Anunciada como o deus ex machina que todos os problemas resolverá, a medida que prevê a atribuição de 650 bolsas de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) em ambiente não académico1 já em 2023 é, na verdade, o alargamento da precariedade que sempre existiu no Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) a outros contextos laborais. Um mimo para as empresas privadas que, actualmente, poucos ou nenhuns doutorados contratam, e uma manobra de distracção para disfarçar o facto de o Governo não perspectivar um combate sério à precariedade nas instituições científicas nos próximos anos. As bolsas de doutoramento em empresas, que dão agora lugar às bolsas em ambiente não académico, não são novidade, mas passar de cerca de uma centena para 50% das bolsas atribuídas é algo inteiramente novo.2
Por partes.
Prólogo: as bolsas de investigação. São vínculos que não garantem os mais básicos direitos laborais: nem 13.º mês, nem 14.º mês, nem subsídio de desemprego, nem descontos para o regime geral de Segurança Social. Exigem exclusividade, mas não são consideradas vínculos jurídico-laborais. São a terra de ninguém onde tudo é permitido. Antes davam para todos – todos mesmo, do doutorado ao gestor de ciência, passando pelo jardineiro –, agora dão para quase todos. Em 2019, o Governo procedeu à alteração do Estatuto do Bolseiro de Investigação Científica (EBI). Passou a estar inscrita a obrigatoriedade de inscrição em cursos conferentes ou não conferentes de grau como condição para trabalhar ao abrigo de uma bolsa. O ministério argumentou que esta medida serviria para combater o abuso do recurso a bolsas mas, sob este pressuposto, foi dado um enorme passo para a ainda maior precarização dos vínculos dos investigadores ao abrigo daquele estatuto. Esta subtil alteração não combateu nenhum abuso. Pelo contrário, fez com que as universidades desatassem a abrir cursos e cursinhos, com propinas associadas, para continuarem a ter bolseiros, fingindo que estes estão em formação e não devem assim ser considerados trabalhadores. Por outras palavras, muitos bolseiros passaram a ter de pagar para trabalhar e retomou-se, enfim, a figura do bolseiro como estudante que tem a sorte de trabalhar, agravando-a. Esta é a realidade laboral de cerca de 13 000 pessoas em Portugal.3
«[as bolsas de investigação] São vínculos que não garantem os mais básicos direitos laborais: nem 13.º mês, nem 14.º mês, nem subsídio de desemprego, nem descontos para o regime geral de Segurança Social. Exigem exclusividade, mas não são consideradas vínculos jurídico-laborais.»
OE2023 e as bolsas de doutoramento em ambiente não académico. Diz-nos a nota explicativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) que serão atribuídas 650 «bolsas de doutoramento cujo plano de actividades de investigação se desenvolva em ambiente não académico (empresarial, administração pública, sector social)». Apesar de poderem ser potencialmente aplicáveis ao sector social e à administração pública, resta desde logo saber quantos candidatos haverá, além de que estes três «ambientes não académicos» não significam exactamente o mesmo.
O objectivo, argumentou a ministra Elvira Fortunato nas duas audições parlamentares em que o assunto foi abordado, é fazer com que haja uma maior absorção de doutorados pelo tecido empresarial e pela administração pública, e isso só poderá ser feito se a investigação ao nível do doutoramento se desenvolver desde logo em ambiente não académico. Ainda que não existam dados que comprovem que esta medida se venha a traduzir em emprego – e a própria ministra não saiba dizer quantos doutorados em ambiente empresarial de programas anteriores foram de facto contratados por empresas –, é nesta premissa que assenta toda a justificação política.
Trabalho a preço de bolsa. A crença de que a transferência de uma grande parte dos doutoramentos para as empresas se traduzirá em pleno emprego carece de fundamento e tem também de ser lida a partir da ideia perversa de que integrar os actuais (e futuros) investigadores doutorados com vínculos precários nos quadros das instituições do SCTN é «matar a ciência».4 (Claro que se trabalharem eternamente com vínculos precários, mesmo que na mesma instituição durante trinta anos, já a estão a «revitalizar».)
