1- A «morte antecipada» e dita «assistida» não é assistencial e acarreta riscos sociais e pessoais
Contrariamente ao que vem sendo argumentado para a defesa da antecipação da morte por eutanásia ou suicídio assistido, no fim da vida os problemas assistenciais colocam-se no plano médico terapêutico, no plano de reabilitação, nos cuidados de enfermagem e no apoio psicológico, no plano humano dos afetos e apoios, familiares e outros, nos cuidados mais especificamente paliativos. Este contexto não deve ser ignorado como conjunto de circunstâncias complexas que condicionam o querer e a autonomia da pessoa.
O «sofrimento insuportável» que é a justificação para a opção pela morte a pedido dos projetos de lei apresentados na Assembleia da República, pode ser significativamente atenuado por procedimentos adequados que os progressos da medicina facultam. Por outro, a mente também está em geral afetada, fragilizada pela grave doença orgânica, tanto reativamente, como diretamente por afeção neuropsiquiátrica.
Toda a visão eutanasiófila abstrai destas realidades concretas da pessoa para sobrevalorizar o sujeito jurídico portador de um direito mitificado a ser morto com o beneplácito de uma lei da Republica.
O caminho certo na avaliação de alguém em grande sofrimento não é abrir uma via verde para o chamado «suicídio lúcido», mas confortar e melhorar ainda se possível as circunstâncias da vida, sem excessos terapêuticos, com a moderação e a adequação da arte da medicina, com cuidados humanizados e solidários, respeitando a pessoa.
As insuficiências do nosso país resultam, neste âmbito dos cuidados no fim de vida, fundamentalmente da falta de recursos em cuidados paliativos, tanto institucionais como domiciliares, nas falhas de apoio social e médico para idosos e doentes, particularmente para os cidadãos mais desprotegidos, empobrecidos e isolados. Aí está o cerne da questão.
Não é uma questão ideológica subsumida em mais um direito para catálogo, é a necessidade real do indispensável progresso na assistência concreta de pessoas no fim da vida, com doenças graves, em sofrimento físico e psíquico. O desespero e a desesperança que leva ao suicídio, prenúncio de um pedido para «ser morto» é quase sempre sintoma de falhas assistenciais.
A «via verde» para a eutanásia é um curto-circuito sem o diagnóstico adequado da situação da pessoa. Cuidados paliativos eficientes, acessíveis igualmente para todos os que deles carecem, serão sempre uma prevenção dos pedidos de morte por injeção letal ou por fornecimento de um veneno para ser autoadministrado por via oral.
2- Soluções necessárias para o fim da vida e as leis
A questão de base é que a introdução de uma lei de eutanásia num país em que o processo não corresponde a uma necessidade palpável da sociedade, resulta em grande medida de um artefacto mediático de uma causa fraturante, de fundamento doutrinário, partidarizada e sobrepolitizada por via parlamentar. É fruto de uma cópia de modelos com outro historial, não isento de incidentes muito preocupantes, como o da Bélgica e da Holanda.
Os defensores da eutanásia, na sua argumentação, parecem querer completar «o direito à vida» com «o direito a morrer», mas nada consta na Constituição sobre esse segundo «direito», contrário ao primeiro. Que seria de uma Constituição que se contradissesse de modo tão flagrante? E como é que uma lei geral pode contrariar a Constituição, ditando não o direito a morrer, que seria um absurdo, mas «o direito a ser morto», segundo uma lei da República?
Como aditamento para a causa do procedimento da morte por encomenda é feita a analogia com a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Subtrai-se o que é óbvio, que a IVG, dentro dos limites da lei, baseia-se no direito à autonomia e autodeterminação da mulher, no âmbito do artigo 1.º da Constituição e do artigo 26.º («desenvolvimento da personalidade»), e preenche evidentes necessidades de proteção da vida e da saúde da mulher de modo igualitário, contra práticas abortivas clandestinas gravemente lesivas da integridade da vida e da pessoa (artigo 25.º da Constituição).
