Tal como se previu ainda antes de o autoritarismo começar a cavalgar a pandemia, a Covid-19 tem as costas muito largas e nelas cabem todos os pretextos imagináveis para usar discricionariamente as alavancas dos poderes, sejam eles nacionais e, sobretudo, globais. Não existe nada tão sensível como a saúde, de cada um e de todos; nada é tão manipulável como uma sociedade reduzida ao medo, agravado através de campanhas de pânico; poucas coisas condicionam tanto os comportamentos humanos como a incerteza. E os que não convivem bem com a democracia aproveitam.
O caldo de cultura está pronto: basta mexê-lo. E para isso há mestres em acção e com receitas bem programadas que já perderam há muito, nas ânsias de aproveitar «esta rara mas estreita janela de oportunidade», as originais e alegadas preocupações com a saúde pública. Em boa verdade, é «do futuro dos negócios que se trata», como agendou o Fórum Económico Mundial para o seu próximo conclave em Davos, que decorrerá ainda em pleno «Inverno negro» pandémico.
«poucas coisas condicionam tanto os comportamentos humanos como a incerteza. E os que não convivem bem com a democracia aproveitam»
Recuemos dez anos no tempo e recordemos o cenário imaginado pela globalista Fundação Rockefeller, uma das principais patrocinadoras do fórum de Davos, ao antecipar o aparecimento de «uma nova estirpe de gripe extremamente virulenta e mortal». Estávamos em 2010 e no capítulo «Lock Step» da sua antevisão, designada «Cenários para o Futuro da Tecnologia e do Desenvolvimento Internacional», a citada fundação projectava uma situação em que, perante a pandemia, «dirigentes nacionais em todo o mundo reforçam a sua autoridade e impõem regras e restrições herméticas, desde o uso obrigatório de máscaras até à verificação da temperatura temporal».
A Fundação Rockefeller, além de reconhecidamente «filantrópica», como as comunicações mundana e «de referência» nos lembram sem parar, é também visionária. E previu, como consequência da pandemia, «um apertado controlo governamental de cima para baixo e uma liderança mais autoritária», com «crescente pressão sobre os cidadãos».
Se recordo estes dotes de adivinhação manifestados pelos mais acérrimos defensores da globalização neoliberal, também exibidos durante o «Evento 201» ocorrido em Outubro de 2019, dois meses e meio antes de conhecido o SARS-CoV-2, é para os podermos ler e interpretar de acordo com a realidade que vivemos nos dias de hoje.
E podermos partir daí para antevermos o que nos espera, com ou sem Covid-19, cingindo-nos ainda às antevisões feitas em 2010.
«a nova e "virulenta estirpe de gripe" trouxe o poder autoritário; depois, o vírus vai-se mas o autoritarismo fica. Não se trata, pois, de saúde pública mas, sim, de poder; e de poder cada vez mais global e antidemocrático»
«Mesmo depois de a pandemia ter sido ultrapassada», lê-se no «Lock Step» da Fundação Rockefeller, «o controlo e supervisão mais autoritários das cidades continuaram e intensificaram-se» e, como «protecção contra a disseminação de problemas cada vez mais globais – de pandemias ao terrorismo internacional, a crises ambientais e ao aumento da pobreza –, os dirigentes mundiais apoderaram-se de maneira mais firme do poder».
Isto é, a nova e «virulenta estirpe de gripe» trouxe o poder autoritário; depois, o vírus vai-se mas o autoritarismo fica. Não se trata, pois, de saúde pública mas, sim, de poder; e de poder cada vez mais global e antidemocrático.
Porque – e recorrendo ainda à receita programática da Fundação Rockefeller – a imposição desse autoritarismo será facilitada «por cidadãos assustados que voluntariamente abandonam parte da sua soberania – e privacidade – a Estados mais paternalistas, em troca de maior segurança e estabilidade».
Agora, entre as previsões e a realidade por nós vivida tente o leitor situar-se.
A «janela de oportunidade»
Foi no Verão deste ano, quando ainda os poderes nacionais e transnacionais não tinham retomado a vertigem dos estados de excepção, preparando assim os cidadãos para que a excepção venha a ser a regra, que o Fórum Económico Mundial anunciou o tema para a sua reunião em Janeiro de 2021: o «Futuro da Natureza e dos Negócios» no âmbito do «Great Reset», o «grande reinício» ou a «grande restauração» do capitalismo.
O Fórum Económico Mundial não é apenas mais um grupo de pressão e propaganda do neoliberalismo global como regime único. É, de facto, uma cimeira do neoliberalismo ao mais alto nível. Acolhe anualmente dezenas das grandes figuras da política e da economia globais, com destaque para os Estados Unidos da América – presidente incluído, seja ele qual for – e para a União Europeia, sem esquecer as presenças imprescindíveis dos expoentes do Banco Central Europeu, do Banco Mundial e do FMI.
