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A Arte de (querer) ter razão

«Ter razão» é diferente da «vontade de ter razão». No espaço público, «ter razão» é a capacidade de se convencer um grande número de pessoas de que se está a ser verdadeiro.

«Discurso Eleitoral», desenho a tinta da china, Agosto 1969, publicado no Diário de Lisboa/Mesa Redonda 19 de Setembro 1969
CréditosJoão Abel Manta

O título deste texto é uma adaptação do nome dado a algumas edições de uma obra de Arthur Schopenhauer (A arte de ter razão, mas também Dialéctica Erística ou Como vencer um debate sem precisar ter razão – em 38 estratagemas), onde o autor expõe 38 maneiras de ganhar uma discussão, recorrendo a falácias e até a meios que conseguem fugir a essa categoria (como começar a ofender o oponente caso se dê a discussão por perdida). Não há indicações de uma partida para a violência (não verbal), mas se a obra fosse escrita hodiernamente, talvez não se estranhasse essa via, em último caso – e por vezes até em primeiro.

«O argumento de um fascista não é inválido porque é proferido por um fascista, a análise da proposição basta para bem se ver os alicerces construídos a cuspo histérico – o conjunto desses argumentos, sim, fazem o fascista»

Num mundo ideal, numa discussão, o argumento é que importa, não a pessoa que o profere, independentemente de qualquer determinação que caracterize o orador. O argumento de um fascista não é inválido porque é proferido por um fascista, a análise da proposição basta para bem se ver os alicerces construídos a cuspo histérico – o conjunto desses argumentos, sim, fazem o fascista. Todo e qualquer debate deveria centrar-se nos argumentos e não em factores extrínsecos aos mesmos (centrar-se no que está a ser debatido e não a elementos que, mesmo que ligados aos intervenientes, não fazem parte do que está em questão). No entanto, esta não é, de todo, uma questão simples. Existem argumentos que exigem uma fundamentação maior do que outros, e a discussão oral não permite, por norma, o aprofundamento necessário – muito menos quando falamos de debates em espaços direccionados para as massas, com tempo bastante limitado.

Depois, existe o problema «o que é ter razão?»; traduzindo: a partir de que critérios se define quem está certo e quem está errado. Numa obra científica – normalmente portadora duma imensidão de elementos complexos – a correção das teses apresentadas é avaliada pela «verdade» (ou validade) dos fundamentos – experimentações, deduções, cálculos, etc.

«Existem argumentos que exigem uma fundamentação maior do que outros, e a discussão oral não permite, por norma, o aprofundamento necessário – muito menos quando falamos de debates em espaços direccionados para as massas, com tempo bastante limitado.»

Quando se está numa «conversa», a tendência é afunilar pegando em pontos específicos do adversário, que não estão obrigatoriamente ligados aos argumentos proferidos, para que se construa um caminho que seja favorável a quem faz essa «condução». Basta uma breve auscultação do espaço público para se detectar «argumentos contra a pessoa», onde se pretende negar o opositor por questões relativas à pessoa e não ao conteúdo do argumento; ou «apelos à autoridade», sustentando-se o argumento recorrendo à reputação como razão suficiente para o validar; entre outras.

Condições reunidas e favoráveis à falácia, entra a «vontade de ter razão», e aí são os escrúpulos que guiam o orador. No espaço público, «ter razão» não tem o mesmo significado que tem na cientificidade acima descrita – «ter razão» não é estar a ser verdadeiro, é, sim, a capacidade de se convencer um grande número de pessoas de que se está a ser verdadeiro. Desta forma, os propósitos de conquista conduzem o discurso. Reina a cobiça de mais espaço público através do apoio de seguidores (eleitores, defensores ideológicos, clientes, financiadores, etc.) e para obter cada vez seguidores. Nunca prezando a qualidade e fundamentação dos argumentos, mas a aparência, por quaisquer meios, de que se é dono da razão – pois esta é pública.

«Reina a cobiça de mais espaço público através do apoio de seguidores (eleitores, defensores ideológicos, clientes, financiadores, etc.) e para obter cada vez seguidores. Nunca prezando a qualidade e fundamentação dos argumentos, mas a aparência, por quaisquer meios, de que se é dono da razão – pois esta é pública»

Contemporaneamente, «ter razão» está associado à identificação no discurso com problemas, inquietações, rancores, indignações, preconceitos por parte do indivíduo que o assiste (multiplicado pelo maior número que se conseguir). No entanto, essas próprias posições do sujeito têm a sua razão de ser muito pouco fundamentadas – a tendência é «analisar a floresta a partir da árvore que se tem à frente». E quando se está disposto a largar a validade dos argumentos para perseguir esse método de angariação de seguidores (populismo), cresce-se no espaço mediático.

«Ter razão» é diferente da «vontade de ter razão». Ter razão vai para além de vencer debates, ter razão é um processo histórico, que engloba acções (verificações práticas dos argumentos que se defende), numa perspectiva de totalidade e relação dialética entre vários elementos influenciadores e transformadores. Só a mera «vontade de ter razão» é que pode ser satisfeita pelas palmadinhas nas costas em concordância – estas bastante fugazes na História.

Júlio F. R. Costa é licenciado em Filosofia e mestre em Mercados da Arte.

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