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Conto

A escada inamovível de Gualdino Pais

E então, braços rápidos como pistões de motor em furiosa combustão de tempo e esperança, abriu a mochila, mergulhou as mãos em maços de papéis clandestinos impressos há meio século e soltou-os na cidade como se fossem novos, em bandos aos milhares.

A «escada inamovível», debaixo de uma janela da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, permanece no mesmo sítio desde 1728, sendo um símbolo do acordo de <em>status quo</em> que proíbe qualquer rearranjo do templo sem o consentimento unânime das seis congregações ecuménicas que o conservam (foto de arquivo, 2014).
CréditosMatthew Delaney / Wikipédia

Quando, na segunda-feira seguinte, o pedreiro tornou à obra para reaver a escada, informaram-no de que, desde esse fim-de-semana, a escada era, à luz do direito internacional, inamovível. Há trezentos anos desde esse dia, a simples escada de madeira permanece encostada a uma janela da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém e lá permanecerá eternamente, porque segundo o tratado assinado pelas seis ordens ecuménicas que partilham o templo, estão proibidas todas as alterações à aparência e à disposição da propriedade desse sítio sagrado onde, reza a lenda, foi crucificado, enterrado e ressuscitado Jesus. Quantas mais escadas inamovíveis haverá por essa História fora, puxada de arrasto pelo tempo e desfazendo-se contra os anos em detritos incompreensíveis, sem qualquer outro sentido senão o consuetudinário? Não tantas como nas nossas cabeças.

Um curioso exemplo de escada inamovível deu-se há dias numa estrada ribatejana, quando um agente imobiliário abriu, pela primeira vez em quase cinquenta anos, as portas do número 17. O telhado há muito abatera e a chuva tratara de dissolver mobílias, têxteis e livros numa açorda indistinta de que se levantavam só esqueletos de arame. Da ruína pouco mais restava que quatro paredes de taipa esboroada, com a excepção do lintel, que ainda protegia uma transbordante caixa do correio.

Não sabemos se foi por excesso de zelo ou de curiosidade que o comercial da REMAX decidiu abri-la, desenterrando, entre muitas contas da luz e da água, um Sá Carneiro descolorado a prometer o socialismo e uma multa do videoclube, cinco cartas endereçadas a um tal senhor Gualdino Pais, não do 17, mas do número 77 dessa mesma estrada. Bastava que o remetente tivesse atravessado o 7 com o clarificador traço ao meio que o diferencia do 1, e não se teria dado o caso de, pela mesma razão, se enganar cinco vezes o carteiro e de continuar «Gualdino», nome de código, mais 48 anos à espera do fim da clandestinidade.

A orientação era inequívoca: esperar pelo sinal o tempo que fosse preciso e antes nunca sair nem dar sinal de vida. Então Gualdino, era Fevereiro de 74, preparou-se tão bem para o tempo que fosse preciso que ninguém nas redondezas se lembra de ver aberto o isolado portão do número 77 a que, ainda por mais, só se acedia por péssima estrada de terra batida. Do outro lado do muro era uma floresta de silvas, arbusto português por excelência, que só se abria num túnel de espinhos que, quem por ele gatinhasse, conduzia a novo muro e igual portão. E lá dentro, um comunista ainda cumpria a orientação dada sem contudo sonhar que já era morto quem lha dera e que já caíra entretanto o fascismo.

Todos os dias Gualdino limpava a pistola e a tipografia, conforme a orientação. Depois, percorria o túnel de silvas até à caixa do correio, que encontrava invariavelmente vazia. Acto contínuo, punha couro e cabelo em dois hectares de horta e vergel que tornavam a casa clandestina auto-suficiente e imune à polícia política: batata, trigo, limão, tomate, cereja, laranja, abóbora, couve, cenoura, nabo, cebola, feijão, porcos, galinhas, castanheiros, sobreiros, centenas de latas de conservas, quilos de sal e açúcar e um poço que nunca secava. Por uma questão de segurança, não havia contratos de electricidade ou água. Por uma questão de segurança, nunca saía nem contactava com ninguém. E também por uma questão de segurança, o seu controleiro era a única pessoa no mundo que sabia onde ele estava. Só que, por uma questão de azar, o seu controleiro tinha um 1 parecido com um 7 e um longo historial de doença cardiovascular. A segurança era tal que nem o Partido conseguiu descobrir onde andava Gualdino Pais para o informar que o controleiro morrera e lhe explicar se a revolução já vinha, já viera ou já fora.

