|Manuel Gouveia

O muro ou a liberalização do Sado

Um dia, com a legitimidade que só o povo tem, com a força que só a luta lhe dá, o muro será derrubado e a praia voltará a ser de todos, voltará a ser democrática e livre.

Créditos / NiT

Antes de mais, e para evitar desgostos a algum leitor mais distraído, o Sado do título refere-se ao Rio Sado, que desagua em Setúbal. Há um tratado para ser escrito sobre o sadismo, particularmente na sua forma mais frequente, a do eleitor que se lamenta dia após dia da sua vida, num longo queixume que só interrompe, de cada vez que há eleições, para mais umas vergastadas bem dadas, oferecendo o seu voto aos representantes dos que o exploram e oprimem. Mas este texto, repito, é sobre o Rio Sado, onde a concessionária de Tróia construiu um muro na forma de barco.

Em teoria, um barco serve para transportar pessoas. No Sado não serve. Tudo graças ao maravilhoso mercado e à liberalização do transporte fluvial sobre o Sado. Vou tentar explicar.

A exploração do serviço fluvial sobre o Sado está entregue à mesma empresa que explora o Complexo de Tróia, depois de ter recebido a Torralta numa espécie de doação contra-revolucionária. O projecto da Sonae para Tróia é para o luxo, não quer as suas praias cheias daquela malta pobre e mal vestida que nem sabe jogar padel. E não quer porque há uma camada de «gente» que está disposta a pagar mais caro por um serviço «poors free».

Os seus amigos no governo (a oferta da Torralta foi com os governos de Cavaco Silva e de António Guterres, a oferta da concessão com Durão Barroso/José Sócrates) colocam o serviço público da travessia do Sado em concurso público para ser concessionado, e depois foi só ganhar a concessão, colocar os barcos com preços impossíveis e voilá: um verdadeiro muro contra pobres, remediados e malta de rendimentos médios.

Para dar uma ideia do efeito «muro», comparemos os números de travessias em 1976 e em 2023. Para concluir que, só no mês de Agosto de 1976, houve mais gente a cruzar o Sado para Tróia que durante todo o ano de 2023! É esta a dimensão da expropriação privada do espaço público feita com o muro em forma de barco!

A forma como se ergue o muro é através do preço. São 9,30 euros ou 11 euros para um passageiro comprar uma ida e volta, 42 euros para uma ida e volta com a viatura ligeira, pagando ainda 11 euros por cada passageiro, além do condutor. O que faz com que de Setúbal fique mais barato ir de táxi a Sesimbra do que atravessar o Rio Sado em «transportes públicos» até Troia. E o transporte de bicicletas não é gratuito. Para quem tem que ir trabalhar em Tróia são 99,30 euros de passe mensal, que absorve cerca de 15% dos salários de muitos trabalhadores. Um muro que se salta com custo e só por obrigação.

Se olharmos para o vizinho Tejo, numa travessia similar em distância percorrida (Belém-Trafaria), os preços são muito menores (2,38 euros uma ida e volta, 11,30 euros uma ida e volta com o carro e condutor incluído). Não é barato, mas não é o Muro de Tróia. E aqui vale o passe intermodal metropolitano de 40 euros, que na ligação a Tróia não vale. Mas claro, o serviço público da travessia fluvial do Tejo ainda não está privatizado.

E tudo isto é legal, no sentido em que a lei é escrupulosamente cumprida, apesar da total ausência de escrúpulos demonstrada por quem assim age. Mas nada disto é «legal», como diriam os brasileiros. Pois tudo isto é uma perversão completa, só possível num sistema onde a democracia apodreceu, o grande capital põe e dispõe, e os barcos passam a ser muros, e há praias para uns e praias para outros, e os outros que não se queixem muito.

Recentemente, a própria AMT (Autoridade de Mobilidade e Transportes) foi obrigada a fingir algum desagrado com a situação e fazer recomendações para a revisão do contrato de concessão e a sua colocação a concurso público (a concessão termina em 2027 nas contas da AMT). Mas recusa-se a perceber que nenhum concurso público poderá vencer a disponibilidade da Sonae de pagar – se necessário – para erguer aquele muro na entrada de Tróia, e que os mecanismos de mercado são completamente desajustados para travar este tipo de consequências.

«Mas nada disto é "legal", como diriam os brasileiros. Pois tudo isto é uma perversão completa, só possível num sistema onde a democracia apodreceu, o grande capital põe e dispõe, e os barcos passam a ser muros, e há praias para uns e praias para outros, e os outros que não se queixem muito.»

E as suas recomendações – inseridas na lógica neoliberal – vão sempre no sentido de transferir para a concessionária mais e mais recursos públicos para a comprar: aderir ao passe metropolitano com «o pagamento de indemnizações compensatórias à concessionária»; criar um «subsídio social à mobilidade… a atribuir ao utilizador residente ou trabalhador na península de Tróia, com o objectivo de compensar o utilizador pelo valor pago pelo título de transporte mensal»; realizar novo concurso que o mercado tudo resolve.

Este ignorar propositado da realidade, disfarçado em dezenas de páginas de relatórios, é a forma perfeita da AMT e de o conjunto das autoridades portuguesas colaborarem com a expropriação de Tróia ao povo de Setúbal. Este serviço nunca deveria ter sido concessionado, deve ser renacionalizado, integrado no passe social intermodal metropolitano e ver os seus preços significativamente reduzidos. E os subsídios que a AMT quer dar ao Muro da Sonae, que sejam destinados a apoiar a empresa pública.     

Um dia, com a legitimidade que só o povo tem, com a força que só a luta lhe dá, o muro será derrubado e a praia voltará a ser de todos, voltará a ser democrática e livre.

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