|Cibersegurança

As pegadas do Pegasus na espionagem global

Numa sociedade de vigilância, da qual os poderes e interesses dominantes extraiam vantagens específicas, as vítimas serão sempre os cidadãos, a esmagadora maioria dos quais ignoram a devassa da sua privacidade.

Créditos / The Pegasus Project

A sociedade de vigilância avança a todo o vapor num ambiente sem regulamentações nacionais ou internacionais porque, nesta matéria, o direito é sempre muito mais lento que a capacidade de explosão tecnológica. Além disso, como facilmente se percebe através das situações aproveitadas na esteira do combate à Covid-19, as elites governantes mundiais convivem muito bem com esta discrepância entre as leis e o desenvolvimento da tecnologia, da mesma maneira que vão violando os direitos humanos enquanto juram que os defendem.

O mais recente exemplo identificado de assalto à privacidade dos cidadãos é o software Pegasus, de produção israelita: aspira tudo o que está contido nos smartphones individuais, desde as conversas aos contactos, mensagens e o mais que exista nos discos rígidos dos aparelhos. Para entrar em funcionamento não é preciso que o titular do aparelho faça alguma coisa porque ele penetra, sorrateiro, e cumpre a sua missão como qualquer vírus1.

«Em torno do Pegasus, como da espionagem em geral, existe um imenso jogo de mentiras para confundir a opinião pública e convencê-la de que a espionagem indiscriminada é feita para sua segurança»

Pegasus é obra de agentes da unidade 8200 dos serviços de espionagem militar israelita e de elementos do Mossad, que se transferiram das suas funções públicas para a propriedade de uma empresa privada chamada Grupo NSO, a quem cabe negociar as vendas com governos estrangeiros mas tem na rectaguarda o aparelho de Estado sionista.

O assunto do software Pegasus tornou-se notado por acção da organização não-governamental francesa Forbidden Stories em colaboração com a Amnistia Internacional e uma cadeia de jornais corporativos ditos «de referência». Uma notoriedade que representa uma relativa excepção em relação à quase ignorada miríade global de métodos de espionagem electrónica que os governos e agências públicas ou entidades privadas multinacionais manipulam para fiscalizar as actividades e as opiniões das pessoas ou para montar bases de negócios de modo a explorar a sua boa fé.

Como se sabe, entidades do tipo das que trouxeram a lume o caso do Pegasus funcionam com indignação de geometria variável e, regra geral, não se incomodam com o fenómeno da espionagem generalizada mas sim com casos especiais que, de alguma maneira, digam respeito aos interesses que servem e ao mesmo tempo as sustentam. Esta situação tornou-se particular porque entre alguns dos 50 mil números de telefone identificados como estando atacados pelo Pegasus figuram vítimas de governos com reputação duvidosa – jornalistas, activistas de direitos humanos, juristas, opositores políticos e até agentes governamentais.

Por exemplo, os números identificados permitiram seguir pistas que levaram aos assassínios do jornalista e espião Jamal Khashoggi pela Arábia Saudita, do jornalista de investigação Javier Valdez Cárdenas por cartéis da droga protegidos pelo então governo mexicano do presidente Peña Nieto, à contaminação dos telemóveis de pelo menos 1400 clientes do WhatsApp e até, imagine-se, à espionagem do presidente francês Emmanuel Macron pelos seus amigos do regime de Marrocos.

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O império da espionagem

O caso da Dinamarca não é único. Trata-se apenas de mais uma via de actuação da espionagem global norte-americana e à qual outros governos «amigos», no interior e no exterior da NATO, se submetem de bom grado.

Manifestação contra a espionagem global montada pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos da América (EUA), denunciada pelo seu ex-funcionário Edward Snowden. Hanover, Alemanha, 29 de Junho de 2013
CréditosPeter Steffen / AP/dpa

Jornalistas de vários meios de comunicação corporativos e estatais europeus confirmaram de nove fontes diferentes que a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos recorre aos serviços secretos militares da Dinamarca para espiar dirigentes e altos funcionários de países da União Europeia, designadamente França, Alemanha, Suécia, Noruega, Holanda e do próprio governo dinamarquês.

O assunto não é novo, obviamente, embora seja tratado como tal. O que fica por apurar é a extensão, profundidade e alcance deste mecanismo agora comprovado e denunciado: a investigação incidiu sobre um documento resultante de uma simples situação numa gigantesca e ao mesmo tempo capilar malha de devassa. O conhecimento da verdadeira dimensão do escândalo será, porém, travado porque irão prevalecer os «segredos de Estado», as «seguranças nacionais» e, no fim, os silêncios cúmplices. Que não tenhamos ilusões: procedeu-se a um brioso acto de denúncia, que não removerá obstáculos de monta no caminho da transparência. É como um piparote num carro blindado de última geração.

«a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos recorre aos serviços secretos militares da Dinamarca para espiar dirigentes e altos funcionários de países da União Europeia, designadamente França, Alemanha, Suécia, Noruega, Holanda e do próprio governo dinamarquês»

Conduzida pela televisão pública dinamarquesa DR, a investigação assenta nas informações prestadas por nove fontes diferentes que tiveram acesso ao chamado Relatório Dunhammer, um documento do governo dinamarquês sobre a colaboração entre a NSA norte-americana e os serviços secretos militares de Copenhaga, Forsvarets Efterretningstjeneste (FE), na espionagem de membros do governo dinamarquês, dirigentes, deputados e altos funcionários de países da União Europeia como a França, Alemanha, Holanda, Suécia e Noruega. O relatório incide sobre factos passados entre 2012 e 2014, incluindo vigilância de telefones, telemóveis e tráfico de internet dos espiados, a nível público e privado.

