|Ucrânia

Tempos e comportamentos degradantes. II - E, no entanto, ele existe

Não existe nazismo na Ucrânia ou a sua presença é insignificante, garantem os dirigentes ocidentais, tentando disfarçar as mãos sujas da cumplicidade com uma realidade que compromete o seu discurso oficial.

O batalhão Azov, apoiado pela NATO e pelas lideranças da UE e dos EUA, e tratado pelos mainstream media ocidentais como «nacionalistas ucranianos» ou «admiradores de Stepan Bandera», usa o símbolo nazi Wolfsangel na sua bandeira e uma das tropas de choque preferidas do governo de Kiev, no Leste como no resto do país.
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As posições das autoridades portuguesas e da casta política dominante perante a guerra na Ucrânia, fundidas na matriz estrangeirada e inquisitorial, acéfalas, hipotecando até a segurança, a qualidade de vida e o direito dos portugueses a uma vida decente marcam uma viragem histórica e revoltante ao nível nacional.

Esta ruptura vinha-se adivinhando a partir do momento em que a fiscalização constitucional passou a ignorar a Constituição da República e o carácter fundamental antifascista das suas origens ao permitir a legalização de organizações aferradas ao passado salazarista.

«Os nazis ucranianos de hoje – nazis mesmo, não neonazis nem neofascistas porque as suas referências em termos de figuras veneradas e acções concretizadas remontam aos tempos da colaboração com Hitler – viraram as miras contra tudo o que seja «russo» ou «pró-russo» em nome da defesa de alegada pureza de sangue e da superioridade branca»

A situação actual representa, contudo, uma alteração qualitativa na sociedade, aquela em que, sempre com base em «compromissos internacionais» nos quais os portugueses não foram tidos e achados, a clique oligárquica dominante tenta ostensivamente soterrar o 25 de Abril; não hesitando, para isso, em dar todo o espaço do mundo aos revanchistas que nunca desistiram de humilhar e aviltar a Revolução enxovalhando os seus valores fundadores e também os patriotas que arriscaram e deram a vida por eles. Com a agravante de esses mesmos revanchistas e os que se foram tornando seus cúmplices ao longo de quase cinco décadas não hesitarem em admitir a interferência nazi internacional na tentativa de esmagamento dos valores que formataram a democracia portuguesa com características únicas. Essas particularidades distinguiam-na ainda dos modelos corrompidos das democracias (neo) liberais funcionando dentro de um espaço político único que determina a exclusão de projectos diferentes, oprime a diversidade, apaga a História, trucida o patriotismo e assume cada vez mais tendências autoritárias com espírito totalitário. Agora, em Portugal, as diferenças esbateram-se mais um pouco e sobrevivem sobretudo nas memórias e na coragem de acreditar dos que ainda não têm a cabeça em formato de ecrã de televisão.

O golpe profundo no 25 de Abril foi dado durante as comemorações deste ano e os desenvolvimentos degradantes prosseguem com as atitudes que estão a ser tomadas pelos órgãos de poder, principalmente desde que entregaram o epicentro das comemorações – foi assim que a manobra funcionou – a um indivíduo comprometido com um aparelho nazi que domina a Ucrânia Ocidental e funciona como centro de expansão de correntes e organizações nazifascistas através da Europa, como vamos percebendo entre nós. E que serve o enraizamento ainda mais profundo do neoliberalismo globalista na desesperada tentativa de sobrevivência através de uma espécie de último recurso: o regresso às origens através do suporte da economia totalitária por poderes políticos ditatoriais. Exemplos também circulam entre nós.

Vamos a factos, e apenas a factos, sobre o indivíduo em causa, Volodymir Zelensky, e o seu regime de base nazi em vigor na Ucrânia desde 2014, muitos anos antes da invasão militar russa do país.

