O Governo propôs e a Assembleia da República (AR) deliberou no sentido de conceder autorização legislativa para o Executivo poder decretar o combate institucional à difusão de conteúdos terroristas online (CTL). A esta iniciativa governamental não terá sido alheia a ameaça da própria Comissão Europeia, feita ao Governo, pelo atraso na implementação do seu Regulamento datado de 7 de junho de 2022 - ameaça a consubstanciar numa denúncia ao Tribunal de Justiça da UE.
Diga-se de passagem que, tivesse a proposta governamental sido atempadamente feita, neutralizadas poderiam ter sido muitas das manifestações ocorridas no país, convocadas online ou através de redes sociais, por organizações e agrupamentos, algumas destas sob anonimato, ou pelo designativo de «zero», fazendo o apanágio de racismo, xenofobia, sob o disfarce de nacionalismos e patriotismos serôdios ou, com base nesses mesmos chavões, estabelecer conclusões fictícias como as de relacionar a imigração à criminalidade.
Sem dúvida que o combate a mensagens de alcance terrorista online merecem um combate sério. É sabido que o terrorismo e os demais procedimentos ao mesmo associados, como é o caso de publicações online, tem basicamente um conteúdo sociopolítico. Por isso, qualquer proibição que venha a ser exercida neste domínio estará sempre dependente da conjuntura política, com efeitos meramente circunstanciais e de oportunidade, próprios do fenómeno. É o mesmo que dizer que os resultados daí decorrentes serão marcadamente aleatórios ou de mera oportunidade. Porém, a gravidade que esta problemática apresenta exige mais e maior fixidez e que inspire confiança. Um tal objetivo só é alcançável quando a atitude de oportunidade é sustentada por uma decisão que esteja eivada de transparência – alcançável quando subjacentemente haja uma decisão com força jurídica, a única capaz de assegurar um tónus vinculativo de caráter permanente.
«Ora, salvo melhor opinião, a proposta do Executivo apresenta incompatibilidade com o que se acha estabelecido na Constituição da República, atenta contra o que se acha estabelecido na lei processual criminal e enferma de uma contradição com a boa prática jurídica.»
Aqui chegados, e assumido o propósito do Regulamento da Comissão da União Europeia, cumpre analisar os termos da proposta governamental no quadro do regime democrático e constitucional que caracteriza o nosso país. A proposta enquadra a Polícia Judiciária (PJ) como a «entidade responsável para efeitos de emissão de decisões de supressão ou de bloqueio…» da atividade terrorista online enquanto medida meramente «administrativa», ou seja, sem qualquer controlo judiciário, ficando a decisão policial apenas sujeita a um recurso no foro criminal com efeito meramente devolutivo. Ora bem. Aquando da discussão da proposta governamental, um requerimento do PS no sentido de a decisão da PJ ficar sujeita à confirmação judicial no prazo de 48 horas não obteve vencimento por votos de PSD, Chega, CDS e do deputado não inscrito.
Ora, salvo melhor opinião, a proposta do Executivo apresenta incompatibilidade com o que se acha estabelecido na Constituição da República, atenta contra o que se acha estabelecido na lei processual criminal e enferma de uma contradição com a boa prática jurídica. Assim: a) Entendido o envolvimento da PJ como um «ato administrativo», e havendo recurso, este só seria viável para um tribunal administrativo e não criminal, como vem previsto na proposta; b) Por outro lado, e sem obviamente pôr em causa, a capacitação da PJ, como órgão superior de investigação criminal, coadjuvante direto da autoridade judiciária, o Código do Processo Penal estipula em várias das suas disposições (arts. 179.º, 249.º,263.º entre outros) que se tratando de correspondência, do seu controlo ou apreensão bem como de outros meios de comunicação, esses atos pressupõem a autorização judicial, naturalmente por envolver aspetos relacionados com direitos, liberdades e garantias, sem que para tanto se tenha que fazer a distinção entre o que é de natureza terrorista ou não-terrorista. Trata-se de princípios e valores perenes e imperantes numa democracia, pelo menos como a nossa. Nestes termos, com vista a dar maior consistência à intervenção da PJ e mesmo assegurar a defesa da intervenção policial num eventual recurso perante o tribunal criminal, a entidade responsável para a supressão ou bloqueio das emissões online deveria ser o Ministério Público. c) O n.º 8 do artigo 32.º da Constituição é taxativo nesta matéria, ao determinar que «São nulas todas provas obtidas mediante… abusiva intromissão na... correspondência ou nas telecomunicações». E é neste domínio que caberia ao Ministério Público assegurar o imediatismo ou a urgência da intervenção policial, ficando a seu cargo suscitar a intervenção do juiz de instrução, no prazo de 48 horas, para a legalização do procedimento. No fundo, estar-se-ia assim a salvaguardar e respeitar o procedimento ditado pela lei adjetiva criminal e salvaguardar o núcleo essencial da Constituição da República.
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