|Regionalização

20 anos depois do referendo, o País está mais centralizado e desigual

A 8 de Novembro de 1998 referendou-se um imperativo constitucional e um instrumento fundamental para a coesão e o desenvolvimento nacional. Vinte anos depois, o País é um dos mais centralistas da Europa.

Créditos / Volta ao Mundo

Apesar de inscrita na Constituição da República, desde 1976, a criação de regiões administrativas passou a estar sujeita a referendo na revisão constitucional de 1997, protagonizada por Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PSD, e por António Guterres (PS), primeiro-ministro da altura, envolvendo também o CDS-PP de Paulo Portas.

A tomada de posição do PSD sobre a regionalização é sinónimo do que vulgarmente se designa por pirueta política. Em 1991, com Cavaco Silva, votou favoravelmente a Lei Quadro das Regiões, e depois, em 1996, o novo líder Marcelo Rebelo de Sousa defendeu a regionalização como indispensável. A distância entre estas palavras e a acção política do PSD é abissal, como veremos adiante.

No dia 8 de Novembro de 1998, os portugueses foram chamados a pronunciar-se sobre a Lei da Criação das Regiões, que propunha a instituição de oito regiões administrativas através de duas perguntas: Concorda com a instituição em concreto das regiões administrativas?; Concorda com a instituição em concreto da região administrativa da sua área de recenseamento eleitoral?

A perversidade da solução aprovada pelos três partidos para guardar a regionalização na gaveta obrigava a que houvesse uma resposta positiva à primeira questão para que o «sim» à segunda contasse. Em caso de resposta afirmativa, lê-se no artigo 251.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo, «só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento».

Segundo denunciou na altura o PCP, «ao impor essa regra dos 50%, estava a criar uma diferente eficácia vinculativa para o "não" e para o "sim", uma vez que o "não" produz sempre efeitos vinculativos, por mais baixa que seja a participação no referendo». 

Além de que difere do artigo 256.º da Constituição da República, que apenas refere a «maioria dos cidadãos eleitores», motivo pelo qual os comunistas reclamaram do Presidente da República que sujeitasse a Lei Orgânica do Regime do Referendo à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional. Jorge Sampaio optou, no entanto, por promulgar a lei de imediato. Com a revisão constitucional de 1997, a regionalização tornou-se a única matéria constitucional sujeita a referendo.

Mitos e desinformação

A criação das regiões permitiria conferir legitimidade e representatividade democrática ao poder regional, através da eleição directa pelos cidadãos, como acontece em todos os níveis de poder, substituindo por exemplo as comissões de coordenação regional, que gerem um largo conjunto de competências e de verbas, tanto do Orçamento do Estado como de fundos comunitários, mas cujos responsáveis não são legitimados pelo voto popular.

Assente em desinformação, mitos e ideias opostas aos benefícios que a regionalização permitiria alcançar, a campanha protagonizada pelo CDS-PP e pelo PSD contribuiu para uma abstenção de 51,71%.

Entre outras imagens e mensagens menos rigorosas, recorde-se o cartaz dos centristas com o mapa de Portugal a ser perfurado com chave de fendas, invertendo assim a mensagem inerente à instituição das regiões administrativas: dividir para unir, reduzindo assimetrias.

A par de outros alarmismos, os defensores do «não» alegavam que a regionalização seria um veículo para os caciquismos locais e para aumentar o número de funcionários públicos (os vulgares «tachos», na linguagem popular), bem como para diminuir a autonomia dos municípios, mais uma vez ignorando o articulado da Constituição, onde se estabelece que uma das principais atribuições das regiões deve ser apoiar os municípios «sem limitação dos respectivos poderes».

A desinformação chegava mesmo ao ponto de justificar a recusa com a dimensão do País, omitindo o facto de países de igual tamanho, ou inferior, estarem regionalizados, como são os casos da Dinamarca ou da Bélgica. E também com o aumento da burocracia, esquecendo que ela se complica precisamente com a ausência de entidades de coordenação no plano regional, obrigando serviços locais da administração central a reportar-se a ministérios ou outras entidades.

Alguém ganha com o centralismo?

No referendo de 1998, apenas os distritos de Setúbal, Beja e Évora disseram «sim» às regiões administrativas. Mas não seriam apenas estes, nem somente os distritos do Interior, a beneficiar da regionalização.

Sendo verdade que Portugal evolui a velocidades muito diferentes, a economia da capital não vive isolada das restantes regiões, pelo que, um país mal gerido irá certamente confluir numa Lisboa mais saturada.

Uma análise do Eurostat sobre a evolução do PIB per capita em relação à média da União Europeia (UE), no período entre 2000 e 2010, revela a curiosidade de, as duas nacionais que convergiram com a média da UE terem sido as regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Indo ao encontro da ideia referida atrás, a Área Metropolitana de Lisboa está entre as regiões que mais divergiram.

Mas se a análise se cingir à situação verificada hoje, observam-se desigualdades gritantes, com Lisboa a ter um rendimento per capita comparável com o dos países mais ricos da UE, e as regiões do Norte e Centro mais próximas de países do Leste da Europa, como a Letónia.

Para Lisboa há, no entanto, um reverso da medalha. A centralização conflitua com a qualidade de vida em aspectos como a especulação imobiliária ou a circulação dentro da cidade, e outros elementos característicos do que usualmente se denomina por deseconomia, ou seja, a falta de eficiência na utilização dos recursos produtivos.

Já no que diz respeito ao Interior, o desinvestimento público e privado conduziu à desertificação, ao desperdício de condições endógenas essenciais para o desenvolvimento nacional – com défices crescentes na balança alimentar, entre outras – cujas consequências foram bem evidenciadas nos fogos que devastaram o nosso país, no ano passado.

Regionalização vs. descentralização

Do quadro de tropelias proferidas ao poder local democrático por parte do PSD e do PS, com o apoio do CDS-PP, conta-se mais recentemente a extinção de freguesias, à revelia dos interesses das populações e dos órgãos autárquicos, e o pacto estabelecido, este ano, no quadro da desconcentração de competências da administração central para as autarquias locais, assente na descentralização da despesa e não da receita.

Isto apesar de, em Janeiro de 2015, tanto António Costa como Rui Rio terem elogiado os benefícios da regionalização, designadamente ao nível da poupança para o Estado. «Um euro gasto pela Administração Local vale três euros da Administração Central», referiu então António Costa. 

Já Rui Rio, que admitiu ter votado «não» no referendo de 1998, reconheceu que «o que achava ser possível sem regionalização, não só não se fez como se agravou».

Apesar de a instituição das regiões administrativas ser o motor da descentralização, o Governo do PS insiste em começar pela transferência de encargos para as autarquias locais, colocando em risco competências que actualmente executam, em nome da «descentralização» que diz adoptar como uma das principais «missões» da legislatura.

Esquecem-se as vantagens da regionalização, em especial como elemento complementar de apoio aos municípios e à sua luta pelo desenvolvimento, mas também como promotor de uma democracia participativa, que contribua para a reforma democrática da Administração Pública e para a autonomia municipal.  

Mantendo-se Portugal nos primeiros lugares do ranking dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com menor despesa pública realizada a nível local ou regional, percebe-se que ainda estamos longe desse caminho auspicioso que a regionalização aporta. Vinte anos volvidos, talvez fosse bom voltar a «escutar» a população. 

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