O poder político de Kiev é sustentado por uma nuvem de organizações e indivíduos nazis e assenta na identificação plena de um nacionalismo xenófobo com a herança nazi que remonta ao período da própria ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. O seu desenvolvimento centrou-se originalmente na ideia de independência assumida contra o poder soviético em finais dos anos trinta e na primeira metade dos anos quarenta do século passado e teve então como alvos principais os polacos, judeus e resistentes soviéticos, vítimas de carnificinas em massa cometidas por várias organizações nacionalistas ucranianas em parceria com as tropas invasoras hitlerianas.

Os nazis ucranianos de hoje – nazis mesmo, não neonazis nem neofascistas porque as suas referências em termos de figuras veneradas e acções concretizadas remontam aos tempos da colaboração com Hitler – viraram as miras contra tudo o que seja «russo» ou «pró-russo» em nome da defesa de alegada pureza de sangue e da superioridade branca. Andriy Biletsky, fundador de várias das actuais organizações nazis, entre elas o partido Svoboda e o Movimento/Batalhão Azov, incorporado na Guarda Nacional, teorizou sobre essas matérias e também sobre a necessidade de promover uma «cruzada branca»; as ideias do «führer branco», como Biletsky é conhecido, servem de cartilha nos campos de juventude organizados por entidades estatais, geridos pelo Movimento Azov e nos quais é ministrado treino militar a adolescentes e pré-adolescentes. Os conteúdos xenófobos defendendo a suposta superioridade genética sobre os russos, considerados «sub-humanos», fazem parte dos livros escolares oficiais, transformados em instrumentos doutrinários do regime de apartheid.

Estas ideias, tornadas dominantes nos círculos do poder de Kiev através de mecanismos bem pouco democráticos, estiveram na origem da guerra lançada pelo poder resultante do golpe da Praça Maidan, em 2014, contra as regiões do Centro e Leste do país habitadas maioritariamente por ucranianos de origem russa. No espírito e na prática trata-se de uma tentativa de limpeza étnica que se prolonga há oito anos, por muito que a evocação desta realidade contrarie dirigentes políticos e diplomatas a quem compete «vender» uma imagem democrática ao Ocidente, uma preocupação que, afinal, nem tem razão de ser tal a compreensão perante tudo o que se passa a partir da capital ucraniana.

Na campanha eleitoral de 2019, em que Zelensky defrontou na segunda volta Poroshenko – presidente saído do golpe de Maidan, responsável pelo desencadear da guerra contra as populações a Leste – ousou dizer que trabalharia pela paz no Donbass através da aplicação dos Acordos de Minsk e recebeu um esmagador apoio no Centro, Sul e Leste do país, com 80-90% dos votos em Lugansk, Donetsk, Kharkiv ou Odessa. Depois de eleito, rapidamente mudou de ideias: numerosas reportagens independentes explicam que os círculos de poder nazis ameaçaram o presidente de lhe retirar o mandato e talvez algo mais. Remédio santo.

«a insuspeita agência Reuters testemunha que os corpos militares nazis e os mercenários estrangeiros que eles enquadram dentro das forças armadas ucranianas totalizam pelo menos cem mil efectivos. Além disso, qualquer unidade do exército integra elementos de controlo político pertencentes aos batalhões nazis»

De então para cá não só as amarras nazis condicionam o comportamento do ex-comediante protegido do oligarca nazi Ihor Kolomoisky como também os tutores ocidentais o impedem de acabar com a guerra através de negociações. Trata-se de fazer cumprir a estratégia de Washington e Bruxelas de forçarem Moscovo a um conflito prolongado como forma de «enfraquecer a Rússia», afinal o grande objectivo imperial em nome da sobrevivência da unipolaridade. Os ucranianos, de Oeste ou Leste, são o que menos importa no seu papel de carne para canhão.