Estranho hiato de cinco anos

As fontes revelam que o governo da Dinamarca tem conhecimento da situação pelo menos desde 2015. Porém, só demitiu a chefia do FE em 2020, um período de cinco anos que levanta, por si só, justificadas suspeições e interrogações. Foi precisamente no Outono de 2020 que a imprensa dinamarquesa começou a ventilar com alguma insistência a colaboração entre a NSA e o FE na espionagem de empresas públicas e militares do país, associando então a circunstância à NATO e remetendo até para a sua rede clandestina Stay-Behind, conhecida também como Gládio – a designação do ramo italiano.

«As declarações escandalizadas proferidas agora por dirigentes como Merkel e Macron e nas quais exigem explicações à Dinamarca e aos Estados Unidos são actos inconsequentes para consumo público. Mais do que ninguém, os próprios conhecem a realidade, por inerência do sistema em que se movem e pelo menos desde que Edward Snowden, ex-consultor da NSA, explicou em 2013 como a agência trabalha na devassa das vidas de cidadãos, empresas e Estados, mesmo aqueles que são “amigos”»

Para a NATO, oficialmente esta estrutura terrorista clandestina criada originalmente pela CIA nunca existiu, apesar de ter sido desmontada publicamente pelo primeiro-ministro italiano, Giulio Andreotti, no Verão de 1990. Não será ilógico deduzir que o que «nunca existiu» para a NATO, mas foi real em vários países da aliança, incluindo a Dinamarca, tenha continuado a existir depois de 1990, da mesma maneira que a própria Aliança Atlântica se manteve – duplicando até o número de membros – apesar de terminada a guerra fria.

As declarações escandalizadas proferidas agora por dirigentes como Merkel e Macron e nas quais exigem explicações à Dinamarca e aos Estados Unidos são actos inconsequentes para consumo público. Mais do que ninguém, os próprios conhecem a realidade, por inerência do sistema em que se movem e pelo menos desde que Edward Snowden, ex-consultor da NSA, explicou em 2013 como a agência trabalha na devassa das vidas de cidadãos, empresas e Estados, mesmo aqueles que são «amigos».

«Os Estados Unidos nunca espiaram os seus amigos», jurou – e mentiu - o presidente Barack Obama, em 2013, depois das denúncias feitas por Snowden. Ao que Merckel respondeu então – parecendo agora não se lembrar disso - que «os amigos não espiam amigos».

Naturalmente, comportamentos destes políticos não podem ser levados a sério quando o objectivo é tentar chegar tão fundo quanto possível na investigação do fenómeno. Mais do que vítimas, são sobretudo cúmplices de uma realidade podre e assustadora que o senador norte-americano Frank Church já denunciava em 1976: «O aumento dos abusos dos serviços secretos reflecte o enorme fracasso das nossas instituições básicas».

Dinamarca, capital Washington

Abundam as situações ilustrando que a Dinamarca é um dos países-âncoras das estratégias norte-americanas para influenciar a União Europeia, frequentemente através de práticas divisionistas, e mantê-la ferreamente subordinada ao comando da NATO. São muitos os países-satélites de Washington no Leste da Europa mas, fora daí, a Dinamarca é um dos que mais se submete a esse estatuto entre os membros antigos da Aliança Atlântica.

«a Dinamarca é um dos países-âncoras das estratégias norte-americanas para influenciar a União Europeia, frequentemente através de práticas divisionistas, e mantê-la ferreamente subordinada ao comando da NATO. São muitos os países-satélites de Washington no Leste da Europa mas, fora daí, a Dinamarca é um dos que mais se submete a esse estatuto entre os membros antigos da Aliança Atlântica»

Há poucos dias terminou em Copenhaga uma das «cimeiras da democracia» promovidas pela Fundação Aliança para as Democracias, entidade constituída em 2017 com sede na capital dinamarquesa e dirigida pelo ex-secretário-geral da NATO, o fundamentalista neoliberal e atlantista Anders Fogh Rasmussen. Tendo como patrono e uma das figuras de referência o actual presidente dos Estados Unidos, Joseph Biden, a Aliança para as Democracias é claramente um instrumento das guerras híbridas – e convencionais – promovidas pelo complexo militar-industrial norte-americano. Na sua recente cimeira a fundação convidou como oradores o ministro dinamarquês dos Negócios Estrangeiros, a presidente da Eslováquia, o ex-chefe de segurança nacional de Trump, Henry McMaster, a chefe do regime secessionista de Taiwan, agitadores «pró-democracia» de Hong Kong, o «presidente interino» da Venezuela, Juan Guaidó, e a chefe da oposição «pró-democracia» da Bielorrússia, Svetlana Tsikhanovskaia. A fina flor da conspiração terrorista montada em Washington.

A Dinamarca cedeu também o seu território autónomo da Gronelândia para funcionamento de uma base militar norte-americana, estratégica para a pressão sobre a Rússia e o domínio de uma região cada vez mais inflamada como é o Árctico.