A terminologia suave utilizada pelos promotores da eutanásia, «morte assistida» ou «morte antecipada», visa dissimular a verdade para o grande público, a verdade nua e crua. O que se pretende descriminalizar é o homicídio a pedido da vítima (proibido pelo artigo 134.º do Código Penal) e o incitamento e ajuda ao suicídio (proibido pelo artigo 135.º do Código Penal), isto é, a morte executada a pedido.
Como nunca foram julgados casos de infração destes artigos, a despenalização seria uma verdadeira inauguração do procedimento por via legal, e «assistida», por um serviço oficioso. O serviço, nos quatro projetos de lei anunciados, tem por fim averiguar se quem quer ser eutanasiado ou suicidado está capaz em termos de direito civil para ser executado.
«Mas se de todo o sofrimento for extremo, sem possível recuperação, há procedimentos terapêuticos da medicina que atenuam as dores e modificam o estado de consciência, sem necessidade do exercício cru da morte patrocinada intencionalmente.»
A assistência na morte, melhor, no morrer, segundo as leis da medicina e da prestação adequada de cuidados de saúde, incluindo os paliativos (Lei de Cuidados Paliativos, Lei de Testamento Vital), minorando o sofrimento, sem prolongar obstinadamente a vida, quando a morte natural deve acontecer, é, de verdade, uma «morte assistida». A execução intencional da morte a pedido é a execução da morte de um doente que se quer suicidar. É o patrocínio do suicídio como ajuda ou como execução direta.
A causa da eutanásia, encarniçadamente defendida, não tem certamente um fundamento religioso como se sabe, mas não deixa de ser expressão de uma ideologia radicalista, centrada num autonomismo individualista e numa mitificação da morte suicidária supraconsciente, como solução final. E, por sinal, a canonizar pelo Estado e pela Lei.
Não é pois de estranhar que os apologistas mais esforçados desta solução para o fim da vida, por vezes mesmo antes, falem sempre no seu gosto próprio, de como gostariam que seja a «sua» morte, o Ego está sempre implicado. E nada nos garante que essa presunção antecipada vá ser a opção real no futuro do próprio…
Há que proceder na prestação de cuidados, tendo em conta o todo da pessoa e as condições externas, materiais, psicológicas, cognitivas e afetivas, microssociais, sociais e espirituais (socioculturais).
O pedido de antecipação da morte não deve ser interpretado à letra. Pode ser um gesto apelativo, um pedido de atenção, a manifestação de uma carência, a expressão de um tratamento insuficiente da dor ou de um sofrido isolamento. E quantas vezes, justamente, o primeiro indício direto de um estado de abaixamento anímico de uma depressão, que não se reconhece facilmente.
Mas se de todo o sofrimento for extremo, sem possível recuperação, há procedimentos terapêuticos da medicina que atenuam as dores e modificam o estado de consciência, sem necessidade do exercício cru da morte patrocinada intencionalmente.
3- Porque é que esta matéria levanta sérios problemas éticos e deontológicos?
O facto de surgir uma possibilidade de um procedimento legal que leve o doente diretamente à morte projetada, isto é, à concretização do suicídio, com a aura de uma lei, e uma promoção de um «serviço medicamente assistido», sugestiona e incita a procura do «serviço», em situação de desespero e de grande fragilidade pessoal, como será o caso para a maioria dos candidatos. O quadro relacional e dialogal da vida da pessoa é subestimado, tanto ao nível familiar como institucional.
Nesse contexto a atitude do médico não é assistir o doente, é verificar se preenche os quesitos da lei que permitem executar a morte. Mais ainda, os médicos integrados serão sempre escolhidos por serem partidários da eutanásia, mesmo que tenham de opor-se frontalmente ao Código Deontológico da Medicina (Regulamento n.º707/2016 da Ordem dos Médicos, art.º 65, que proíbe o suicídio assistido e a eutanásia) e aos ditames da Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial (2017), que estabelece como cláusula o «máximo respeito pela vida humana».