Não existe nazismo na Ucrânia ou a sua presença é insignificante, garantem os dirigentes ocidentais tentando disfarçar as mãos sujas da cumplicidade com uma realidade que compromete o seu discurso oficial. Além do cenário político já enunciado, a insuspeita agência Reuters testemunha que os corpos militares nazis e os mercenários estrangeiros que eles enquadram dentro das forças armadas ucranianas totalizam pelo menos cem mil efectivos. Além disso, qualquer unidade do exército integra elementos de controlo político pertencentes aos batalhões nazis, que se têm distinguido, por exemplo, na oposição a rendições baleando pelas costas os militares prontos a depor as armas; e também pela utilização de zonas residenciais e do sequestro de civis como escudos humanos (à maneira do Isis) para tentar evitar ataques inimigos, práticas que são proibidas pelas convenções internacionais.

A verdade é que o idolatrado Zelensky – imagem fabricada por 150 agências de comunicação internacionais pagas a preço de ouro – não se fez rogado na caminhada nazi: proibiu a língua russa, fechou os meios de comunicação em russo, ilegalizou todos os partidos da oposição, confirmando assim que as organizações nazis fazem parte da estrutura de poder ao deixá-las incólumes; montou uma operação militar de blitzkrieg para «retomar» as regiões Leste, frustrada pela antecipação da invasão russa; elimina regularmente adversários políticos; encerrou estações de televisão e obrigou as remanescentes a terem o mesmo padrão de informação, determinado pelo governo – uma coisa que, quando praticada noutras paragens, costuma chamar-se censura; faz circular uma lista de nomes (Peacemaker, Myrotvorets) incitando à perseguição de cidadãos considerados «inimigos do Estado» e expondo os seus principais dados de identificação. Para alguém passar a fazer parte dessa fonte para execuções extrajudiciais basta que critique a «revolução de Maidan» ou contrarie a agenda nazi.

«o venerando chefe do Estado acha que devem ser investigados os conteúdos da lista de delação da associação ucraniana em Portugal, o que parece efectivamente curto – restritivo, parcial e preconceituoso – em relação ao que está em causa numa situação de guerra para a qual as autoridades nacionais e os seus megafones arrastaram irresponsavelmente o país. No mínimo seria razoável que o presidente-militante mandasse averiguar também os comportamentos e ligações da citada associação de ucranianos»

Esta lista é administrada pelos serviços secretos ucranianos, SBU, também conhecidos pela «Gestapo de Kiev» e dirigidos pelo «Estrangulador», nomeado recentemente por Zelensky. Vários membros da lista vão desaparecendo paulatinamente, entre eles dirigentes políticos que não estão de acordo com o regime, jornalistas, blogueiros, até um membro da delegação da Ucrânia às negociações com a Rússia, considerado «traidor». É pena que o Ocidente, autoproclamado juiz em matéria de direitos humanos e valores democráticos, não tenha ou não queira tomar conhecimento destes casos extremos da perseguição política tão próprios de regimes nazi-fascistas.

O método da «lista de paz» parece, contudo, não se circunscrever à Ucrânia e existem indícios de que já foi exportado. Também a chamada «Associação de Imigrantes Ucranianos» em Portugal, em cujas manifestações, em locais públicos, se reclama a ilegalização do Partido Comunista Português, tem a sua lista de delação, melhor dizendo de bufaria fascista, adoptando a linguagem comum dos tempos negros em Portugal, que administra em conjunto com as secretas portuguesas na caça aos «amigos de Putin». O que nos leva a pôr a legítima hipótese de a dita associação funcionar como ramo do famigerado SBU, situação que diz muito sobre a permeabilidade das autoridades portuguesas, a começar pelo governo, às infiltrações nazis externas de que o regime de Kiev é um dos centros emissores.

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Tempos e comportamentos degradantes. I - Bruxelas erra nas contas

O cenário dos sofrimentos impostos aos povos que vivem dos dois lados das barricadas não é estático; está a suscitar mudanças e não na direcção dos maníacos das sanções agarrados como causa de vida ou morte à ordem imperial unipolar.