A estreita cooperação entre a NSA e os serviços secretos militares dinamarqueses faz todo o sentido nestes cenários de afirmação atlantista. A imprensa de Copenhaga situa o início da actual fase de colaboração no ano de 1992, através de um acordo estabelecido entre o presidente William Clinton e o então primeiro-ministro dinamarquês, o social-democrata Poul Nyrup Rasmussen.

Entre os efeitos conhecidos desta aliança avulta, por exemplo, a viciação do concurso para aquisição de aviões de guerra pela Dinamarca, que terminou com a escolha dos norte-americanos F-35 em detrimento da indústria europeia. De notar que na lista das instituições espiadas pelos Estados Unidos através da Dinamarca se encontram a indústria militar deste país e também o sector militar da sueca Saab.

Gládio, Absalon e a mão escondida da NATO

A circunstância de a imprensa dinamarquesa associar estes episódios de espionagem ao funcionamento da rede clandestina Stay-Behind da NATO também segue a ordem natural das coisas, tanto no tempo como nos factos.

Quando Rasmussen e Clinton estabeleceram as bases de subordinação dos serviços secretos militares dinamarqueses à NSA ainda estava bem vivo em Copenhaga o escândalo desencadeado em 1991 com a denúncia da existência de um ramo dinamarquês da rede terrorista clandestina da NATO conhecida como Gládio. Segundo o Ministério da Defesa de Copenhaga, esse braço do Stay-Behind, designado Absalon, teria sido extinto em 1989, transitando a sua funcionalidade precisamente para os serviços militares Forsvarets Efterretningstjeneste (FE).

«Segundo a história não autorizada das redes terroristas clandestinas da NATO, o seu objectivo era o de evitar as invasões soviéticas – actualmente substituídas pelas invasões russas – e também o de impedir partidos comunistas e outros da esquerda consequente de chegarem à esfera de poder em países da NATO. Na concretização destes objectivos destaca-se o assassínio do primeiro-ministro italiano, o democrata-cristão Aldo Moro, em 1977»

Não se tratou, portanto, de uma extinção mas sim de uma transferência. Quando ao significado operacional dessa mudança, o silêncio é total. O ministro dinamarquês da Defesa então em funções, Kund Engaard, afirmou que «partes da informação sobre a operação dos serviços secretos em caso de ocupação é material classificado, mesmo altamente classificado e estou proibido de o revelar ao Parlamento».

Segundo a história não autorizada das redes terroristas clandestinas da NATO, o seu objectivo era o de evitar as invasões soviéticas – actualmente substituídas pelas invasões russas – e também o de impedir partidos comunistas e outros da esquerda consequente de chegarem à esfera de poder em países da NATO. Na concretização destes objectivos destaca-se o assassínio do primeiro-ministro italiano, o democrata-cristão Aldo Moro, em 1977, quando aceitou a integração do PCI na maioria parlamentar de apoio ao seu governo. Por outro lado, permanecem obscuras – o que é significativo ao cabo de 35 anos – as circunstâncias do assassínio do primeiro-ministro sueco Olof Palme em 28 de Fevereiro de 1986, em vésperas de se deslocar a Moscovo.

A história e o tratamento dos partidos comunistas e de esquerda nos países da NATO e o crescimento gradual da extrema-direita em todo o espaço atlantista são compatíveis com a operacionalidade de serviços extremistas dentro da NATO, clandestinos ou, no mínimo, secretos. Daniele Ganser, investigador do Centro de Estudos de Segurança de Zurique (Suíça) e autor de As Guerras Secretas da NATO, explica neste livro, a propósito do braço dinamarquês Absalon da rede Stay-Behind, que «tal como em todos os países da Gládio, na Dinamarca também o exército secreto foi integrado nos serviços secretos militares, FE».

Perguntem a Biden

Um episódio, um país, um curto período de dois anos, um determinado grupo de alvos espiados. É o que temos do mais recente escândalo de espionagem, cujo destino é a perda de fulgor com o correr dos dias antes de se desvanecer… até ao próximo – que será de novo um caso tratado isoladamente, como se a espionagem de todos e cada um de nós pela NSA e as 16 gémeas não fosse uma permanente razão de Estado norte-americano, portanto imperial.

«Edward Snowden, com a sua experiência adquirida no terreno, sugere aos «escandalizados» dirigentes europeus que aproveitem a viagem de Joseph Biden à Europa, dentro de uma semana, para lhe pedirem explicações pessoalmente, porque o actual presidente norte-americano está perfeitamente dentro da matéria. O que restará então do «escândalo» de espionagem que possa ser consultado nas declarações finais da reunião do G-7 na Cornualha ou da Cimeira da NATO em Bruxelas? Certamente nada»

Edward Snowden, com a sua experiência adquirida no terreno, sugere aos «escandalizados» dirigentes europeus que aproveitem a viagem de Joseph Biden à Europa, dentro de uma semana, para lhe pedirem explicações pessoalmente, porque o actual presidente norte-americano está perfeitamente dentro da matéria. O que restará então do «escândalo» de espionagem que possa ser consultado nas declarações finais da reunião do G-7 na Cornualha ou da Cimeira da NATO em Bruxelas? Certamente nada, a não ser palavras de entendimento e compreensão: porque, tanto no caso presente como na espionagem em geral, estes espiões e estas suas «vítimas» específicas têm muito mais interesses em comum do que querelas, circunstância que impõe a conveniente cobertura de silêncio, e até de clandestinidade, se for caso disso.