Muitas vezes pensou Gualdino em queimar os papeis e fugir, mas a perspectiva da prisão e da tortura e o medo da delação prendiam-lhe a ousadia. Até que um dia ficou baralhado com os dias da semana, até noutro dia se esquecer do dia do mês, e outro ainda houve em que se perdeu em que mês era, até um dia já não ter a certeza sequer de que ano era, até que começou a sonhar com isto tudo e a despertar com a passagem do tempo emaranhada nos dias dos meses dos anos das décadas. Afinal a História, dizia Joyce, é um pesadelo de que se demora a acordar.

Até que um outro dia, um agente imobiliário demasiado diligente resolveu corrigir o erro epistolar e, com quarenta e oito anos de atraso, entregou na morada certa cinco cartas amareladas, que continham o sinal secreto para Gualdino acordar, meter a carga às costas e se meter a caminho de Lisboa.

Mais do que a inacreditável velocidade da correnteza de automóveis por ele a silvar, mais até do que a quantidade ou a altura dos prédios, espantaram-no pelo caminho as foices com martelos cruzados, florão para epígrafe sobre o aumento de salários, direito à saúde, menos horas de trabalho, contratação colectiva. É certo que na clandestinidade dos anos setenta já havia cartazes, pichagens e até murais, mas não assim, não tantos, nem como este, com a cara escarrapachada de um comunista, identificado para conveniência policíaca como candidato a deputado. Como assim um «deputado»? Ou como assim seis? Como assim este ar que nos passa o peito tão diferente de antigamente? Sem saber o que era isso de dar mais força à CDU, deu antes mais força aos pedais: Lisboa era sempre em frente.

É uma pena que a idade não lhe faça mais peso também nos pedais. O vento arrefece-lhe as lágrimas que já se lhe formam nos olhos, pequenas pérolas de cloreto de sódio quase tudo, e sereno geado. Sente uma espécie de vergonha que, melhor se descreveria como uma pena de si mesmo: a família que, se ainda vivos sobrarem, não o reconheceria se assim o visse, reaparecido no fim do filme, desorientado com lágrimas de velho e com o corpo já fraco e inútil como os anos que já não prestam nem prestaram para nada. E, no entanto,não parou de pedalar.

É por estas contradições que se move o mundo: não é por se pensar que logo se é, mas já é verdade o que é logo pensa, como agora a gravidade dos pés força a revolução da pedaleira, ou o vento contra a resistência que lhe oferece o corpo, ou a idade, já lá vão 70, contra a vida que a carrega como se carrega de resto o peso de uma mochila até à orla carregada duma orientação caducada, ou uma tese eternamente contra a própria antítese ou este sentimento de alegria, por haver agora seis deputados comunistas contra a tristeza de já não fazer sentido uma orientação com meio século de atraso, tão em vigor como a proibição de mover uma escada de pedreiro.

Percorridos já 15 quilómetros parou e pediu uma bica, mas o café arrefeceu-lhe sob os olhos vidrados na emissão interminável de notícias em directo. Era-lhe agora claro como tudo havia mudado. O tom do pivô não cheirava a fascismo e da guerra colonial nem ai nem ui, mas tampouco dos comunistas falavam: nem comentador, nem reportagem, nem rodapé nem notícia alguma, o que contrastava com tanto cartaz, tanto mural, tanta pichagem estrada fora. De alguma outra nova forma, convenceu-se, a censura continuava e os comunistas afinal mantinham-se ainda na ilegalidade. Deixou na mesa 50 escudos e prosseguiu viagem. Lisboa alastrara o matagal de betão aos arrabaldes, mas ainda era a mesma cidade cálida, nervulosa de pobreza bombeada por artérias, veias, capilares obstruídos por dores agudas, acidentes graves e belezas prodigiosas, circunstanciais.

