramente de ajuda humanitária – que não lhes chega – e mais de 700 mil carecem de apoio alimentar.

Esta é a obra da NATO, realizada em colaboração com terroristas islâmicos, alguns dos quais autores de crimes contra populações europeias. Abdelhakim Belhadj, por exemplo, que a NATO transformou em comandante militar de Tripoli antes de ser enviado para organizar os mercenários «islâmicos» na Síria, esteve envolvido no atentado ferroviário de Madrid em 2004, que provocou 193 mortos. E Abu Sufian bin Qumu, veterano terrorista que serviu a al-Qaeda e Bin Laden no Sudão e no Afeganistão, em 2011 treinou «rebeldes islâmicos» aliados da NATO em Derna, Cirenaica, depois de ter passado seis anos no campo de concentração de Guantánamo.

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Rússia tomará «medidas adicionais» se a NATO destacar tropas para a Ucrânia

O aviso do Kremlin sobre o reforço das fronteiras russas ocorre depois de Kiev se ter referido à «postura pró-activa» dos EUA no «apoio à soberania» e «restauração da integridade territorial» ucraniana.

Soldados ucranianos (imagem de arquivo) 
A NATO tem vindo a reforçar a sua presença no chamado Flanco Leste Créditos / @14Milimetros

Moscovo alertou que não irá ficar de braços cruzados caso a NATO destaque tropas para a Ucrânia, um passo que «levaria a um novo aumento de tensões perto das fronteiras» e que «requererá medidas adicionais por parte da Rússia para garantir a sua segurança», afirmou esta sexta-feira à imprensa Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin.

Antes disto, revela a RT, o Ministério ucraniano da Defesa emitiu um comunicado sobre a conversa telefónica mantida dia 1 de Abril com o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, que comunicou aos ucranianos a «postura pró-activa» do seu país «no apoio à soberania e aos passos para restaurar a integridade territorial da Ucrânia».

«Os EUA não deixarão a Ucrânia sozinha face à escalada da agressão da Rússia», afirmou o Ministério ucraniano da Defesa, que acusa Moscovo de anexar e ocupar a Crimeia, e de apoiar o movimento de resistência antifascista na região do Donbass, no Leste do país, onde recentemente, lembra a RT, se registaram novos episódios de violência na linha de demarcação com os territórios das repúblicas de Donetsk e Lugansk.

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Secretário-geral da NATO entrevistado na RTP

Fascismo na Ucrânia ou destruição da Líbia? Não, ameaça russa!

Na entrevista que a RTP1 transmitiu esta segunda-feira, Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, falou dos «muitos desafios complexos» com que a Aliança Atlântica se depara, mas nada do expansionismo militarista e das guerras de rapina que promove.

Em entrevista à RTP, Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, disse, sem «mea culpa», que a Aliança se depara com «muitos desafios complexos ao mesmo tempo»
Créditos / politico.eu

Quem tiver visto e ouvido, de cabo a rabo, a conversa de Stoltenberg ontem à noite na RTP terá ficado com a impressão de ter acabado de ver e ouvir o cavaleiro branco de uma «santa aliança» pronta a dar cabo dos negrumes do mundo: terrorismo, o Daesh ou chamado Estado Islâmico, as ameaças cibernéticas, a assertividade da Rússia, a proliferação de armas na Coreia do Norte, os conflitos que «existem» no Norte de África, no Médio Oriente, Iraque, Síria, Afeganistão.

Conflitos que por aí «há», que por aí «surgiram», e a que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, na sigla em inglês) tem de fazer frente.

Apesar de ter passado uma boa parte da entrevista a falar da Rússia, no início o secretário-geral da NATO rejeitou a ideia de que a Aliança Atlântica esteja a «enfatizar a tensão com a Rússia na Europa de Leste», sublinhando que «a maior operação militar de sempre» da NATO decorre no Afeganistão. Não fez, no entanto, qualquer menção ao histórico, mais recente ou afastado, do intervencionismo dos «aliados da NATO» no país da Ásia Central. Também não se esperava que falasse de Reagan e talibans.

Referindo-se à acção global da Aliança Atlântica, disse que esta integra «a coligação global para derrotar o Daesh» e que a NATO «fez muitos progressos nessa coligação, derrotando o Daesh no Iraque e na Síria». Mais à frente, não se quis comprometer em excesso, afirmando que a NATO não está no terreno no Norte da Síria: «Apoiamos a coligação com aviões-radar, mas não estamos no terreno», disse.

«Também não se esperava que falasse de Reagan e talibans.»