Será a Dinamarca caso único, por muito que funcione como um dos países mais manipulados pelos Estados Unidos na Europa Ocidental?

Só os mais ingénuos poderão acreditar nisso. Trata-se apenas de mais uma via de actuação da espionagem global norte-americana e à qual outros governos «amigos», no interior e no exterior da NATO, se submetem de bom grado. Quanto ao resto, há mil e uma maneiras de as agências norte-americanas espiarem universalmente, num processo que refina todos os dias. O canal dinamarquês é mais um a engrossar um rio caudaloso, cada um com sua missão e guiado por objectivos específicos. Formando assim uma teia indecifrável.

No caso da Dinamarca, como explica Thomas Wegener Friis, identificado como especialista dinamarquês em serviços secretos pela RDW (Radio Deutsche Welle) da Alemanha, o governo e os serviços secretos militares fizeram «uma escolha sobre quais os parceiros com quem trabalham mais proximamente e tomaram uma decisão clara de trabalhar com os norte-americanos contra os seus parceiros europeus». Mas sempre, acrescente-se, sob o chapéu da NATO.

Patrick Sensburg, presidente da comissão para investigar o assunto criada no Parlamento alemão e membro da CDU de Merkel, seguiu pela mesma senda do pragmatismo: «Nada disto é sobre amizade ou sobre aspirações ético-morais – é apenas sobre interesses».

Interesses de alguns, uma pequena casta, que comandam os de todos nós.

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Nada que seja muito original porque já Barack Obama espiara a amiga chanceler alemã Angela Merkel e a não tão amiga presidente brasileira Dilma Rousseff. E fê-lo sem a ajuda do Pegasus mas recorrendo à Agência de Segurança Nacional (NSA), ao que parece agora incomodada porque o malware israelita desafia o seu pretendido monopólio da espionagem internacional. Argumenta a NSA que o Pegasus está a ser vendido a pretensos inimigos dos Estados Unidos, esquecendo-se que negócio é negócio e o dinheiro não tem cor mesmo que o próprio Grupo NSO jure o contrário.

Garante a empresa israelita que «vende as suas tecnologias exclusivamente às agências de aplicação da lei e de inteligência com o único propósito de salvar vidas através da prevenção de actos de crime e de terror».

Por outro lado, os ex-agentes da espionagem militar israelita asseguram que depois de vendido «não operam o sistema e não têm acesso aos dados». Como podem então prometer que o Pegasus apenas é utilizado contra o crime e o terrorismo? Na verdade poderiam: um engenheiro de segurança cibernética da comunidade de inteligência dos Estados Unidos, citado pelo ex-agente da CIA Philip Giraldi, explicou que o Pegasus foi criado com uma «porta dos fundos» através do qual os serviços de espionagem israelitas têm acesso aos dados recolhidos pelo sistema, onde quer que ele actue depois de vendido.

Mais disse o mesmo engenheiro cibernético: que o Pegasus é «uma ferramenta que pode ser usada para espiar quase toda a população mundial».

Não surpreende, portanto, que a investigação da Forbidden Stories mais a Amnistia Internacional e o consórcio de jornais esteja feita por defeito. Seríamos muito ingénuos se acreditássemos que a escala de actuação do Pegasus se limita a 50 mil números de telefone, tanto mais que, segundo várias fontes, o negócio rende sete a oito milhões de dólares por cada 50 telemóveis infectados.

Não, o Pegasus não é vendido apenas a governos pouco fiáveis nem o cliente Narandra Modi, o presidente indiano, se limita a usá-lo para espiar apenas o principal dirigente da oposição, Raoul Gandhi.

Jogo de mentiras

Em torno do Pegasus, como da espionagem em geral, existe um imenso jogo de mentiras para confundir a opinião pública e convencê-la de que a espionagem indiscriminada é feita para sua segurança. Ainda recentemente, por sinal numa situação em que o recurso ao próprio Pegasus foi admitida, numerosos governos tentaram convencer os seus cidadãos de que o rastreio de telemóveis era necessário para combater a pandemia de Covid-19. E logo nessa altura foi admitido que Israel tira proveito da comercialização da sua indústria de telecomunicações para ter acesso, por via das suas empresas privadas, a informações recolhidas nos países compradores dos sistemas.

Pegasus, aliás, não é caso único.

«Seríamos muito ingénuos se acreditássemos que a escala de actuação do Pegasus se limita a 50 mil números de telefone, tanto mais que, segundo várias fontes, o negócio rende sete a oito milhões de dólares por cada 50 telemóveis infectados»

Nos últimos dias soube-se igualmente, só que com menos espavento, que está no mercado uma outra empresa de software israelita de espionagem denominada Candiru. Desenvolveu e vende capacidades para infectar telemóveis, tabletes, computadores pessoais e contas na nuvem, segundo os investigadores da organização Citizen Lab, do Canadá. Esta entidade já anteriormente publicara relatórios sobre as actividades de espionagem do Grupo NSO, do Google e da Microsoft. O mundo da espionagem dos sistemas de telecomunicações, informáticos e das redes sociais é, certamente, transnacional, o mais favorável, universal e eficaz desde que existe espionagem. E quando a actividade se desenvolve na ausência, em grande parte deliberada, de normas de regulamentação, a situação atinge contornos paradisíacos nas sociedades governadas por mecanismos de vigilância – isto é, todas.