A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante um debate no Parlamento Europeu sobre as consequências económicas e sociais da guerra na Ucrânia. Estrasburgo, França, 4 de Maio de 2022
CréditosJean-François Badias / AP

O desespero não costuma ser bom conselheiro. E quando se desenvolve num mar de mentiras, inversão de princípios, anacronismos e patéticas manias das grandezas o mais certo é resultar em naufrágio.

A União Europeia segue por essa rota e parece não ter a bordo alguém com o necessário rasgo de lucidez para evitar a catástrofe. Que atingirá não os responsáveis pelas decisões nefastas, porque os oligarcas patrões dos mandantes políticos raramente se afogam, mas sim os povos dos 27 Estados membros e de outros cujos governos lêem pela mesma cartilha. Dias negros estão no horizonte do chamado Velho Continente e, simbolicamente, Portugal ilustrou a degradação de valores que alimenta a catástrofe ao hipotecar o aniversário da Revolução de 25 de Abril a interesses não democráticos, prejudiciais para os portugueses, autoritários e, como se não fosse suficiente, amantes da guerra, da fabricação e manutenção de conflitos como instrumento para gerir a sociedade.

Os Estados Unidos, geridos por um bando de falcões neoconservadores irresponsáveis para tentar dar cobertura ao cada vez mais perceptível estado de demência do presidente, parecem seguir o mesmo caminho da União Europeia, mas a situação tem ainda o seu quê de ilusório enquanto Washington puder recorrer aos povos da Ucrânia e de toda a Europa como carne para canhão na atormentada defesa do império e do caminho para o totalitarismo globalista. A tal ordem internacional «baseada em regras» ditadas em Washington que faz gato sapato do direito internacional.

Afinal é disto que se trata, em última análise, ao assistirmos à guerra na Ucrânia: assegurar que o império sobreviva como senhor do planeta em regime unipolar perante o assédio natural, e com o tempo a seu favor, de grandes e médias potências emergentes que deixaram de estar dispostas a submeter-se a uma velha ordem imposta por aristocratas da «civilização» que há muitos séculos receberam o «sopro divino» como donos absolutos das coisas terrenas. Nada mais do que Deus no Céu e os oligarcas na Terra.

O mundo, porém, está a deixar de funcionar assim. E, através de um efeito perverso que não é mais do que fruto do desespero pelo qual o chamado Ocidente está tomado, as transformações aceleraram-se devido ao modo errático e autoflagelador como os Estados Unidos e, sobretudo, os seus satélites da NATO e da União Europeia, responderam à invasão russa da Ucrânia. As sanções estão a virar o feitiço contra o feiticeiro, isolam os que as impõem e dinamizam o alargamento de horizontes e a confirmação de novos caminhos e experiências dos que as sofrem. O povo da Rússia – e não a oligarquia que gere o país – é a verdadeira vítima das sanções mas também o são os povos europeus, arrastados para uma guerra que não é sua porque só em termos de propaganda terrorista pode considerar-se que se trava em defesa de valores democráticos e humanistas. A estes, para os fazer vingar não são necessárias guerras, muito pelo contrário.

Porém, o cenário dos sofrimentos impostos aos povos que vivem dos dois lados das barricadas não é estático; está a suscitar mudanças e não na direcção dos maníacos das sanções agarrados como causa de vida ou morte à ordem imperial unipolar.

Reforçando nas últimas semanas as tendências transformadoras, a Rússia e China – este país sem deixar a sua proverbial discrição e o respeito pelo princípio da não ingerência – incrementaram estratégias regionais e transnacionais envolvendo os países que não seguiram o diktat norte-americano de sanções à Rússia e começaram a aplicar medidas concretas com repercussões em áreas económicas, financeiras e comerciais. Estas acções reforçam os processos de integração regional e de cooperação transnacional estabelecendo relações muito mais sustentáveis e igualitárias, independentemente das políticas governamentais. O que está a passar-se, como se percebe ignorando a propaganda, nada tem a ver com a prática e a defesa da democracia.