Nem «ai», nem «ui» sobre o facto de a coligação internacional que opera na Síria o fazer sem autorização do governo de Damasco e sem um mandato das Nações Unidas. E, aqui, também não houve menção ao esforço da Rússia – ao lado de Damasco.

«A Nato está preparada para defender qualquer aliado, contra qualquer ameaça, é essa a mensagem principal, o ideal principal da NATO», disse, salientando que «a razão pela qual a NATO é forte e unida não é para provocar um conflito, mas sim para evitar um conflito». Percebe-se o ultraje sentido por quem olha para o mundo e vê as guerras de agressão e saque do capitalismo, as operações de desestabilização fomentadas pelos Estados Unidos da América no pátio traseiro global – as de agora e outras mais –, tendo a NATO por braço armado.

O ex-primeiro-ministro norueguês trouxe ainda à tona a ideia da «paz na Europa durante quase 70 anos, um dos mais longos períodos de paz durante séculos na Europa», sem lhe ocorrer a menção da destruição da Jugoslávia e do golpe de 2014 na Ucrânia, com o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia (UE), com a guerra subsequente no Donbass, onde a população rejeitou a ameaça fascista e se ergueu em armas.

Diálogo, sim, mas a culpa é da Rússia

Sobre a Rússia, Jens Stoltenberg afirmou que «é possível combinar defesa, dissuasão e diálogo». Ou seja, deu sequência ao discurso do vizinho maléfico que acossa a Europa em paz com os seus bandos de hackers e as suas campanhas de propaganda e desinformação. O secretário-geral da NATO disse mesmo que a Rússia está «mais assertiva». Tão marota que até usa «ferramentas diferentes» e, por isso, a impoluta NATO «está a responder com o reforço das ciberdefesas». A UE também já se precaveu.

«Parceria estratégica» com a Rússia é coisa que não existe – não por falta de tentativa da NATO, frisou, mas porque Moscovo «decidiu tentar reestabelecer esferas de influência e, de certa forma, controlar os seus vizinhos, como vimos na Geórgia, Moldávia e na Ucrânia».

E isto é algo que a NATO, tutelada pelos Estados Unidos da América, carregada de arsenais em prol da paz no mundo e a cavalgar há anos sobre os despojos da União Soviética e amigos, não pode tolerar. Assim, a NATO vai procurar uma forma de dizer que «são firmes», que «são fortes», mas tentando reduzir a tensão, para evitar um conflito e manter um diálogo, disse Stoltenberg.

Já a Rússia não tem nada de se preocupar com o facto de estar rodeada por países que se tornaram membros da NATO, pois foi uma decisão de «nações soberanas e independentes». E, se preocupações tem quanto à existência de uma Frente Leste da Aliança Atlântica, a culpa é sua, «consequência directa das [suas] acções agressivas contra a Ucrânia», justificou Stoltenberg, aludindo à situação no Donbass, no Leste da Ucrânia, e à reintegração da Crimeia na Federação Russa.

O secretário-geral da NATO insiste que a integridade territorial e a soberania da Ucrânia foram violadas na Crimeia e no Donbass, por forças apoiadas pela Rússia e com apoio militar russo, mas, como se estivesse num universos paralelo, não fez uma alusão, ao golpe de 2014 em Kiev, ao fascismo na Ucrânia – ou na Polónia ou na Letónia. Nem se referiu como, em Julho do ano passado, a NATO promoveu os Irmãos da Floresta, que lutaram «contra o Exército Vermelho pelas suas pátrias», no Báltico, e que integravam muitos membros das SS nazis ou colaboradores com as forças nazis invasoras.

EUA reforçam presença militar na Europa

O secretário-geral da NATO afirmou que os EUA têm mostrado que «estão empenhados nos laços transatlânticos», acrescentando que Washington está mesmo a aumentar a presença militar no continente europeu, depois de anos de declínio. «É um compromisso que vemos não são só em palavras, mas também em factos», frisou Stoltenberg.

Não abordando a questão do aprofundamento da militarização da UE, a criação da chamada cooperação estruturada permanente (CEP) e a complementaridade – que já defendeu noutros momentos – entre aquilo a que chama Defesa Europeia e a NATO, o responsável da Aliança Atlântica sempre se referiu à necessidade de cooperar em matéria de defesa na UE para «resolver a fragmentação da indústria de defesa europeia».

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Peskov, por seu lado, sublinhou que a percepção da Rússia como inimigo e adversário é «deslocada» e «inadmissível», uma vez que Moscovo «não ameaça ninguém e nunca o tinha feito», baseando toda a sua política neste principio, informa o portal russo.