Aliás, não há ditame internacional, desde a convenção dos Direitos do Homem até às Recomendações da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (1999), que não estabeleça como princípio inviolável a interdição da morte intencional.
No procedimento da eutanásia, por muitos «filtros» que se interponham, sabe-se que são meros expedientes para confirmar o que desde início é o pressuposto e a finalidade do processo. O fim está no princípio, a morte a ser executada. A introdução de uma comissão alargada e multidisciplinar para certificar o exitus, antes ou após, é ditada por um esforço de credibilizar honorificamente um processo mortífero.
A impossibilidade em evitar abusos em questão de morte, a possível influência sobre a vontade da pessoa do doente, tanto diretamente como atmosfericamente, o alargamento das indicações pela «normalização», tolerância e banalização, como vem acontecendo nos países «pioneiros» do Benelux, ferem o princípio da precaução, que se baseia no evitar escolhas que envolvam opções de maiores riscos para eventuais e duvidosos benefícios. Estes factos são fundamento de rejeições sucessivas de projetos de lei na quase totalidade dos países do mundo, exceto meia dúzia.
Embora não tenha sido objeto de referências na comunicação social, cumpre aqui prestar uma informação relevante. No artigo 139.º do Código Penal, «Propaganda do Suicídio», estabelece-se que, «Quem por qualquer modo, fizer propaganda ou publicidade de produto, objeto ou método preconizado, como meio para produzir a morte, de forma adequada a provocar o suicídio, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»
«O bom senso clínico e a medicina, enquanto ciência, técnica e arte da relação humana com o paciente, tem hoje soluções para o fim da vida, aceitando a morte natural como é seu dever, sem enveredar pelo prolongar tratamentos inúteis e dolorosos.»
Será que o Estado ignora esta regra de sanidade mental? Terá de ser aditada uma nova alínea de exceção, como nos artigos do código penal de incitamento e ajuda ao suicídio (art.º -135º) e de homicídio a pedido (art.º 134º)?
Presentemente a medicina tem recursos eficazes para tratar a dor e atenuar o sofrimento, para suavizar a morte. É valorizada e reconhecida legalmente a autonomia e a vontade do doente, no consentimento informado, no direito de suspender terapêuticas ou de não as iniciar e nas diretivas antecipadas de vontade. O bom senso clínico e a medicina, enquanto ciência, técnica e arte da relação humana com o paciente, tem hoje soluções para o fim da vida, aceitando a morte natural como é seu dever, sem enveredar pelo prolongar tratamentos inúteis e dolorosos.
A problemática da eutanásia tem o seu historial, com várias etapas (Assisted Suicide, Kelvin Yuill, Palgrave Macmillan, 2013, The origins of the right to die movement, p. 60-82). A versão agora mais defendida gerou-se no fim dos anos 60 do século passado, quando algumas associações pró-eutanásia eugénica (Voluntary Euthanasia Society do Reino Unido-1935 e Euthanasia Society of America-1938), com preocupações económicas e sociais, se reconverteram num associativismo vocacionado para o «direito individual à morte», ou a «morte assistida».
Na atual época histórica, o destaque desproporcionado desta causa não resulta, no essencial, da necessidade emergente de pessoas em sofrimento, mas de uma moda que instrumentaliza o direito de uma forma radicalizada, de uma ideologia individualista e não assistencialista. O vanguardismo autoproclamado é uma promoção propagandística, servida por uma flagrante amnésia histórica de antecedentes seculares.
Num ambiente em que se divisa já, de novo, a preocupação com a demografia, o envelhecimento da população e os gastos excessivos com a doença, em face da propalada restrição dos fundos da Segurança Social e dos défices financeiros, não se deve subestimar o renovar das finalidades eugénicas e o eventual aproveitamento economicista destas medidas.
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