David Kay, ex-relator especial da ONU para promoção e protecção do direito à liberdade de expressão e de opinião pediu uma moratória na venda de softwares de espionagem porque se trata de «uma indústria fora de controlo, irresponsável e irrestrita no fornecimento aos governos, a custos relativamente baixos, de ferramentas de espionagem que apenas os serviços de inteligência dos Estados mais avançados eram capazes de usar anteriormente».

Palavras que o vento leva com toda a naturalidade.

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Falemos então de partilha de dados

As autoridades nacionais e a sobressaltada comunicação social corporativa permanecem inactivos perante um terramoto que arrasa os mais elementares direitos dos cidadãos.

CréditosBrian Snyders / Reuters

Recorrendo a um velho chavão do jornalismo, a notícia caiu como uma bomba nas redacções e logo se expandiu célere pela grei, que mais alarmada não poderia ficar: a Câmara Municipal de Lisboa denunciou à embaixada da Rússia as identificações de activistas que se manifestaram em Lisboa por um abnegado prosélito da resistência anti-Putin. Como deve ser nestas ocasiões de extrema gravidade para a nação, o chefe de Estado tomou as dores da comunidade e em palavras enfáticas manifestou a sua revolta – que é a revolta de todos – com o comportamento municipal. Pena é que o mesmo chefe de Estado e as carpideiras mediáticas não expressem ira semelhante quando a mesma Câmara Municipal partilha com a embaixada de Israel e a benigna Mossad as identidades de activistas portugueses e palestinianos que não concordam com as chacinas em Gaza e a limpeza étnica praticadas pelo Estado sionista.

«O atormentado chefe de Estado e os excitados agentes mediáticos que, num prodígio de imaginação, detectaram que Portugal também tem o seu «Russiagate», poderiam informar-se e informar-nos sobre a assustadora maré de bufaria que nos assalta à escala global»

É óbvio que a Câmara Municipal de Lisboa procede indevidamente ao partilhar com entidades estrangeiras dados que lhe são confiados no âmbito das suas actividades e funções. É um mau princípio, um errado comportamento, no fundo um abuso de confiança contra cidadãos que se responsabilizam por actos em que se expressam direitos democráticos como a liberdade de expressão, de opinião, de manifestação. Seja contra autoridades de países amigos, inimigos ou assim-assim.

Vejamos, entretanto, o mesmo assunto sob outro ângulo. Será que o bombástico acontecimento ganhou tais proporções apenas porque encaixa às mil maravilhas no contexto russófobo em que a opinião pública tem vindo a ser educada?

Apreciemos as coisas ainda de outra perspectiva. Será a Câmara Municipal de Lisboa a única entidade a incorrer em casos de ataque à privacidade de cidadãos enquanto à sua volta tudo são rosas neste campo?

Não é necessária uma investigação muito profunda para percebermos que não. A Câmara Municipal de Lisboa limita-se a cavalgar a onda da devassa irresponsável e generalizada das nossas vidas que caracteriza os tempos em que vivemos. O atormentado chefe de Estado e os excitados agentes mediáticos que, num prodígio de imaginação, detectaram que Portugal também tem o seu «Russiagate», poderiam informar-se e informar-nos sobre a assustadora maré de bufaria que nos assalta à escala global.

Falemos então de partilha de dados.

A campeoníssima União Europeia

O investigador alemão Thorsten Wetzling testemunhou em EUObserver, uma publicação insuspeita nesta matéria tendo em conta o seu ferrenho apego ao federalismo, que existe uma «cada vez mais ampla» partilha de dados dos cidadãos entre agências de espionagem dos países da União Europeia num cenário vazio de controlos e de apuramento de responsabilidades.

Acresce que estão a ser criadas novas instituições no domínio da espionagem e a ser estabelecidos acordos abrangentes de partilha de dados a vários níveis e diferentes jurisdições – com o maior envolvimento de sempre de empresas privadas.

«estão a ser criadas novas instituições no domínio da espionagem e a ser estabelecidos acordos abrangentes de partilha de dados a vários níveis e diferentes jurisdições – com o maior envolvimento de sempre de empresas privadas […]. Os cidadãos, as grandes vítimas do processo, vivem completamente à margem deste universo de devassa da sua privacidade»

Sempre num quadro de vazio legal ou de adaptações legislativas insuficientes para lidar com as novas tecnologias, agências de espionagem de todo o continente e o próprio Serviço de Informações de Schengen (SIS) põem em prática novos recursos de vigilância biométrica e de inteligência artificial que lhes permitem operar com o enorme volume, a vertiginosa velocidade e a complexidade dos dados recolhidos, massificando cada vez mais o assalto.

Os cidadãos, as grandes vítimas do processo, vivem completamente à margem deste universo de devassa da sua privacidade; mesmo instituições democráticas preocupadas com esta realidade são obrigadas a permanecer à distância por força dos todo-poderosos argumentos da «segurança» ou do «combate ao terrorismo» e equivalentes.

Por exemplo, 30 agências de espionagem centralizam informações no gigantesco banco de dados da plataforma operacional do Grupo contra o Terrorismo em Haia, que funciona sem regras claras.