Na quinta-feira, em resposta a alertas do lado ucraniano sobre movimentações de tropas russas junto à fronteira, Peskov já tinha afirmado que a transferência de tropas dentro da Federação Russa não devia preocupar ninguém, nem constitui uma ameaça para ninguém, revelou a TASS.

O funcionário do Kremlin reafirmou que «as tropas russas nunca participaram, nem estão a participar agora em conflitos armados em solo ucraniano», acrescentando, citado pela mesma fonte, que «nem a Rússia, nem os países europeus, nem outros países do mundo gostariam de ver a guerra civil na Ucrânia incendiar-se outra vez como resultado das provocações e dos passos provocadores dos militares ucranianos».

«A realidade na linha de contacto é bastante aterradora»

No Donbass, região do Leste da Ucrânia de maioria russa, onde as populações se insurgiram contra o golpe de Estado fascista de Maidan que depôs Viktor Yanukovich, em 2014, patrocinado pela União Europeia e os Estados Unidos, e onde foram autoproclamadas as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, a situação agudizou-se no passado dia 26 de Março, segundo a RT, com a morte de quatro soldados das Forças Armadas ucranianas, perto da localidade de Shumy, embora outras fontes assinalem, já há algum tempo, a violação repetida do cessar-fogo por parte das tropas ucranianas.

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Resistência antifascista em Donbass

O novo governo, imposto sem eleições, permitiu que grupos paramilitares fascistas dessem rédeas ao ódio anti-russo e anti-comunista. Milhares de mulheres e homens deram corpo à resistência.

Igreja destruída junto ao aeroporto de Donetsk
Créditos / Bruno Carvalho

Quando se cumpriam quatro anos da rebelião antifascista que se espalhou como pólvora por todo o leste da Ucrânia, atravessei a fronteira através da Rússia num autocarro onde viajavam meia centena de antifascistas de vários países.

Respondendo ao apelo do grupo musical italiano Banda Bassotti, que tocou duas vezes em Portugal na Festa do «Avante!», percorreram durante uma semana os territórios em resistência visitando orfanatos, hospitais, fábricas, sindicatos e autarquias.

No primeiro dia, entre Rostov-sobre-o-Don, cidade russa no Norte do Cáucaso, e a fronteira com a auto-proclamada República Popular de Lugansk (RPL), atravessámos cerca de uma centena de quilómetros de estepe.

Enquanto viajávamos por terras de cossacos, Mitya Dezhnev explicava-me como teve de fugir da sua terra para a Rússia e de como não podíamos deixar esquecer os comunistas que todavia resistiam na Ucrânia controlada por Kiev. «Queres ouvir uma canção que era muito popular no tempo da União Soviética?», perguntou-me em inglês antes de começar num quase perfeito português a cantar o «Avante, camarada!». 

Foi em 2014, uma semana depois do massacre que vitimou cerca de meia centena de pessoas em Odessa, na Ucrânia, que as populações do leste do país se insurgiram contra o golpe de Estado patrocinado pela União Europeia e pelos Estados Unidos que depôs Viktor Yanukovich.

O novo governo, imposto sem eleições, permitiu que grupos paramilitares fascistas dessem rédeas ao ódio anti-russo e anti-comunista. Sem qualquer protecção e ante a ofensiva fascista, milhares de mulheres e homens concentraram-se nas principais praças das localidades insurrectas e deram corpo à resistência.

Primeiro, tomaram as instituições e desarmaram as forças de segurança e, depois, organizaram-se militarmente constituindo milícias antifascistas. Nessa semana, as principais regiões da industrial Bacia do rio Don, conhecida como Donbass, declararam a independência e constituíram-se em dois países: a República Popular de Donetsk (RPD) e a RPL. Depois de pesados bombardeamentos que vitimaram milhares de pessoas, o apoio militar russo foi decisivo para evitar a barbárie e a conquista destes territórios por Kiev.

O cessar-fogo que formalmente se mantém é desmentido na prática pelos sucessivos confrontos na linha da frente. As sucessivas provocações patrocinadas pela NATO continuam a causar vítimas entre os civis que moram em localidades ao alcance da artilharia ucraniana. Empurrados, primeiro pelas perseguições e depois pela guerra, dezenas de milhares de ucranianos continuam exilados na Rússia ou nas zonas sob controlo das forças democráticas.

Neli Zadiraka foi outra das pessoas que conheci nessa condição. É uma das deputadas da sede do poder legislativo da RPL, o Conselho Popular de Lugansk. Foi obrigada a abandonar a sua casa em Rubezhnoe, território da região ocupado pela Ucrânia.