Bruxelas erra nas contas: os povos é que pagam

Biden, Von der Layen e os seus agentes amestrados, sem esquecer Olaf Scholz e Emmanuel Macron, prometeram que as sanções iriam enfraquecer a Rússia e deixar o rublo de rastos. Mês e meio depois da entrada das tropas russas na Ucrânia, e apesar do roubo das reservas cambiais de Moscovo na Europa, o rublo está mais forte do que antes da guerra, o dólar continua a perder terreno como divisa internacional, substituído por combinações de moedas nacionais em negócios envolvendo as matérias-primas mais estratégicas, principalmente os combustíveis fósseis; e estão a ser dados os últimos passos para o lançamento de uma divisa comercial garantida por uma cesta de moedas e um conjunto das principais matérias-primas capaz de alimentar o comércio na maior parte do mundo, certamente entre a grande maioria da população mundial.

Perante estas tendências de imensa abrangência quais são os horizontes da União Europeia? As suas antigas colónias, muitas delas tentadas pelos novos ventos, recusando-se até a impor sanções à Rússia? A América Latina, onde não se registou um único caso significativo de ruptura com a Rússia, sem esquecer a disponibilidade para manter e desenvolver a cooperação com Moscovo e Pequim? É um facto que nas últimas semanas, coincidindo com os sucessivos pacotes de sanções contra a Rússia, se registaram sinais de maior consistência do grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) – representando cerca de metade da população mundial. Certamente não é coincidência.

Deverá então a União Europeia virar-se ainda mais para os Estados Unidos? Um país que manda impor sanções contra a Rússia e que no último mês de Março aumentou em 21% as importações de petróleo russo enquanto obrigava a Europa a cortar totalmente o fluxo dessa matéria-prima?

É uma estratégia que, lamentavelmente, também parece ser a única que resta aos 27. Dos Estados Unidos a Europa receberá comida transgénica; filmes idiotas ou de discurso de ódio; exemplos de xenofobia e racismo, com muito boa aceitação do lado de cá; gás natural que arruína vastas zonas continentais a um preço que poderá triplicar o que era pago pelo gás russo, mesmo que fosse em contas abertas em bancos moscovitas; receberá também petróleo, certamente parte daquele que Washington compra a Moscovo em tempo de sanções – com uma inapelável margem de lucro para o intermediário. E receberá armas, muitas armas, para substituir as armas, muitas armas que estão a ser enviadas para a Ucrânia, destinadas a ser transformadas sumariamente em sucata numa guerra que os «aliados» pretendem alimentar pelo menos até ao último dos ucranianos. A hipocrisia do Ocidente fingindo condoer-se com a sorte dos ucranianos parece muito pouco «civilizada» e ainda menos «cristã», para já não invocar em vão o santo nome da «democracia liberal» – que vai morrendo de excelente saúde. Que venham então armas da generosa e protectora América para os portugueses pagarem com dinheiro que não há para a saúde, as escolas, os salários e os reformados; não foi o venerando chefe de Estado português quem sentenciou, por sinal durante a evocação do movimento pacificador de 25 de Abril, que ser «patriota» é contribuir com mais armamento para as Forças Armadas? Parafraseando o saudoso José Mário Branco, «houve aqui alguém que se enganou».

Uma descoberta fantástica

No meio da lixeira mediática cacofónica acumulada por analistas, especialistas, comentadores, directores, professores, académicos e ofícios correlativos às vezes escapa-se uma surpresa. Não pelo conteúdo, é claro, porque esse não afronta nem pode afrontar a opinião totalitária sobre a guerra na Ucrânia, mas pela conclusão extraída, uma descoberta assombrosa que nos chegou pela pena de Azeredo – felizmente não desaparecida em Tancos – e que foi, imagine-se, ministro da Defesa.

