|Dia Mundial da Criança

Famílias e crianças em Portugal. Que direitos?

Como vivem e são tratadas as poucas famílias com crianças que habitam em Portugal? Podemos falar da situação das crianças sem falar da situação da nova geração de pais?

Créditos / Jornal Online O Minho

O nosso país é, de acordo com um recente Relatório das Nações Unidas, um dos seis países mais envelhecidos do mundo, o quarto da Europa a envelhecer mais depressa, à frente da Grécia e Itália. 

De acordo com o mesmo Relatório, em Portugal, quase metade da população terá em 2050 mais de 60 anos. Nos próximos 35 anos, a população portuguesa mais envelhecida representará cerca de 40% do total de habitante, um número que fica acima da média europeia, que conta já com uma tendência geral para o envelhecimento populacional (34% da população europeia terá, em média, idade superior a 60 anos).

Num país com poucas crianças, um dos debates que importa fazer, entre outros naturalmente, é como vivem hoje as novas famílias.

De acordo com os últimos Censos (2011), existem 1 572 329 crianças até aos 14 anos, um número reduzido, conforme o que tem sido dito, para uma população de 10 562 178 de habitantes. 

Como vivem e são tratadas as poucas famílias com crianças que habitam em Portugal? Podemos falar da situação das crianças sem falar da situação da nova geração de pais?

A nova geração de pais são os jovens adultos que beneficiaram da Escola Pública, do Serviço Nacional de Saúde; são a geração do Desporto Escolar e do acesso em massa aos meios informáticos e digitais, e à Internet com todos as suas potencialidades. 

É a primeira geração liberta do trabalho infantil, que foi dura realidade até meados dos anos 90, sendo, por outro lado, «ainda do tempo» dos trabalhadores-estudantes, das férias grandes e fins de semana a trabalhar para pagar o Ensino Secundário e Superior. 

É a geração também que, em muitas famílias portuguesas foi a primeira com acesso ao Ensino Superior, mas é aquela que faz parte da ainda reduzida percentagem de licenciados existente em Portugal em comparação com outros países europeus (18,1% de acordo com dados do INE, face a percentagens médias de 40% na maioria dos países europeus).

Ainda assim, são eles, mais conectados, libertos e com novos hábitos, os que continuam a batalhar para que não roubem o futuro a um país que, apesar de distante dos muitos milhares que já emigraram, para o bem e para o mal, ainda lhes pertence.

Os que são agora pais, desejaram ou adiaram sê-lo, não tiveram, ao contrário do que é dito sistematicamente, a vida facilitada.

É a geração que encheu as ruas contra a PGA [Prova Geral de Acesso] ou os Exames Nacionais, que se mostrou contra as Propinas e que experimentou na pele a elitização e os custos do Ensino Superior. É a geração que expôs a Precariedade e a tornou palavra maldita. A que disse o que os estágios intermináveis e os baixos salários fizeram da sua vida.

Hoje, os portugueses entre os 25 e os 34 anos, apesar de serem aqueles com maior nível de formação profissional e superior, são mais afectados pela precariedade e baixos salários. A sua média salarial foi a que mais baixou , dos 794 euros registados em 2008 para os atuais 757 euros, de acordo com os dados do Inquérito ao Emprego.

Foi de resto o único segmento etário cujo salário médio recuou desde o ano passado quando os outros melhoraram, mesmo que levemente (13 euros),  com a reposição de alguns dos direitos laborais.

«Os horários desregulados e a precariedade abriram caminho para cada vez menos tempo com os filhos, esse é um dos testemunhos mais presentes quando ouvimos os pais e aqueles que trabalham com as crianças.»

Com as preocupações inerentes à degradação das condições laborais e sociais, que tempo de qualidade é passado por estas famílias com a agravante dos horários laborais que existem? Como é que o seu desenvolvimento e a sua saúde são tratados? Como é ocupada a infância e quais as consequências destes fatores na sua vida diária, no futuro das crianças e, consequentemente, do país?

Quando entramos novamente nos indicadores, vemos que Portugal está em 33.º lugar entre os 41 países da OCDE no que diz respeito às desigualdades e acesso a apoio social para as crianças, de acordo com o Relatório da UNICEF de 2015. 

A degradação, e mesmo destruição de muitos dos avanços que a Revolução de Abril trouxe, tem impactos bem concretos na vida diária das crianças.  
Os horários desregulados e a precariedade abriram caminho para cada vez menos tempo com os filhos, esse é um dos testemunhos mais presentes quando ouvimos os pais e aqueles que trabalham com as crianças. 

A falta de descanso, de tempo para brincar livremente e de tempo para o lazer faz-se sentir em todas as esferas. Hoje, entrar nos edifícios escolares às primeiras horas da manhã, passando lá todo o dia, e sair já noite cerrada é a realidade que muitas crianças conhecem. A percentagem de berçários, creches e jardins  de infância abertos das 8h às 19h é superior aos que estão abertos das 9h às 17h.

É no 1.º Ciclo do Ensino Básico que se implementam, em 2006, com um Governo PS, as AEC (Áreas de Enriquecimento Curricular) hoje generalizadas nas escolas. 
Transformando-se num negócio, estas trouxeram as empresas privadas de ocupação de tempos livres na sua forma de contratação precária de licenciados a pouco mais de 300 euros. Um sugadouro de recursos públicos, que impôs mais tempo de abertura da escola, reduzindo de forma significativa as disponibilidades de atendimento às crianças.

Hoje não existem em muitas escolas funcionários disponíveis para vigiarem as crianças que não fiquem na sala depois do horário lectivo, obrigando os pais que precisam de horários prolongados a inscreverem as crianças nestas atividades.

Não existe Rede Pública de creches, e foram encerradas mais de 4000 escolas do 1.º Ciclo, contra fortes protestos das populações, sobretudo em zonas rurais e no interior do país, desvalorizando o papel da escola de proximidade, afastando-a do meio familiar e substituindo-a pelos grandes  centros escolares distantes do meio onde as crianças vivem. 

Com a distância que têm de percorrer até à escola em vastas zonas do país, com o horário das AEC, que são realizadas nas instalações escolares (grande parte das vezes dentro da mesma sala de aula) e o funcionamento de atividades de tempos livres na «componente de apoio à família», uma grande parte dos alunos do 1.º Ciclo  pode permanecer, e permanece (!), nos espaços escolares desde as 8h até às 19h, não contando com o tempo usado em transportes. 

Permanecer nos espaços escolares não significa ter acesso a pavilhões desportivos, a projectos de desporto escolar ou outros, a espaços amplos, vigiados e seguros, cobertos quando está tempo de chuva, a edifícios adaptados às necessidades das crianças... Significa, como sabemos, e é preciso dizê-lo em toda a parte, manter crianças dos 6 aos 10 anos, dentro de salas de aulas, horas e horas…

A «Escola a tempo inteiro», ou o tempo inteiro na escola, não é para as famílias que podem pagar as aulas de dança, a piscina ou a empregada doméstica que os leva simplesmente a correr nos parques e jardins. São as crianças provenientes de famílias monoparentais (que ainda têm uma prevalência de mães em relação a pais,  53 363 constituídas por pai e filho/a para 370 945 constituídas por mãe e filho/a), com menores rendimentos e piores condições laborais as mais submetidas a este tipo de horários.

São várias as vozes e os especialistas que se pronunciam sobre o tempo excessivo de escolarização de crianças e adolescentes, relacionando-o com o sedentarismo, o isolamento social dos mais jovens, a indisciplina e a aversão à escola. Carlos Neto, especialista da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa, diz-nos:

«A "Escola a tempo inteiro", ou o tempo inteiro na escola, não é para as famílias que podem pagar as aulas de dança, a piscina ou a empregada doméstica que os leva simplesmente a correr nos parques e jardins.»

«A ciência demonstra que, no ciclo da vida humana, o pico maior, onde há mais dispêndio de energia, é entre os cinco e os oito anos. Temos de ter muito respeito por isso. Não podemos confundir tudo e achar que essas energias são anormais. São naturais e por isso temos de olhar para elas como naturais e não patológicas e medicá-las. (…) É inaceitável que 220 mil crianças estejam medicadas em Portugal. (…) Na verdade, existe muito pouca harmonização do tempo de família. E é preciso perceber que as crianças não devem brincar apenas entre elas; precisam de tempo para experimentar e brincar com os pais também.» (Entrevista à revista online D’Elas, de Fevereiro de 2018 )

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, num estudo sobre hábitos e sedentarismo das crianças, quase 60% das crianças portuguesas vão para a escola de carro ou autocarro. Com o fim dos programas de Desporto Escolar, com as más condições de vida das famílias trabalhadoras, apenas 40% participa em atividades que envolvam atividade  física. 

De acordo com a Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil, em 2016,  33,3% das crianças entre os 2 e os 12 anos tinham excesso de peso, sendo que 16,8% são obesas e doentes.

No contexto actual, aqui descrito, é difícil defender que podemos ficar parados perante tal situação mas não é igualmente fácil, nem sequer possível, a resolução eficaz destes graves problemas com declarações de intenções mais ou menos pontuais. 

Neste contexto, entre outras medidas, assume particular importância o combate à Precariedade e desemprego, em articulação com a redução dos horários de trabalho para as 35 horas para todos e a revogação do Código de Trabalho com uma ampla defesa dos direitos de maternidade e paternidade, criando outro tipo de condições para o acompanhamento às crianças e adolescentes.

Esta realidade não se altera sem uma análise integrada da situação das crianças em Portugal, sem a ligação destes indicadores com as condições de vida e de trabalho das famílias trabalhadoras que, quer queiramos, quer não, são a maioria da população portuguesa e os pais das nossas crianças.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

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