Foi ela que, em 2014, leu a declaração de independência da RPL e, por essa razão, é considerada terrorista pelo governo ucraniano. Neli apontou para a estrela vermelha do brasão da jovem república e explicou-me que se inspira nos símbolos e valores da União Soviética.

Esse foi, aliás, um elemento presente em toda a viagem. Para além da preservação e do respeito pelos monumentos e símbolos, a presença da foice e do martelo é constante. Em conversa com vários habitantes de Lugansk e Donetsk, a chegada do fascismo ao poder na Ucrânia veio reforçar as convicções políticas dos cidadãos de ambas as repúblicas. Mas não é algo recente. Em 2012, nas últimas eleições antes do golpe fascista, o Partido Comunista da Ucrânia conquistou 13,2% dos votos em todo o país.

Em Kiev, obteve somente 7,23% e no ocidente houve regiões em que aquele partido não superou os 2%. Mas no oriente, sobretudo, nas regiões de Donbass, os valores oscilaram entre os 18% de Odessa e os 29,46% de Sebastopol, na Crimeia. Em Donetsk, os comunistas chegaram aos 18,85% e, em Lugansk, atingiram os 25,14% dos votos.

Em Makeeva, cidade vizinha de Donetsk, a organização local do Partido Comunista da RPD organizou uma iniciativa cultural que envolveu centenas de pessoas para receber gente de tantos países, numa cerimónia em que se entregaram os cartões a dois combatentes especiais. Um miliciano vindo do Texas e outro da Colômbia que escolheram atravessar o mundo para abraçar a causa antifascista ao lado dos soldados desta região.

O colombiano decidiu baptizar-se com o nome de guerra Alfonso Cano em homenagem ao comandante histórico das FARC e contou-me que decidiu voluntarizar-se para combater o fascismo em Donbass como parte das suas convicções políticas. São muitos os combatentes internacionalistas que participam nos exércitos das duas repúblicas.

Na companhia de Boris Litvinov, Primeiro Secretário do Partido Comunista da RPD, que foi, aliás, o primeiro a encabeçar o Soviete Supremo da RPD, o novo órgão legislativo daquele país, conhecemos um dos corações industriais da Europa.

Antes de chegarmos a uma das mais importantes minas de carvão da Europa, erguia-se um muro escrito recentemente com spray: «Somos cidadãos da União Soviética». Em 2013, antes do golpe, a Ucrânia produzia 84,8 milhões de toneladas. Três anos depois, esses números baixaram para menos de metade: 41,8.

O objectivo do imperialismo, quando interveio na Ucrânia, não foi apenas levar mais longe as fronteiras da NATO, violando uma vez mais os compromissos assumidos com os últimos dirigentes soviéticos. Foi também controlar um país com importantes recursos, sobretudo na região que agora resiste ao avanço das forças apoiadas pelos Estados Unidos e União Europeia.

Nas últimas semanas, a guerra intensificou-se e muitas das pessoas com que conversei admitem que o governo de Kiev pode estar a preparar uma provocação a larga escala durante o Campeonato Mundial de Futebol. 

Petro Poroshenko, presidente da Ucrânia, acaba de ser recebido em Espanha por Pedro Sánchez, novo chefe do governo, e falava abertamente ao diário El País do falso assassinato do jornalista Arkadi Babchenko como uma técnica necessária para proteger os dissidentes.

Sem qualquer vergonha, acrescentou que há uma campanha russa de notícias falsas para destabilizar o mundo. É este o carácter de um governante que anunciava meses depois do golpe que faria tudo para que as crianças da Ucrânia pudessem ir à escola e para que as de Donbass ficassem fechadas em caves.

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Pelas mortes, o governo da Ucrânia responsabilizou «forças de ocupação russas», referindo-se, segundo a RT, a efectivos da República Popular de Donetsk, cujos representantes negaram qualquer ligação ao facto e, posteriormente, declararam que os militares ucranianos morreram por terem pisado um explosivo durante uma inspecção a campos minados.

A este propósito, Peskov disse que «não tentava fazer passar os desejos por realidade». «Para nossa desgraça, a realidade na linha de contacto é bastante aterradora, têm lugar provocações por parte das Forças Armadas da Ucrânia, e não são casos isolados, mas múltiplos», afirmou.

No que respeita à Crimeia, o governo russo considera a sua integração no país um facto consumado e inteiramente legítimo. A Ucrânia nunca reconheceu os resultados do referendo realizado em Março de 2014, pouco depois do golpe de Estado em Kiev, em que a maioria esmagadora da população do território se pronunciou a favor da reintegração na Rússia.

