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Não, senhor embaixador

O não dos portugueses à grosseria do senhor embaixador dos Estados Unidos ficou abafado numa espécie de surdina. Será que fazer respeitar a dignidade nacional é uma atitude «nacionalista»?

Encontro do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018.
Créditos / US Department of State

Uma nota prévia: o semanário Expresso escolheu o embaixador dos Estados Unidos, um genuíno porta-voz de duas figuras comprovadamente irracionais como são Donald Trump e Michael Pompeo, para abrilhantar uma edição virilmente propagandeada como «histórica». A comunicação corporativa que se autointitula «de referência» explicada assim por um dos seus expoentes à escala doméstica lusitana.

E o senhor embaixador, George E. Glass, oriundo dos grandes negócios imobiliários tal como o seu estimado presidente, não se fez rogado: leu a cartilha de recomendações de Washington para os tempos que correm, tal como os seus antecessores no cargo e os parceiros actuais espalhados pela Europa comunitária, designadamente na Alemanha – provando-se assim que a contundência da voz de comando em relação aos «aliados» não depende do peso específico internacional do país e da docilidade dos seus dirigentes.

«o senhor embaixador fez saber à casta dirigente portuguesa que ou está com a China ou está com os Estados Unidos, assim preto no branco. E se Lisboa ceder às supostas tentações orientais não cuide que Washington venha defendê-la, não haverá Pentágono ou NATO que lhe valham»

A crónica das interferências de diplomatas norte-americanos nos assuntos nacionais é pesada para os portugueses. Nunca será demais lembrar como um chefe da CIA, Frank Carlucci, moldou Portugal durante e na sequência do golpe de 25 de Novembro de 1975, amarrando o país à democracia monopolizada pelo Bloco Central e cujos nós só foram um pouco aliviados muito recentemente – não sem que o embaixador norte-americano de turno tivesse activado a sua panóplia de instrumentos de intervenção contra a solução governamental à esquerda conhecida como «geringonça».

George E. Glass fez, portanto, o que agora lhe compete aproveitando a oportunidade que lhe foi concedida, dir-se-ia que em consonância expressa com as inquietações reflectidas na mais recente reunião do grupo conspirativo de Bilderberg, todo ele debruçado sobre as práticas «malignas» da China contra as quais o diplomata norte-americano veio advertir.

Por isso o senhor embaixador fez saber à casta dirigente portuguesa que ou está com a China ou está com os Estados Unidos, assim preto no branco. E se Lisboa ceder às supostas tentações orientais não cuide que Washington venha defendê-la, não haverá Pentágono ou NATO que lhe valham. Para pisar as «linhas vermelhas» ditadas pelo senhor embaixador bastará que a temível Huawei chinesa tenha acesso ao concurso de operadores que instalarão o serviço de telecomunicações de quinta geração (5G) em Portugal.

Dir-se-á que, muito mais do que uma ingerência em assuntos portugueses, a exigência transmitida pelo agente de Donald Trump é um atropelo à sagrada lei da concorrência, esse pilar incontornável do sistema de mercado e do regime globalizante. Que importa isso se «a tecnologia 5G é vital para conservar as vantagens militares e económicas dos Estados Unidos», segundo Joseph Evans, director técnico da 5G no Departamento de Defesa norte-americano, o Pentágono?

É uma questão de guerra

O negociante imobiliário transformado em diplomata por Trump não agiu como prosaico embaixador mas como garboso general, porque os Estados Unidos já definiram a 5G como uma arma de guerra e, por isso mesmo, os aliados militares que nem sonhem em dormir com o inimigo.

Em 2 de Maio deste ano, o Pentágono anunciou a sua estratégia para as questões relacionadas com a 5G: «O Departamento de Defesa deve desenvolver e empregar novos conceitos operacionais que utilizem a omnipresente conectividade proporcionada pela 5G para aumentar a eficiência, a resiliência, a velocidade e a letalidade das nossas forças armadas».

«Letalidade», perceberam? A 5G é uma questão de guerra, de eficácia e velocidade para matar, qual «guerra comercial» ou «guerra tecnológica»…

««O Departamento de Defesa deve desenvolver e empregar novos conceitos operacionais que utilizem a omnipresente conectividade proporcionada pela 5G para aumentar a eficiência, a resiliência, a velocidade e a letalidade das nossas forças armadas». «Letalidade», perceberam? A 5G é uma questão de guerra, de eficácia e velocidade para matar, qual «guerra comercial» ou «guerra tecnológica»…»

«As tecnologias 5G», lê-se no mesmo documento, «representam capacidades estratégicas determinantes para a segurança nacional dos Estados Unidos e para as dos seus aliados» de modo a «protegê-los» dos adversários através da «interoperabilidade» das aplicações militares 5G no quadro da NATO. A guerra acima de tudo: como pode um «aliado» preocupar-se com chinesices como a livre concorrência?

Embora debatendo-se com um ignominioso atraso tecnológico em relação aos progressos alcançados pela China em domínios como a 5G ou mesmo já a sexta geração (6G), o Pentágono e o complexo militar-industrial norte-americano definiram uma estratégia de utilização da quinta geração segundo a qual o sector militar recorrerá às redes privadas, abstendo-se de ter sistema próprio. Sairá muito mais barato à área de defesa e sempre serão os contribuintes a financiar os grandes conglomerados económico-financeiros, como deve ser segundo a ortodoxia neoliberal.