Fora do contexto académico, dar-se-á lugar a um exército de trabalho qualificado a ainda mais baixo custo. Assim, à prática do recurso a bolseiros que impera nas instituições científicas, somar-se-á a mesma prática em empresas, administração pública e sector social, tudo pago – total ou parcialmente – pelo orçamento para ciência, o mesmo orçamento que se diz não poder contratar para as carreiras nas instituições científicas. No público, o recurso a bolseiros para suprir necessidades permanentes foi um dos fundamentos para a abertura das bolsas de doutoramento da Direcção-Geral do Património Cultural em 2021. Na altura, a então Secretária de Estado Adjunta e do Património, Ângela Ferreira, declarou ao Expresso que, com estas bolsas, se procurava «colmatar a falha em recursos humanos referida por muitos directores, nomeadamente em emprego especializado (…).» No privado, se as empresas já têm benefícios fiscais para fazer investigação e apenas têm contratados 8% de todos os doutorados, será mesmo uma medida que permite a essas mesmas empresas desenvolverem investigação com trabalhadores pagos pelo erário público o que as motivará a integrar investigadores nos seus quadros?
«Fora do contexto académico, dar-se-á lugar a um exército de trabalho qualificado a ainda mais baixo custo. Assim, à prática do recurso a bolseiros que impera nas instituições científicas, somar-se-á a mesma prática em empresas, administração pública e sector social, tudo pago – total ou parcialmente – pelo orçamento para ciência (...)»
Criação de conhecimento ou criação de valor. Esta medida, integrada na absoluta ausência de outras propostas que visem integrar nos quadros, nas instituições científicas, os investigadores e gestores de ciência, é a questão de fundo que virá confirmar o rumo estratégico por que se norteiam as políticas públicas para a ciência em Portugal há demasiado tempo: o investimento numa ciência pronta-a-consumir, alicerçada na instabilidade laboral e na denominada competitividade como meio de captação de financiamento por quem a faz. Essa é já a realidade com que todos os investigadores se deparam e os doutorandos estão na base dessa cadeia alimentar. Cada vez menos os doutoramentos podem ser pensados fora do contexto dos projectos em curso nas respectivas áreas científicas e cada vez mais são pensados em termos dos resultados mensuráveis que dele sairão. A criação de conhecimento é substituída pela criação de valor como requisito fundamental e a transferência do trabalho científico ao nível do doutoramento para as empresas e outros ambientes não académicos virá aprofundar brutalmente esse impulso. Se a autonomia e a liberdade científicas são alvos a abater numa academia fortemente mercantilizada, mais o serão em cenários onde a criação de conhecimento é irrelevante e a criação de valor um requisito obrigatório.
«A criação de conhecimento é substituída pela criação de valor como requisito fundamental (...)»
A fórmula mágica para acabar com os problemas dos vínculos na investigação científica em contexto académico consiste, então, em empurrar esses vínculos para as empresas, administração pública e sector social. Disfarçam-se os problemas laborais que persistirão na academia (onde se alega que a sua autonomia não deixa que se obrigue a integrar os trabalhadores) ao mesmo tempo que empresas privadas conseguem ter trabalhadores altamente qualificados a baixo custo ou a custo zero (onde se alegará analogamente que a sua autonomia não deixa que se obrigue a integrá-los). A precariedade mantém-se e multiplica-se, mas torna-se inovadora.
- 1. Nota explicativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior sobre o Orçamento do Estado para 2023, p. 25.
- 2. Veja-se, ainda, que o painel para bolsas em ambiente não académico do concurso de 2022 da FCT teve 130 candidaturas, representando 4,2% do total de candidaturas submetidas.
- 3. Não existem dados públicos que permitam determinar o número exacto de investigadores com vínculo de bolsa. O valor arredondado aqui utilizado parte de contas feitas pela ABIC em 2021, segundo dados percentuais de bolsas directamente financiadas pela FCT indicados pelo MCTES. É, por isso, indicativo.
- 4. Resposta da ministra Elvira Fortunato à deputada Paula Santos na audição regimental de 13 de Dezembro de 2022, a partir de 1.44.32.
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