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Se recordo o trágico episódio da destruição da Líbia nestas linhas não é apenas para assinalar uma efeméride redonda. Faço-o numa ocasião em que a NATO está na calha para uma outra operação indirecta – ou mesmo directa incorrendo, nesse caso, em riscos terríveis para o planeta – ao apoiar o regime de base nazi da Ucrânia em novos movimentos para tentar esmagar as populações russófonas do Leste do país, nas regiões de Donetsk e Lugansk. São muitos os sinais de que tal pode acontecer, o principal dos quais foi dado pelo presidente Joseph Biden ao declarar o «total apoio» dos Estados Unidos a uma acção desse tipo. E logo num momento em que a NATO está envolvida nos gigantescos jogos de guerra «Defender Europe», no âmbito dos quais concentra poderosos meios navais e aéreos no Mar Negro, o que vem provocando reacção simétrica da Rússia.

O terrorismo da NATO é, como se percebe, um comportamento inerente à própria existência da organização.

José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

  • 1. A acção determinante dos serviços secretos franceses na busca e assassinato de Muammar Khaddafi foi tornada pública por membros do governo de transição apoiado pela NATO (ver «Mort de Kadhafi : un officiel libyen accuse les services français», em Le Parisien, 30 de Setembro de 2012). O Eliseu negou veementemente a acusação, mas quando o militante que prendera Khaddafi foi raptado e torturado, no interior da Líbia, por partidários do antigo Chefe de Estado que, mais de um ano depois, aí continuavam a resistir, a França disponibilizou um voo humanitário para o recuperar. Omran Ben Chaaban morreu num hospital parisiense a 25 de Setembro de 2012, segundo declarou o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês (ver mesma fonte).
  • 2. O cinismo assumiu proporções insuspeitadas no que diz respeito à infra-estrutura civil de abastecimento de águas do país. Khaddafi foi acusado pela sua destruição mas uma investigação apurou ter sido a NATo, que espalhara a notícia, a destruir a infra-estrutura – que ainda hoje não foi reposta relativamente ao tempo em que fora construída e cuidadosamente mantida pelo chefe de Estado líbio. Ver «War crime: NATO deliberately destroyed Libya's water infrastructure», no Ecologist, a 14 de maio de 2015.
  • 3. Barack Obama foi acusado de ter ignorado o Congresso e desrespeitado a Constituição, na guerra de agressão contra a Líbia. Ver «How Obama Ignored Congress, and Misled America, on War in Libya», em The Atlantic, 13 de Setembro de 2012.
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Acheson foi o dirigente que estilhaçou a tradicional política norte-americana de não envolver o país em alianças duradouras, além de ser considerado o principal responsável pela decisão presidencial de lançar os Estados Unidos na guerra da Coreia.

A vida política do então secretário de Estado norte-americano foi marcada por alguns conceitos reveladores da convicção e da seriedade das suas palavras proferidas na cerimónia de Washington. Segundo uma das suas declarações, «as limitações impostas pelas práticas políticas democráticas tornam difícil a tarefa de conduzir os nossos assuntos externos de acordo com o interesse nacional». Isto é, a democracia é contra o «interesse nacional»; eliminar essas «limitações» é, com toda a naturalidade, a solução adoptada pelas sucessivas administrações norte-americanas – e também pela NATO, seu braço armado.

Acheson estava ciente, já nessa altura, de que chegara o momento da passagem de testemunho do domínio internacional ao declarar que «a Grã-Bretanha perdeu o império e ainda não encontrou o seu papel». Interessante, muito actual e franca é a sua opinião, segundo a qual «o problema da economia de mercado livre é que requer demasiados polícias para poder funcionar». Sejamos justos, quem fala verdade não merece castigo.

«Segundo uma das suas declarações, "as limitações impostas pelas práticas políticas democráticas tornam difícil a tarefa de conduzir os nossos assuntos externos de acordo com o interesse nacional".»

Se a Grã-Bretanha andava à procura «do seu papel», parecia tê-lo encontrado na pessoa de Ernest Bevin, então ministro dos Negócios Estrangeiros e depois primeiro-ministro de um governo trabalhista, que foi um dos maiores impulsionadores da criação da NATO e subscrevera em 1948 o Tratado de Bruxelas, considerado o embrião da aliança.

