|Verão

Sob o som da esperança

Não regresso ao verão da minha infância por nostalgia, mas pela esperança de voltar a ver um país em que o ar é de todos, em que não é preciso entrar em propriedade privada para ver as estrelas ou sentir o mar nos dedos dos pés. 

Créditos / Postal do Algarve

No verão da minha infância os dias eram sempre quentes e longos. Era o tempo do campismo, dos grelhadores, da pele macia e brilhante, da praia que se estendia até ao cair da noite, das noites infindáveis sem ruído e que, ainda assim, traziam o som da vida nas árvores, nas gargalhadas e nas bolas que batiam livres sobre o asfalto. Era o tempo das sestas e das festas a cheirar a sardinhas e a farturas no meio das vilas e das cidades onde todos tinham lugar.

Não sei ao certo quando me apercebi de que a felicidade desses dias da minha infância estava a ser substituída pela urgência de comprar o verão. As férias no Algarve já não estavam reservadas a uma elite. Era o progresso. Apareceram os time-sharings, os jet skis, o crédito malparado, as revistas de parasitas famosos e o negócio das «experiências». O elevador social era, na verdade, uma ilusão de ascensão por via do consumo e os dias simples ficavam, agora, cada vez mais pequenos e contaminados pela urgência das novidades.

O início da minha adolescência corresponde ao aparecimento de um conjunto de festivais estivais de música, que traziam a esperança de nos libertarmos das futilidades do verão dos empreendimentos em Albufeira, das filas intermináveis ao sol para almoçar no segredo mais mal guardado daquele ano, do single estafado que nos perseguia por todo o lado acompanhado pela sua patética coreografia. Longe dos grandes centros urbanos e estâncias balneares, regressávamos ao campismo, com banda sonora de uma juventude em movimento, cheia de contradições e livre, sobrevivendo com latas de atum, carcaças e a felicidade da amizade sem preço. Mas não faltou muito até os festivais se transformarem em centros comerciais, territórios de satisfazer a sofreguidão do consumo, agora no centro das cidades, onde a música é meramente decorativa e onde tudo tem um preço (bem alto). Foi como se o negócio do verão se tivesse apropriado das nossas vivências e agora viesse cobrar-nos o sol que nos queima a pele e o cheiro do mar.

«O elevador social era, na verdade, uma ilusão de ascensão por via do consumo e os dias simples ficavam, agora, cada vez mais pequenos e contaminados pela urgência das novidades.»

Mais ou menos subtilmente, o verão foi mercadorizado. A praia foi sendo discretamente privatizada pelos bares concessionados (até ao descaramento total) e até o seu acesso é um privilégio (a quanto está o bilhete para Troia?); o campismo selvagem proibido e os parques de campismo transformados em aldeias de bungalows; o silêncio e o sossego deixaram de ser acessíveis a quem não tem dinheiro para passar férias em lugares isolados por muralhas elitistas; o calendário foi ocupado por dezenas de festivais, muitos deles construídos sob falsos pretextos e produzidos sem critérios artísticos, culturais e sociais, deixando de fora dos grandes palcos principais a criação e a produção nacional, com raríssimas exceções, para inglês ver. A proliferação das plataformas digitais, que tentam mimetizar uma rede social, fez o resto. São multidões de indivíduos a produzir conteúdos para essas plataformas, muitas vezes alheados da sua própria companhia, preferindo a companhia virtual onde, eventualmente, procuram alguma reação.

Para o sucesso deste produto, como de tantos outros produtos, algo se sacrifica. Por exemplo, na Costa da Caparica, o festival Sol da Caparica, produzido hoje por uma entidade privada, passou, nos últimos anos, a ocupar um parque público, que havia sido requalificado e colocado ao dispor da população, durante todo o mês de agosto. Em agosto, a população da Caparica está impedida de usufruir de um dos seus melhores espaços públicos e ainda fica limitada no acesso a ruas e casas pelo excesso de carros ali estacionados de forma selvagem por estes consumidores do verão, na procura de mais um festival sem o qual nem sabem como iriam sobreviver. Sob o pretexto de montagens e desmontagens, o parque de Santo António está interditado no mês de maior afluência. 

A apropriação dos espaços públicos e de fruição cultural por grupos económicos, com direito a benefícios fiscais que representam perdas de receita significativas para o Estado que podiam ser aplicadas num apoio real a artistas e produtores culturais, vulgarizou-se. É como se, de repente, nada disto tivesse qualquer tipo de alternativa e o nosso papel fosse de meros consumidores, reféns dos valores de mercado que deixaram de se questionar sobre a razão desta apropriação. 

Com a especulação no preço dos bilhetes também os bens alimentares e, sobretudo, a cerveja viram o seu preço disparar abruptamente. Não há, hoje, de resto, uma única iniciativa que não tenha a mão dos dois maiores grupos de produção de bebidas – duas multinacionais, que através de duas marcas de cerveja simulam um mercado concorrencial jogando com emoções identitárias e fantasias sazonais. De fora dessa jogada não podiam ficar os grupos de telecomunicações que viram nos festivais a oportunidade para consolidar marcas e disputar um território que até ao advento do telemóvel com internet não lhes pertencia. 

«A apropriação dos espaços públicos e de fruição cultural por grupos económicos, com direito a benefícios fiscais que representam perdas de receita significativas para o Estado que podiam ser aplicadas num apoio real a artistas e produtores culturais, vulgarizou-se.»

Aquilo que eram espaços de liberdade, onde com pouco dinheiro se fazia um conjunto de escolhas livres, passaram a ser lugares condicionados e determinados pela lógica do consumo: a praia, o parque, o campismo, a fruição da música e até o terreno da amizade. Na época em que até a meteorologia ajuda e o tempo é largo, a aparente diversidade de oferta e de solicitações não é mais do que uma limitação da hipótese da liberdade, da verdadeira liberdade que não tem preço, que não tem um custo. Um custo que, de resto, vai ser assumido pelo salário daqueles que trabalham. Imagine-se uma casa com dois ou três filhos e um ou dois salários. Imagine-se a pressão familiar para poder garantir que os filhos não se sentem excluídos. Imagine-se a pressão social que motiva essa pressão familiar. O aumento desta ideia de necessidade cria, também, um aumento da dependência do capitalismo e do equívoco da sua inevitabilidade. Quem cresceu neste universo não imagina o que seria não ter de gastar dinheiro para passar um dia de verão com os amigos. 

Creio que já o disse por aqui por mais de uma vez, mas não me cansarei de o repetir: não regresso ao verão da minha infância por nostalgia, mas pela esperança de voltar a ver um país em que o ar é de todos, em que não é preciso entrar em propriedade privada para ver as estrelas ou sentir o mar nos dedos dos pés. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui