A escolha pelo esquerda.net, órgão de informação do Bloco de Esquerda, em publicar sistematicamente visões de Cuba, e da revolução cubana, vindas de sectores mais reaccionários, conservadores e tão próximos da direita como aqueles que publicou ao longo de 2021, só vinculam o Bloco de Esquerda e o seu grave problema com Cuba.
No dia 1 de Janeiro, enquanto o campo progressista em todo o mundo, dos agricultores em luta na Índia, aos resistentes de Gaza, aos sindicalistas na Colômbia, independentemente das divergências quanto ao processo, formas e desenvolvimentos, celebra mais um aniversário da Revolução cubana como um acto de resistência face ao imperialismo, o esquerda.net decidiu publicar um artigo em que se diz: «Não há narrativa maior do que aquela desenhada em torno do bloqueio dos Estados Unidos. A história de David a fazer face a Golias sempre terá milhões de seguidores. (...) Pode-se perguntar como é possível que, depois de 60 anos, Cuba ainda dependa tanto das decisões de um presidente dos Estados Unidos. Lembro que entre os motivos que levaram às acções revolucionárias no final dos anos 1950 estava a necessidade de romper com aquela subordinação económica que tínhamos do vizinho.»
Depois, explica que, quando havia o campo socialista, a questão do bloqueio não estava nas prioridades «retóricas» da Revolução: «Enquanto o campo socialista existiu – transformado numa nova subordinação – o bloqueio estava em décimo lugar na agenda cubana, realmente tinha pouca importância. Desde há anos, os nossos políticos, como um pesadelo recorrente, não pararam de falar dele e todos os problemas que temos são atribuídos à sua existência.»
O facto de o autor ser cubano, aqui, não é equivalente a «lugar de fala» para debitar arrazoados sobre economia e política do século XX. O bloqueio não estava na «agenda» quando existia a URSS porque o COMECON [Conselho para Assistência Económica Mútua] era um bloco político-económico poderosíssimo que fazia frente ao domínio global dos Estados Unidos, como ele de facto se efectivou e desenhou a partir de 1991.
O autor deveria ser o primeiro a perceber que a retórica de David contra Golias é uma retórica de emancipação de uma ilhota minúscula e insignificante no meio do Caribe contra um bloco militar-económico poderoso como os EUA.
O autor terá a sua agenda. Ele e os outros publicados ao longo de 2021 pelo esquerda.net (e sobretudo desde os protestos do 11 de Julho). O esquerda.net podia escolher publicar reportagens de meios de comunicação independentes cubanos sobre problemas económicos, políticos e sociais na ilha. Há-os às dezenas. Inclusive desenvolvidas pelos próprios sites dos quais escolhe publicar permanentemente opiniões anti-comunistas cheias de banalidades.
Isto é incompreensível para um partido que se diz socialista, anti-capitalista, como força política internacionalista.
«O esquerda.net podia escolher publicar reportagens de meios de comunicação independentes cubanos sobre problemas económicos, políticos e sociais na ilha. Há-os às dezenas. Inclusive desenvolvidas pelos próprios sites dos quais escolhe publicar permanentemente opiniões anti-comunistas cheias de banalidades.»
Tendo amigos que são militantes, apoiantes ou votantes no Bloco de Esquerda, e sabendo que não se revêem nesta posição conservadora e elitista de um partido de esquerda supostamente progressista, era bom que o esquerda.net pegasse no telefone de vez em quando e falasse com a esquerda cubana que não está no Partido Comunista Cubano, que não está em Miami, que não publica em meios de comunicação apoiados pelo Departamento de Estado norte-americano e pela USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], que até (pasme-se) se opõe à actual estrutura do Estado cubano revolucionário, mas não cede um milímetro contra as interferências e sabotagens, contra qualquer forma de bloqueio económico-financeiro a Cuba e a países terceiros que transaccionem com a ilha, e defende acima de tudo a soberania do Estado e o papel de Cuba nos movimentos revolucionários na América Latina.
Até os jovens trotskistas cubanos, críticos da própria revolução, se demarcaram abertamente dos movimentos de cidadãos como Arquipélago e as convocatórias das marchas em Novembro de 2021. Porque sabiam que havia (como se comprovou) interferência externa no que seria uma «marcha pacífica» pelo direito de manifestação. Sair dia 15 de Novembro era fazê-lo ao lado da direita mais reaccionária (como também se viu com o apoio de membros do Vox em Madrid ao cantor dos Orishas transformado em herói, Yotuel; ou a reunião do dramaturgo Yunior García Aguilera, já em Espanha, com o líder do Partido Popular espanhol, Pablo Casado).
Para isso era preciso o esquerda.net fazer mais do que pegar no telefone: talvez ir a Cuba e falar com, e conhecer, progressistas fora do Partido Comunista. Talvez seja uma surpresa para muita gente no Bloco: mas eles existem. E têm críticas a fazer ao processo revolucionário, à burocracia ou aos erros de gestão económica. Para isso o Bloco precisava de sair do seu pedestal moralista, europeu, falar com as massas e o poder popular, perceber mais sobre processos revolucionários na América Latina, sobre dependência económica, a influência nefasta do imperialismo norte-americano na região desde o século XIX. Teria de publicar outros autores em lugar dos que tem publicado, todos a milhas do pensamento político e das posições que até grupos europeus, aos quais o próprio Bloco pertence, têm.
«(...) o Bloco precisava de sair do seu pedestal moralista, europeu, falar com as massas e o poder popular, perceber mais sobre processos revolucionários na América Latina (...)»
Posições como as que o Bloco decidiu publicar estão mais próximas de uma Iniciativa Liberal (a negação do bloqueio e a incapacidade de compreender qualquer fenómeno revolucionário – «o embargo é hoje quase irrelevante», dizem) do que dos parceiros do BE, como o Podemos, o Labour de Corbyn, o Die Linke ou o Syriza.
Fidel Castro dizia, em 1970, em resposta a intelectuais europeus: «Há muitos que, desde Roma e de Paris, constroem mundos hipotéticos, imaginários». São «intérpretes, profetas, magos, filósofos de cada uma das posições de Cuba». São «super-revolucionários teóricos, super-esquerdistas, verdadeiros "super-homens" (...) que não têm noção do que é a realidade e dos problemas e dificuldades de uma revolução, estimulados por aquele sentimento bem alimentado pelo imperialismo, carregam um ódio feroz».
Do esquerda.net, órgão de informação de um partido como o Bloco, que se diz anti-capitalista e anti-imperialista, espera-se mais capacidade de análise, mais nuance, mais profundidade. Sobretudo, mais solidariedade internacionalista.
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