O Parlamento Europeu, por sinal o único órgão eleito na estrutura da União Europeia, dá um exemplo de tratamento abusivo de dados pessoais: apreende e sequestra durante seis meses nos seus servidores informações de internet dos visitantes que recorram ao sistema wifi das instalações em Bruxelas e Estrasburgo. Previsivelmente estes dados são partilhados com entidades privadas porque o sistema de wifi foi montado por empresas contratadas, designadamente a britânica BT. E segundo a lei britânica dos Poderes de Investigação, também conhecida como «lei dos bisbilhoteiros», as empresas de telecomunicações são obrigadas a partilhar os seus dados com as autoridades públicas.

Não se pense, porém, que o Parlamento Europeu esconde esta actividade de espionagem. Nos «termos e condições» de utilização esclarece que se «reserva o direito de fiscalizar o uso da rede por utilizadores individuais». Não explica é tudo.

Além disso, conforme o mundo se apercebeu a partir das oportunas informações veiculadas por Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), sabe-se como são porosas as linhas que separam os universos de espionagem da União Europeia, dos Estados Unidos, do Reino Unido e dos chamados Cinco Olhos, que acrescentam ainda o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia à comunidade globalista de devassa.

Ao pé deste Big Brother, a Câmara Municipal de Lisboa, com as suas denúncias, tem um desempenho de pueril amadorismo. O escândalo foi manifestamente exacerbado e nada esclarece sobre o tenebroso processo universal de circulação abusiva dos nossos dados privados.

Sede do Government Communications Headquarters (GCHQ) em Cheltenham, Reino Unido. O governo britânico intimou o Serviço Nacional de Saúde (NHS) a entregar-lhe a sua base de dados, no valor de 10 mil milhões de libras Créditos

Irmandade da espionagem

Um relatório confidencial da Comissão Europeia admite que informações de cidadãos armazenadas no Sistema de Informações Schengen, que inclui 26 países, entre os quais Portugal, são copiadas ilegalmente por entidades de várias nações, nem todas pertencentes à organização, como é o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos. Em sentido inverso, os serviços oficiais de inspecção dos Estados Unidos apuraram que a NSA recolhe e partilha informações de cidadãos recolhidas clandestinamente com «agências de países da União Europeia», considerados «parceiros regulares».

«informações de cidadãos armazenadas no Sistema de Informações Schengen, que inclui 26 países, entre os quais Portugal, são copiadas ilegalmente por entidades de várias nações, nem todas pertencentes à organização, como é o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos»

Trata-se, afinal, de uma irmandade, uma troca assente na confiança mútua e numa convergência que despreza fronteiras e os mais elementares direitos das pessoas. O Supremo Tribunal da Holanda estabeleceu uma jurisprudência segundo a qual as informações sobre cidadãos holandeses recolhidas por agências de espionagem dos Estados Unidos e do Reino Unido são legítimas porque a legislação destes países é suficiente para assegurar as liberdades individuais. Antje De Jong, um jurista holandês de associações cívicas, comentou assim a aberração: «O que o Supremo Tribunal decidiu é que organizações sem escrúpulos, como Edward Snowden demonstrou, estão acima das leis holandesas e provavelmente, por esta ordem de ideias, das leis de outros países europeus».

Além disso, os dados obtidos através da multiplicidade de canais e agências são transmitidos a empresas privadas que trabalham com os governos na montagem dos sistemas. Estas realidades foram admitidas em Julho de 2019 pelo próprio comissário europeu de Segurança.

Entretanto, o registo antiterrorista da Eurojust e o Portal Europeu de Investigação permitem que perfis pessoais baseados em impressões digitais e imagens faciais armazenados nos sistemas de segurança da Zona Schengen e em polícias como a Europol e a Interpol estejam acessíveis a um número cada vez maior de funcionários em toda a União Europeia. Como se percebe, a privacidade dos cidadãos escorre através de uma rede infindável de canais.

Afirma Thorsten Wetzling que estão a ser operacionalizados dados de âmbitos nacionais em plataformas de análise de informações cruzadas ao nível da União Europeia. E que a Comissão Europeia destina mil milhões de euros a este e outros projectos de «interoperabilidade» até 2027. A pilhagem de informações vai aprofundar-se e alargar-se em termos de instituições e meios.

Sistema comercial de manipulação

«No capitalismo de vigilância as pessoas são, acima de tudo, fontes de informação», considera Shoshana Zuboff, professora e investigadora da Harvard Business School.

Assim se explica como a grande devassa, além de ter finalidades de controlo e condicionamento político e social, funciona também como base do imenso negócio da transformação de bancos de dados em fontes de previsões comportamentais a ser utilizadas, por exemplo, em publicidade e outras actividades de caça aos lucros.

«Eles já sabem o caminho percorrido por cada telefone móvel. Agora conhecem as frequências cardíacas, o bater do pulso de cada um. O que acontecerá quando começarem a misturar estes e outros dados e a aplicar a inteligência artificial?»

Edward Snowden

O governo britânico, por exemplo, intimou o Serviço Nacional de Saúde (NHS) a entregar a sua base de dados ao GCHQ, a organização nacional de espionagem, invocando a necessidade de ser protegida contra ataques cibernéticos. Ora os ficheiros de inscritos no NHS, segundo a consultora Ernst & Young, estão avaliados em 10 mil milhões de libras e são cobiçados, entre outros, por multinacionais da indústria farmacêutica, seguros de saúde, hospitais e clínicas privadas. O GCHQ, por seu lado, tem perdido processos judiciais em que é acusado de utilizar hackers e de praticar pirataria de dados, designadamente em colaboração com instituições privadas como Google e Amazon.