Já levava a bicicleta pela mão quando alguém lhe estendeu um papel: um panfleto comunista exigindo ao novo governo o fim da precariedade. Tropeçou-lhe pela cabeça tratar-se de uma cilada da PIDE, mas algo não batia certo: os panfletos voavam às centenas, espalhados pela boa gente trabalhadora como sementes sopradas uma a uma da árvore da revolta.

— Olha lá, tu não tens medo de ser visto com propaganda do Partido?

O jovem ponderou na resposta. Examinou o velho de cima a baixo: os sapatos antiquados, as calças roídas pela traça, a camisa desbotada, a boina enterrada até aos olhos muito abertos, atentos como lentes automáticas e deslumbrados com a existência dos outros. Riu-se apenas, mas como Gualdino não lhe retribuiu o riso, respondeu:

— Por acaso na minha empresa ainda estou clandestino porque só fico efectivo para o ano, mas o patrão também não precisa de saber.

E foi aí que se instalou no coração de Gualdino a certeza de que, apesar de tudo, a velha orientação ainda merecia ser cumprida. Na democracia do dinheiro os pobres estarão sempre clandestinos. Uma casa assim não será nunca a casa dos comunistas nem eles nela em casa se sentem nem dos seus donos esperam justiça nem clemência. Porque em cortejo entrando ou esgueirando-se saindo, por telhas partidas ou janelas encostadas, na clandestinidade ou na legalidade, na democracia deles nunca somos bem-vindos.

Gualdino parou a bicicleta no miradouro de Nossa Senhora do Monte. Deste mesmo promontório acampado, D. Afonso Henriques fitara longamente um dia o castelo mouro, perguntando-se também como se toma uma fortaleza inimiga quando todas as escadas parecem inamovíveis.

Sentia a enorme mochila às costas prestes a rebentar. Os hipsters que bebiam cervejas de três euros não repararam nele. Lá em baixo, minúsculos nas grandes avenidas, passavam escravos motorizados puxando cubos ora amarelos, ora verdes. Gualdino trepou pela escada do depósito de água. O inexpugnável castelo, que de sarraceno já nada lhe sobra, lá estava ainda defronte, alvo e altaneiro, fechado ao invasor, mas ao mesmo tempo frágil a túneis, torres de cerco e outros estratagemas.

O vento levante empurrava o céu inteiro para dentro do mar oceano, com as suas nuvens de chuva prenhas e o seu tempo prenho de futuro. Lénine dizia que há décadas em que nada acontece. Podíamos nós acrescentar que também há minutos em que as décadas acontecem, esquecendo-se um homem de quantos anos tem ou quantos lhe sobram, no acto de cumprir um papel histórico que se prolonga na juventude dos outros e no futuro dos demais.

E então, braços rápidos como pistões de motor em furiosa combustão de tempo e esperança, abriu a mochila, mergulhou as mãos em maços de papéis clandestinos impressos há meio século e soltou-os na cidade como se fossem novos, em bandos aos milhares, num gesto de quem se desprende do que já foi seu a esvoaçar nas rajadas do Zéfiro como estorninhos com escamas de peixe, intermitentes, a sobrevoar as muralhas do castelo, a tomar as fortalezas inimigas dos condomínios privados e dos átrios das empresas, numa chuva ao sol que o IPMA não previu de folhas a refulgir como mercúrio que terminaram no vidro de um carro de um trabalhador subcontratado da Teleperformance, que acabaram na mão cansada de uma enfermeira do Santa Maria na pausa para café, que poisaram no colo de um psicólogo que sobrevive apenas com o subsídio de desemprego, que deram por si na mala de uma trabalhadora da limpeza que sozinha não consegue suportar a renda e que foram parar à atenção de massas abundantes, para quem o 25 de Abril é só um feriado ou porque se esqueceram dele ou porque, como Gualdino, nunca ninguém as avisou que ele aconteceu. «Não há liberdade sem socialismo», gritava o panfleto, nem há escada que não possa ser movida, muito menos uma que não possa ser escalada.

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