Bevin, que se ufanava de ser um «ex-sindicalista», era conhecido como um anticomunista feroz, capaz de lobrigar a «ameaça soviética» em cada acontecimento internacional – e até interno. Na cerimónia de fundação da NATO declarou que «os nossos povos não glorificam a guerra mas não fugirão dela se houver ameaça de agressão». Da agressão da União Soviética, naturalmente, apesar de ser um país exangue, que perdera 26 milhões de vidas para impedir o triunfo do nazismo em toda a Europa, com as regiões ocidentais totalmente destroçadas e ainda sem possuir a bomba atómica.

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A NATO e sete décadas de mentiras, guerra e sangue

A NATO não nasceu para responder a qualquer acção contrária, uma vez que o Tratado de Varsóvia só foi fundado quatro anos depois, nem para defender a democracia, porque integrou, à nascença, uma ditadura fascista – a portuguesa.

NATOCréditos / nato.int

Para assinalar o significado do 70º aniversário da NATO talvez fosse suficiente passar os olhos pela guerra que há 18 anos destroça o Afeganistão, ou pelo caos em que a Líbia continua mergulhada ou pelas violações do direito internacional patrocinadas pela organização nos Balcãs, designadamente o aterrador desmembramento da Jugoslávia.

Talvez fosse suficiente… Mas estaríamos longe de fazer justiça à amplitude e longevidade de uma acção cada vez mais global e próxima de comportamentos gangsteristas como a que caracteriza a aliança. Sendo que a enxurrada de considerações épicas em torno dos mitos que a sustentam é de tal modo ameaçadora nestes dias que todas as oportunidades serão poucas para aprofundar o contraditório.

Não surpreende que a NATO seja o que é. O que poderá causar alguma perplexidade, sobretudo entre quem anda um pouco mais a par da realidade internacional e quem vai além da informação mainstream, é a desfaçatez com que dirigentes altamente posicionados em nações e no mundo tentam interligar os seus belos discursos sobre a aliança com as práticas sangrentas desta. Ou acreditam nas suas próprias mentiras ou confiam demasiado na propaganda e na consequente alienação do cidadão comum.

A NATO nasceu no meio de mentiras e de mitos propagandistas tão em vigor hoje como há 70 anos, apesar de serem facilmente desmontáveis. Mas os servidores da organização têm fé no efeito de repetição e num universo mediático reverente.

A NATO não nasceu para responder a qualquer acção contrária, uma vez que o Tratado de Varsóvia só foi fundado quatro anos depois. E também não veio para defender a democracia, porque fez questão de integrar, à nascença, uma ditadura fascista – a portuguesa – adoptando outras com o correr do tempo, como foi o caso da grega e da turca.

A «aliança defensiva»

Porém, o mito fundador que mais foi refinando com o tempo e a prática é o da «aliança defensiva», uma espécie de culto de Calimero a uma escala bastante viril.

A NATO nunca ataca; defende-se sempre de um qualquer inimigo, que trata de inventar quando não existe. Quando instala armamentos, cada vez mais exterminadores, é para defender-se; quando avança os seus meios militares pela Europa afora até às fronteiras russas, ou em África, ou agora na América Latina é em legítima defesa.

A melhor defesa é o ataque, argumenta-se em termos de táctica futebolística. A NATO adoptou-a ou vice-versa, é uma dúvida semelhante à do ovo e da galinha. O que interessa é saber-se que a NATO nunca ataca, defende-se.

Assim foi durante a Guerra Fria, por exemplo recorrendo a organizações terroristas clandestinas, como a Gládio, espalhando o sangue, o horror e o medo através de atentados sucessivos em Itália para impedir o acesso dos comunistas à esfera do poder, mesmo quando o povo assim o desejou em eleições legítimas e livres.

Ou não hesitando em conspirar para promover golpes de Estado e mudanças de regime, dentro e fora da guerra fria, como aconteceu em Portugal, na Grécia, na Turquia e mais recentemente na Ucrânia – não interessando, também neste caso, que o resultado seja um regime nazi-fascista. Sempre em nome da democracia e do mercado, a entidade que mexe os cordelinhos democráticos e sabe o que é melhor para os cidadãos, mesmo que estes desejem o contrário.

A NATO e o respeito pela própria palavra

A NATO tem uma relação complicada com a própria palavra. É o que acontece a quem vive da propaganda e não tem a coragem de assumir perante os povos as reais motivações da sua missão.

A NATO esboça a sua realidade virtual nos mapas e nas mensagens que transmite aos cidadãos; e depois procede em conformidade mas de uma maneira real, agressiva, muitas vezes sanguinária, espezinhando os direitos humanos.