«Actualmente pratica-se uma vigilância na qual os indivíduos são observados e não têm a sensação de vigilância mas sim de liberdade», diz o filósofo sul-coreano Byung Chul-han. «Sem que estejamos conscientes, somos dirigidos e controlados», acrescenta.

«Eles já sabem o que cada um está a ver na internet», recordou Edward Snowden no Festival de Documentários de Cinema de Copenhaga em 2020. «Eles já sabem o caminho percorrido por cada telefone móvel. Agora conhecem as frequências cardíacas, o bater do pulso de cada um. O que acontecerá quando começarem a misturar estes e outros dados e a aplicar a inteligência artificial?»

Na ocasião em que as declarações foram proferidas estava no início o processo de utilização da pandemia de Covid-19 como pretexto para aprofundamento da sociedade de vigilância. «Quando observamos as medidas de emergência que estão a ser tomadas, particularmente nesta fase, devemos ter a noção de que elas tendem a ficar “coladas”», advertiu Snowden.

A Covid-19 fez disparar uma bateria de instrumentos de controlo e identificação supostamente associados ao combate à pandemia – software, sensores, aplicações para smartphones – com um acréscimo de incorporação de empresas e redes privadas no sistema generalizado de vigilância. O Google, por exemplo, é parte dos instrumentos para perseguir e rastrear pessoas através de telefones móveis e da internet.

«A história da criação deliberada do moderno Estado de vigilância inclui elementos do Google com origem surpreendente», escreveu Jeff Nesbit na publicação Quartz. Mas já muito antes, há quase dez anos, a TV norte-americana CBS salientava que «ninguém precisa de ser adivinho para ter a certeza de que a CIA usa o Facebook, o Twitter, o Google e outras redes sociais para espiar as pessoas».

Também ninguém precisará de ser adivinho para saber que essas operações de espionagem e de perseguição não estão a cargo de gente e instituições de bem. Em Setembro de 2018, por exemplo, o Google foi condenado a pagar 170 milhões de dólares por recolha ilegal de dados pessoais de crianças.

A última versão, provavelmente a mais apurada e elaborada, da estratégia de aproveitamento da pandemia com fins de vigilância, rastreio e controlo de movimentos das pessoas é a massificação dos certificados digitais de vacina, impostos a cada cidadão para poder levar uma vida normal trabalhando, participando em actos políticos, cívicos, de recreio e cultura ou viajando. Teoricamente a vacina contra a Covid-19 não é obrigatória, mas quem não possua o certificado digital de vacinação arrisca-se a uma profunda discriminação, a ficar condenado a um eterno gueto social.

Câmara de videovigilância Créditos

O futuro que já é presente

Os mil milhões de euros reservados pela Comissão Europeia até 2027 para a «interoperabilidade» dos meios de vigilância, um neologismo que é sinónimo de espionagem em massa, vão incidir, designadamente, no recurso aos mais modernos mecanismos de ataque à privacidade como o reconhecimento facial e outros dados biométricos, processados através de inteligência artificial.

A recolha de imagens faciais já está em curso, em «fase de teste», designadamente em Nice – onde podem ser identificados um a um, por exemplo, os participantes no famoso carnaval da cidade.

Trata-se de reconhecimento facial sem conhecimento do próprio e num quadro de vazio legal, como reconhece o relatório de Novembro de 2019 da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais.

«A Câmara Municipal de Lisboa usou meios prosaicos num processo condenável e o país foi avassalado por um escândalo. Entretanto, os dados de todos e cada um de nós correm mundo, usados e manipulados por interesses públicos e privados desconhecidos para fins quase sempre ignorados em processos tecnológicos das mais recentes gerações geridos apenas pela lei da selva»

Segundo este documento, a União Europeia utiliza seis sistemas principais de identificação pessoal, cinco dos quais estão configurados para processar imagens faciais em actividades relacionadas com «segurança» e «migração», conceitos suficientemente amplos para neles caberem quase tudo e quase todos. Entre estes inclui-se o Sistema de Informações de Schengen, onde como vimos, se registam casos de cópias ilegais de informações por países membros e não membros.

Diego Naranjo, da organização não-governamental (ONG) European Digital Right, não tem dúvidas de que o uso de reconhecimento facial durante manifestações ou outras actividades cívicas pode desencorajar muitas pessoas de exercerem os direitos básicos de liberdade de reunião, de expressão ou de associação.

Por outro lado, «pode acontecer que a tecnologia de reconhecimento facial aumente exponencialmente o número de falsas identificações, por exemplo pessoas detidas sem terem cometido qualquer crime», segundo Nicolas Kaiser-Bril, da ONG Algorithm Watch.

É cada vez maior o número de países e de instâncias que recorrem a este método de identificação à revelia das pessoas e sem que haja legislação própria para o fazerem. David Martin, da Organização Europeia de Consumidores, considera que «os consumidores devem ser informados quando empresas ou governos recorrem ao reconhecimento facial de pessoas sem que estas tenham a possibilidade de dizer não».

Na falta de legislação específica vigora a lei da selva, que casa muito bem com a espionagem e a devassa massiva da privacidade dos cidadãos.

Na União Europeia o reconhecimento facial é tratado no âmbito dos «dados biométricos», regidos pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados. Apesar de ser generalista, este exige, ainda assim, que as pessoas estejam cientes de que os seus dados são armazenados, o que não acontece.