«como explica o magnata alemão Klaus Schwab, presidente do Fórum Económico Mundial, "precisamos de renovar todos os aspectos da nossa sociedade, desde a educação aos contratos sociais e condições de trabalho"; isto é, "precisamos de um grande reinício do capitalismo"»
Recorda-se que, na mesma altura em que o fórum de Davos anunciou o seu «Great Reset», o FMI publicou um relatório intitulado «Da grande quarentena à grande transformação». Transformar, reiniciar, restaurar: da Fundação Rockefeller ao Fórum Económico Mundial e FMI, a orquestra neoliberal está perfeitamente afinada.
O que é o «Great Reset»? Segundo os promotores, uma resposta à pandemia de Covid-19 como «uma rara e estreita janela de oportunidade para reflectir, reimaginar e redefinir o nosso mundo de modo a criar um futuro mais saudável, mais justo, mais próspero». Ou, como explica o magnata alemão Klaus Schwab, presidente do Fórum Económico Mundial, «precisamos de renovar todos os aspectos da nossa sociedade, desde a educação aos contratos sociais e condições de trabalho»; isto é, «precisamos de um grande reinício do capitalismo».
Resta rematar que, na perspectiva da próxima reunião de Davos, a «Rede de Inteligência Estratégica» do Fórum Económico Mundial produziu uma Plataforma de Acção defendendo «um governo global para resposta à pandemia (…) moldando o futuro no século XXI desde os media às vacinas».
Governo global, isto é, uma entidade tecnocrática, sem rosto e à qual caberá, para gáudio dos fundamentalistas neoliberais, gerir o fascismo económico planetário sem os entraves da democracia à medida que os Estados nacionais se vão dissolvendo no tropel da submissão da política aos poderes financeiros e económicos transnacionais.
Futurologia? Não mais do que o cenário gerado pela pandemia de uma «virulenta estirpe de gripe» idealizado em 2010 pela Fundação Rockefeller.
De governo global já falava, há mais de 20 anos, o estratego Henry Kissinger, criminoso de guerra, um dos gurus da Fundação Rockefeller e do globalismo: quando colocadas perante o desconhecido, disse, «as pessoas renunciam de bom grado aos seus direitos individuais, trocando-os pela garantia do seu bem-estar assegurado pelo governo mundial».
Ou, como apregoa o presidente do Fórum Económico Mundial e pode ler-se como consigna no website desta entidade: «Bem-vindo a 2030! Não tem nada de seu, não tem privacidade mas a sua vida nunca foi melhor». Isto no reino comandado pela «Quarta Revolução Industrial», pela robotização e guiado pela inteligência artificial.
«De governo global já falava, há mais de 20 anos, o estratego Henry Kissinger, criminoso de guerra, um dos gurus da Fundação Rockefeller e do globalismo: quando colocadas perante o desconhecido, disse, "as pessoas renunciam de bom grado aos seus direitos individuais, trocando-os pela garantia do seu bem-estar assegurado pelo governo mundial"»
Continuamos na senda das elucubrações em torno do futuro, mas existe inegavelmente um fio condutor estratégico que pretende afastar-nos da situação em que vivíamos nos tempos pré-Covid em direcção ao tal «novo normal» no qual as excepções de antes se transformam em regras de agora. Como se lê a propósito da próxima reunião de Davos, a pandemia «é uma oportunidade para mudar a forma como comemos, crescemos, construímos e alimentamos as nossas vidas de modo a alcançar uma economia neutra em carbono, positiva para a natureza». O discurso não é de amanhã, como facilmente se identifica, mas de hoje – em torno, por exemplo, do capitalismo «verde», da «sustentabilidade» e de outras mais muletas propagandísticas do globalismo neoliberal. A propaganda está montada em função das teorias sobre o futuro criadas pelos fundamentalistas neoliberais de hoje. E que sabem, como ninguém, tirar o máximo proveito do vírus cujo aparecimento vaticinavam. Treinaram-se a contar com isso.
Para a generalidade das pessoas, a pandemia de Covid-19 é uma ameaça, um martírio, uma fonte de legítima e justificada insegurança; para os que a gerem, mexendo cordelinhos transnacionais ao alcance dos que sonham com o «governo global», a Covid-19 é o pretexto, a tal «janela de oportunidade» que vem mesmo a propósito para reforçar o fascismo neoliberal. Depois de tantas vezes previsto e encenado ao longo dos últimos anos, o vírus surgiu mesmo. Melhor só de encomenda.
Nos seus cenários o neoliberalismo estipula que o autoritarismo continuará e intensificar-se-á mesmo depois da pandemia. Cabe-nos combatê-lo democraticamente, desde logo em plena pandemia. Como muito bem provam os tempos em que vivemos, o neoliberalismo globalizante tem horror à democracia.
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