A mentira que esteve na génese da organização – a necessidade de responder a uma entidade de sinal contrário que viria a nascer apenas quatro anos depois – vigorou até ao colapso da União Soviética e do Tratado de Varsóvia, no início da década de noventa do ano passado.

Agora é altura de a NATO se dissolver, deixaram de existir razões para continuar, argumentaram então os ingénuos e os que ainda acreditam na boa-fé dos discursos político-militares e das instâncias que os produzem.

Não é bem assim… respondeu o atlantismo. Reparem nos inimigos que ameaçam o «nosso civilizado modo de vida», o Irão, Saddam Hussein, Khaddafi, a Coreia do Norte, Cuba, Assad, Chávez, al-Qaida, Bin Laden, os Talibã, eixos do mal cruzando-se, entrecruzando-se, exigindo a presença vigilante, dissuasora, sempre defensiva da NATO, ainda que alguns tenham sido amigos ou mesmo criados para bem do mercado e preservação da democracia.

Portanto, nesta guerra «entre a civilização e a barbárie», a NATO não pode dissolver-se; mas podem estar certos de que não vai crescer uma polegada, em território e número de membros. Quem assim falou foi James Baker, secretário de Estado norte-americano de George Bush pai.

E se bem o disse melhor o fez; ele, os sucessores, o chefe e herdeiros, no fundo toda a fina flor Atlântica.

Num ápice a NATO estava em «tempestades no deserto» invadindo o Iraque, destruindo a Jugoslávia numa das mais selváticas guerras modernas, invadindo o Afeganistão dando o pontapé de saída na «guerra contra o terrorismo», no âmbito da qual foi dizimar a Líbia em aliança com os terroristas islâmicos que dizia estar a combater.

E foi assim que o «nem uma polegada» se transformou em muitos mais biliões de polegadas; que a “guerra contra o terrorismo” descambou no recurso a informais braços terroristas como o Estado Islâmico e a al-Qaida, por exemplo na participação clandestina do atlantismo na agressão à Síria e, mais recentemente, na interminável invasão do Afeganistão – onde o inimigo a derrotar – os Talibã – já controla dois terços do país.

E onde se ouviu James Baker dizer nem mais um membro deve ler-se duplicação da família dos aliados, porque em meia dúzia de anos a NATO engoliu a maior parte dos países do antigo Tratado de Varsóvia mais os Estados nascidos da ex-Jugoslávia, sem esquecer os que lhe eram adjacentes nos Balcãs, como a Albânia.

A família defensiva já vai em 30 membros e não fica por aqui, porque ao Atlântico Norte juntam-se agora o Mediterrâneo, os mares Adriático, Báltico e Negro e também o Atlântico Sul. Graças a imaginativas normas de integração temos a caminho da NATO não só o narco-Estado terrorista da Colômbia mas também o Brasil, uma vez reconvertido ao fascismo. Porque a NATO sente urgência em defender-se da sempre ameaçadora Cuba e, sobretudo, da temível Venezuela de Maduro.

Pelo que abundam razões para acreditarmos piamente no que a NATO e os seus porta-vozes dizem e prometem. Claro como água.

O mito da defesa solidária

Outro dos mitos fundadores e base de propaganda da NATO é o da defesa solidária. Ou seja, qualquer Estado membro pode contar com os restantes no caso de ser agredido por um Estado terceiro ou organização inimiga. Todos acorrerão a defendê-lo…

Desde que…

O Estado em questão, como qualquer outro dos membros, tenha abdicado previamente de parte da sua independência; os seus governos se tenham submetido à autoridade económico-militar do complexo militar, industrial e tecnológico que governa os Estados Unidos da América – e a NATO, por inerência; e estejam dispostos a que o seu território seja utilizado para que a NATO, isto é, os Estados Unidos da América, se defendam atacando.

Em boa verdade, os Estados membros da NATO são protectorados da estrutura imperial norte-americana, que tem a aliança como seu braço armado: são obrigados a abdicar de uma política de defesa independente, a colocar vultosos fundos orçamentais à disposição do Ministério da Defesa dos Estados Unidos, a envolver-se em guerras por razões que lhes são alheias, ou mesmo contrárias, a manter relações hostis com Estados porque assim o exigem os interesses norte-americanos e não os interesses nacionais.

Numerosos estudos demonstram que os Estados Unidos da América têm entre 800 a mil bases militares em territórios ocupados no estrangeiro. Nessas áreas, em bom rigor, os Estados hospedeiros abdicam da sua soberania, cedem-na a Washington.