Em Junho de 2019, um grupo de especialistas de alto nível da União Europeia concluiu que a identificação automática de indivíduos por mecanismos de inteligência artificial suscita «fortes dúvidas de natureza legal e ética». Daí que as pessoas «não devam estar sujeitas a rastreios injustificados de identificação pessoal, física ou mental, a perfis e registos através de métodos de reconhecimento biométrico de inteligência artificial, reconhecimento facial, de voz, identificação comportamental, ADN e íris». Trata-se de métodos que devem ser objecto de legislação específica, recomendam os especialistas.

A Câmara Municipal de Lisboa usou meios prosaicos num processo condenável e o país foi avassalado por um escândalo. Entretanto, os dados de todos e cada um de nós correm mundo, usados e manipulados por interesses públicos e privados desconhecidos para fins quase sempre ignorados em processos tecnológicos das mais recentes gerações geridos apenas pela lei da selva.

O chefe de Estado, outras compungidas autoridades nacionais e a sobressaltada comunicação social corporativa, no entanto, permanecem inactivos perante um terramoto que arrasa os mais elementares direitos dos cidadãos. Pondo de lado a hipótese de desconhecerem a existência de uma situação tão grave, estamos apenas perante um silêncio cúmplice.

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Por outro lado prevalecem afirmações como as proferidas pelo Grupo NSO, que se apresenta «como um criador de tecnologia que ajuda agências internacionais a prevenir e a investigar o terrorismo e o crime, de modo a salvar milhares de vidas em todo o mundo».

O presidente do WhatsApp, não considera, contudo, que as práticas da empresa israelita sejam tão meritórias, sobretudo depois de infectarem os telemóveis de pelo menos 1400 clientes da rede: «o spyware perigoso da NSO é usado para cometer horríveis abusos de direitos humanos em todo o mundo, pelo que deve ser travado».

Esta situação levou o Facebook, proprietário de WhatsApp, a iniciar um processo contra o Grupo NSO por ter usado servidores nos Estados Unidos para infectar com o seu software malicioso os smartphones de advogados, jornalistas, defensores dos direitos humanos, críticos de Israel e funcionários governamentais.

O Grupo NSO argumenta que isso não acontece porque o seu software não pode ser usado com números telefónicos dos Estados Unidos. Ao que Edward Snowden, que sabe do que fala depois da sua vastíssima experiência na NSA, respondeu que se trata de «uma mentira descarada» pois, nesta matéria, «o telemóvel de Macron é igual ao de Biden».

Uma questão de imagem

Não nos deixemos levar, porém, por esta faceta de uma guerra entre entidades dos Estados Unidos e Israel que é apenas mais um elemento, principalmente de base concorrencial, da situação espoletada pela exposição pública de actividades do software Pegasus do Grupo NSO.

CITAÇÃO: A questão é apenas de imagem; isto é, espiar as pessoas à escala global e sem regras, fazendo parecer que se trata de uma actividade inocente, até capaz de cuidar da nossa segurança através do combate ao crime e ao terrorismo

Uma faceta que revela como amigos, amigos, espionagens à parte. O General Counting Office dos Estados Unidos reconhece que «Israel conduz as operações de espionagem contra os Estados Unidos mais agressivas do que qualquer outro dos seus aliados». Isto acontece entre aliados, imaginem. Por aqui podemos deduzir o potencial impacto global de softwares à solta como o Pegasus.

No fundo, como vai perceber-se, às questiúnculas da espionagem entre amigos sobrepõe-se o interesse geral de montar uma sociedade de vigilância da qual os poderes e interesses dominantes extraiam as suas vantagens específicas. E as vítimas serão sempre os cidadãos, a esmagadora maioria dos quais ignoram em absoluto a devassa da sua privacidade.

O Grupo NSO recrutou em 2019 quatro conselheiros para lhe tratarem da imagem, sobretudo quanto aos «abusos em matéria de direitos humanos». Trata-se, segundo os próprios agentes da espionagem israelita, de «aconselhar a empresa a defender os direitos humanos e a privacidade».

Para o efeito foram então contratados, como pode ver-se nos materiais oficiais da empresa israelita: Gérard Araud, ex-embaixador francês em Israel, nos Estados Unidos e na ONU; Tom Ridge, ex-secretário de Estado de Segurança Interna na administração de George W. Bush; Juliette Kayyen, ex-secretária adjunta dos Assuntos Governamentais nas gestões de Barack Obama; e Anita Dunn, que já fez parte da estrutura de conselheiros de Joseph Biden e que no Grupo NSO vai tratar «da assessoria de relações públicas para melhorar a imagem da empresa».

Como se percebe, o problema não é o software Pegasus ter capacidade «para espiar quase toda a população do mundo» e violar direitos fundamentais; nem sequer são graves as guerras de alecrim e manjerona sobre espionagem entre aliados. A questão é apenas de imagem; isto é, espiar as pessoas à escala global e sem regras, fazendo parecer que se trata de uma actividade inocente, até capaz de cuidar da nossa segurança através do combate ao crime e ao terrorismo. Por sinal conduzida, na sua essência, por Estados patrocinadores do terrorismo, como está sobejamente comprovado.

Em suma, com a NSA, o Pegasus e certamente muito outros instrumentos, somos todos espiados, mas devemos estar agradecidos.

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