A conclusão reflecte uma certa síndrome de Calimero, mas nem por isso deve ser desvalorizada. Queixa-se Azeredo: «Não nos ligam nada!».

O «nos» são os cerca de 40 países que impõem sanções à Rússia – os da NATO (menos a Turquia), da União Europeia (excepto a Hungria) mais o Reino Unido e seus vassalos da Oceania e ainda uns apêndices orbitando o sol imperial.

Nas suas trabalhosas e desconsoladoras diligências Azeredo descobriu que há mundo para lá da cortina de ferro de propaganda totalitária defendida pelos impiedosos guardiões da verdade instalados em cada recanto da sociedade de cá, até nas outrora pacatas tertúlias familiares ou de café. Um mundo, admira-se ele depois de ter consultado dezenas de jornais de todo o planeta, onde se concentra a esmagadora maioria da população, habitando as mais vastas áreas territoriais. Um mundo onde não há espaço para sanções à Rússia e onde até, vejam lá, os meios de comunicação reservam esconsos lugares de primeira página ou mesmo o anonimato das páginas interiores para as notícias da guerra na Ucrânia.

Um mundo – isso não o disse Azeredo – que representa cerca de 85% do planeta e que agora, para desconsolo do analista-ex-ministro, «não nos liga nada». Afinal, submetidos a um recanto de 15%, andaremos a pregar no deserto esta tão requintada obra de mentira e de indução esquizofrénica baseada no culto da guerra ou então, sordidamente, a envenenar-nos a nós próprios?

«Não nos ligam nada», queixa-se Azeredo. Certamente tais multidões agora insensíveis perante o esforço civilizatório ocidental são todas adeptas ou até compinchas de Putin, esse maléfico que ousa combater o cancro criado pela verdade oficial do lado de cá com banhos de sangue fresco jorrando de cornos de veado serrados, como nos explica o omnisciente New York Times.

«Não nos ligam nada». A nós, a fina flor da civilização, os donos da democracia, os senhores dos exércitos, os benfeitores que sempre usaram guerra para espalhar o bem, a fé e a civilização pelo mundo, os justiceiros, os proprietários naturais dos bens e das riquezas do planeta, aqueles que tanto nos incomodamos com os ucranianos da parte ocidental do país mas nunca tínhamos ouvido falar do terrorismo que martiriza os ucranianos do Centro e Leste do país. Em suma, a ingratidão sem fim.


(continua amanhã)

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Se em tempos se argumentou que não deveriam entrar refugiados sírios e de outras áreas do Médio Oriente na União Europeia para evitar a infiltração de membros terroristas do Isis, estranha-se que não se revele a mesma preocupação perante o ingresso de «refugiados de guerra» ucranianos com idades para estarem mobilizados nas fileiras do seu exército nacional. Há os que exibem automóveis de topo de gama com matrícula ucraniana por essa Europa fora, pelo que também podem existir os que trazem habilitações e missões conspirativas. É só uma hipótese, seguindo a lógica de comportamento do regime de Kiev. Pelo que já se percebeu, os métodos de infiltração e ingerência são bastante expeditos. No entanto, o venerando chefe do Estado acha que devem ser investigados os conteúdos da lista de delação da associação ucraniana em Portugal, o que parece efectivamente curto – restritivo, parcial e preconceituoso – em relação ao que está em causa numa situação de guerra para a qual as autoridades nacionais e os seus megafones arrastaram irresponsavelmente o país. No mínimo seria razoável que o presidente-militante mandasse averiguar também os comportamentos e ligações da citada associação de ucranianos. Em nome do respeito pela dignidade, a independência, o patriotismo e o papel democrático dos portugueses e de instituições que os representam e cuja história, mesmo que dizendo pouco ao venerando chefe de Estado, é impossível de apagar.


(continua e conclui amanhã)

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