Ora estes estudos pecam por defeito, porque não consideram muitas das instalações militares dos Estados membros da NATO.

Estas instalações, em última análise, estão ao serviço dos Estados Unidos, mesmo que tecnicamente não sejam consideradas bases norte-americanas. As suas actividades não são independentes ou autónomas da estratégia militar da NATO, logo dos Estados Unidos. Os Estados membros da aliança não possuem instalações militares verdadeiramente próprias porque não têm uma política de defesa por eles definida tendo em conta os verdadeiros interesses dos seus povos.

Eis porque o Pentágono administra um império de instalações militares mundiais muito mais amplo que as cerca de mil unidades recenseadas.

Conflito constitucional

Na União Europeia entra-se mas não se sai ou, pelo menos, não se sai a bem, como estamos a perceber quotidianamente pelo caso do Reino Unido.

Acontece o mesmo com a NATO?

O assunto é académico, porque em relação à Aliança Atlântica apenas temos assistido a entradas, não a saídas ou tentativas de saída.

Na União Europeia ainda se realizam alguns referendos esporádicos para decidir o relacionamento entre as instituições centrais e Estados membros. Referendos, é certo, que têm sido repetidos quando não dão os resultados que deveriam dar – segundo a perspectiva da União – ou então sabotados.

Nada disso acontece na Aliança Atlântica. A NATO representa, em absoluto, a vontade dos povos, razão que torna qualquer consulta supérflua. Dir-se-ia um comportamento ditatorial, não soubéssemos nós que a NATO é a essência da democracia.

Portugal foi fundador da NATO com a ditadura de Salazar, continuou depois do 25 de Abril – que foi gravemente ferido no 25 de Novembro com a colaboração prestimosa da aliança – e continua a não questionar a presença, apesar da letra e do espírito da Constituição da República.

Em Portugal, a propósito da NATO, há um conflito constitucional latente, do qual todos os governos têm fugido como o diabo da cruz. Salazar dizia que “a pátria não se discute”; os governos de hoje assumem que a NATO não se discute ou, pelo menos, não se questiona.

Porque era isso que deveria fazer-se à luz da Constituição, que determina o envolvimento de Portugal nos esforços de paz e de dissolução dos blocos militares, isto é, da NATO.

Nada disso. O que fazem caças portugueses violando espaço aéreo da Finlândia, por exemplo? Nada contra este país, apenas uma sequela de uma presença agressiva, no âmbito da NATO, contra uma nação – a Rússia - com a qual Portugal poderia e deveria ter relações absolutamente naturais e normais, como acontece como tantas outras.

Essa presença em territórios bálticos, em si mesma, é uma agressão à Constituição da República.

Em termos de democracia, porém, a NATO sobrepõe-se à lei fundamental do país. A posição dos dirigentes nacionais de hoje em relação à aliança não é muito diferente da que há 70 anos era tão grata a Salazar: estão muito agradecidos pelo favor que a NATO faz em permitir que o país faça parte de tão grande e defensiva família.

Esqueçam a Constituição.

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Pelo contrário, os planos de agressão existentes eram ocidentais e decorriam da ideia de Winston Churchill, exposta a políticos norte-americanos em 1951, segundo a qual, quando voltasse a chefiar o governo de Londres, iria lançar bombas atómicas sobre 20 a 30 cidades soviéticas, para então estabelecer definitivamente a paz. Churchill voltou a chefiar o governo de Londres em 1955, mas não cumpriu a ameaça, porque Moscovo já possuía a arma de extermínio e não hesitaria em responder. Fazer de justiceiro e valentão tornara-se perigoso, ou mesmo fatal.

Ernest Bevin tinha também um conceito bastante peculiar de guerra e paz, reflectindo o espírito do longo império, de que ele se orgulhava porque, por exemplo, «a marinha britânica conseguira policiar o mundo durante 300 anos de uma maneira bastante barata»; explicava então que «a guerra não é um piquenique, mas será melhor que milhões de vidas se percam?» Fazer a guerra para evitar mortes é uma ideia genial.

Este grande impulsionador da criação da NATO e da união da Europa Ocidental (ainda faltavam 70 anos para o Brexit) era particularmente arguto e tinha princípios pessoais e de acção política que continuam a revelar-se de grande actualidade para as classes governantes. Considerava que «um jornal tem três tarefas: uma é divertir, outra é entreter e o resto é enganar»; por outro lado, havia ilusões que Bevin não tinha: «o preço da liberdade é a eterna vigilância».


O artigo tem uma segunda parte, que será publicada esta sexta-feira, 5 de Abril. 

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