A contrapartida desta opção é a militarização das estruturas privadas de 5G. Isto é, se os «aliados» militares dos Estados Unidos querem continuar – será que têm escolha? - a «beneficiar» da «segurança» proporcionada por Washington e pela NATO, não poderão utilizar serviços tecnológicos desta relevância prestados pelo «inimigo». Singelamente, esta foi a mensagem do senhor embaixador: nem os Estados Unidos nem a NATO tolerarão que os membros da aliança tenham operadores de 5G que não sejam «de confiança». Muito menos chineses, os novos grandes inimigos que têm sido apontados pelo atlantismo, regido por alguém tão recomendável como Donald Trump.

Obrigação canónica

Em Lisboa, o chefe de Estado e o ministro dos Negócios Estrangeiros responderam ao embaixador norte-americano cumprindo burocraticamente e sem entusiasmo a obrigação canónica de afirmar que Portugal decide sobre os assuntos dos portugueses.

O que toda a gente sabe não ser verdade, nem sequer à escala europeia, muito menos sob a tutela imperial atlantista.

O ministro Santos Silva, aliás, apressou-se a colocar o assunto entre os temas passados à história e de que não se fala mais.

«Em Lisboa, o chefe de Estado e o ministro dos Negócios Estrangeiros responderam ao embaixador norte-americano cumprindo burocraticamente e sem entusiasmo a obrigação canónica de afirmar que Portugal decide sobre os assuntos dos portugueses. O que toda a gente sabe não ser verdade, nem sequer à escala europeia, muito menos sob a tutela imperial atlantista»

Nada mais poderia esperar-se de uma elite governante que continua atrelada à novela terrorista de Juan Guaidó na Venezuela, ao golpe fascista na Bolívia – pelo menos por omissão – às guerras sem fim dos Estados Unidos através da presença de militares portugueses no Afeganistão, no Iraque, no Kosovo, na Bósnia-Herzegovina, na África Central, cumprindo assim a divisão das tarefas agressivas estabelecidas por Washington, directamente ou através da NATO.

E está ainda muito fresco na memória o cavalheiresco acolhimento oficial a dois perigosos e desqualificados foras-de-lei, Netanyahu e Pompeo, que se encontraram em Lisboa para alargar as condições e a frente de guerra contra o Irão, como salta cada vez mais à vista.

Tropas portuguesas engrossam o caudal de ameaças e intimidações montadas através da Europa de Leste no quadro do cerco à Rússia. Agora que amadurece o cerco à China com a concentração de meios de guerra norte-americanos no Mar da China Meridional e as promessas de extensão da NATO para o Oriente, o comportamento das autoridades portuguesas está à prova.

Mais do que as palavras ditas a propósito da entrevista do embaixador norte-americano – proferidas e logo esquecidas – há que estar atentos aos factos que vão seguir-se ao compasso das estratégias e das imposições de Washington. O simples comportamento da parte portuguesa em relação à Huawei no processo de instalação da 5G em Portugal dirá o suficiente sobre a sinceridade dos comentários proferidos oficialmente perante as agressões verbais ao país cometidas pelo embaixador de Trump.

O discurso oficial das instituições portuguesas diz-nos que o zelo em seguir as orientações da União Europeia e dos Estados Unidos coloca-nos na senda da verdadeira democracia, a que está acima de qualquer suspeita.

Uma democracia vibrante e que se prestigia todos os dias, como podemos perceber olhando desapaixonadamente para as realidades que nos cercam.

Nos Estados Unidos, o exemplo democrático por excelência, os dois candidatos presidenciais do partido único nas suas variantes republicana e democrata já informaram que não aceitarão os resultados das próximas eleições se eles não lhes forem favoráveis. Trump ameaça não passar o poder e certamente não lhe faltarão tropas de choque policiais, mercenárias e milicianas para lançar o caos nas ruas; Biden ameaça com o golpe militar enquanto prepara a activação do golpe político: a entronização da presidente da Câmara dos Representantes, a democrata Nancy Pelosi, como presidente de transição com a missão de dar posse ao próprio Biden. A democracia fervilha, é um insuspeito padrão de comportamento, como aliás pudemos perceber em cada palavra da cartilha lida pelo senhor embaixador dos Estados Unidos às autoridades portuguesas.

Provavelmente uma grande maioria dos portugueses sentiram-se ofendidos na sua dignidade com o comportamento do senhor embaixador dos Estados Unidos; provavelmente também tê-lo-ão mandado meter-se na sua vida com muito mais veemência do que o chefe de Estado e o ministro dos Negócios Estrangeiros. Mas há uma evidente falta de comunicação entre essa maioria e os dignitários em causa – apesar dos «afectos» – precisamente porque a elite entupiu a fluidez democrática.

O não dos portugueses às recomendações e à grosseria do senhor embaixador dos Estados Unidos fica assim abafado numa espécie de surdina. Será que fazer respeitar a dignidade nacional é uma atitude «nacionalista»?

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