|aumento de preços

Escalada de preços não pode ser subestimada

Pretende-se a todo o custo ser bom aluno europeu, cumpridor das desacreditadas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, custe o que custar a assalariados, pensionistas e parte significativa das chamadas «classes médias».

Créditos / jornaldenegócios.pt

No debate sobre o Programa de Governo, o primeiro-ministro minimizou a escalada de preços no consumidor ao afirmar que a inflação tem uma origem externa e uma tendência tendencialmente conjuntural. O que está mais em consonância com a situação vivida no contexto da retoma económica após os piores efeitos da crise pandémica, onde se antevia o esbatimento das tensões inflacionistas ao longo de 2022, do que com o contexto de guerra na Ucrânia, de sanções económicas dirigidas à Rússia, mas que têm também consequências nos países europeus e de mudanças na política energética com efeitos na formação dos preços. Não é claro que a inflação seja uma nuvem passageira, sendo fraca consolação dizer que nada é claro no estado actual do mundo.

A previsão de inflação para este ano apontada no Programa de Estabilidade 2022-2026 é de 2,9%, abaixo do valor projectado pelo Banco de Portugal (4%), supondo, nos dois casos, um cenário económico menos adverso. Num cenário pior a inflação pode atingir 5,9%, segundo o banco central.

O Governo corrigiu entretanto, na Proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2022, a previsão de inflação, que é agora de 3,7%. Mas continua a recusar a actualização de rendimentos, particularmente de salários e de pensões, invocando o risco de «espiral inflacionista».

«Não é claro que a inflação seja uma nuvem passageira, sendo fraca consolação dizer que nada é claro no estado actual do mundo.»

Os valores de Março confirmam que a inflação (5,3% em variação homóloga, ou seja em comparação com Março de 2021), ainda que impulsionada pelos produtos energéticos, se tem propagado às várias classes de produtos e de serviços. A dos transportes (11%) continua a ser a que mais contribui para a variação homóloga, o que está associado ao aumento dos preços da energia de quase 20%, vindo a seguir os produtos alimentares e bebidas (7,2%), os restaurantes e hotéis (6,6%) e a habitação (5,4%). Há também aumentos noutras classes, embora mais moderados (como na educação). Curiosamente, o vestuário e calçado, apesar de ser a que mais subiu em Março face a Fevereiro (22,6%), registou uma diminuição homóloga. A forte subida em variação mensal foi causada pelo início da nova colecção, mas num valor inferior ao registado em 2021.

Os transportes, a alimentação e a habitação são os agregados mais representativos das despesas das famílias (mais de 60% em 2015/2016). Os efeitos da inflação variam com as classes e os grupos sociais. A despesa com a alimentação, por exemplo, que pesa 14,3% na média da despesa das famílias, tem o valor de 19,3% nos 20% de rendimentos mais baixos face a 11% nos 20% de rendimentos mais elevados1. Ou seja, o aumento dos bens alimentares penaliza sobretudo os trabalhadores e os pensionistas de mais baixos rendimentos.

Teremos uma ideia mais concreta do que hoje está a ocorrer se olharmos para a variação homóloga em grupos de produtos (em vez de classes, que é mais abrangente). As subidas são em vários casos de dois dígitos.

Maiores aumentos homólogos em Março: exemplos; %
Alimentação 
- óleos e gorduras32,2
- pão e cereais8,4
- peixe, crustáceos e moluscos7,9
Habitação; acessórios para ler 
- serviços de manutenção e reparação da habitação11,7
- gás16,9
- combustíveis líquidos44,9
- transportes de passageiros mar e vias interiores10,3
- mobiliário e acessórios12,0
Transportes; comunicações 
- bicicletas7,4
- combustíveis e lubrificantes para transporte pessoal30,7
- transportes passageiros mar e vias fluviais10,3
- serviços postais7,9
Lazer, recreação e cultura 
- animais de estimação e produtos relacionados7,7
- jornais e periódicos8,7
Restaurantes e hotéis; outros 
- restaurantes, cafés e similares5,7
- serviços de alojamento16,4
- serviços relacionados com a saúde6,9

Fontes: INE; Março de 2022 face a Março de 2021

Uma inflação anual entre 4% e 6% em 2022 provocará profundos impactos no poder de compra de salários e de pensões, a menos que se tomem medidas correctivas. Na Administração Pública os salários foram actualizados em apenas 0,9%, pelo que o salário real cairá entre 3% a 5%. A quebra é particularmente relevante se lembramos a perda do poder de compra nas últimas duas décadas. Mesmo que a inflação não vá além de 3,7%, teremos, no período 2009-2022, uma variação acumulada de 16,7% na inflação e de apenas 1,3% nas tabelas salariais. 

As pensões perderam também poder de compra, embora tenha havido aumentos extraordinários desde 2017. Os aumentos normais são efectuados desde 2006 segundo regras que têm em conta o crescimento económico e a inflação, mas que não asseguram a reposição do poder de compra para todos os pensionistas. Este ano o aumento foi de 0,9% nas pensões até 886,40 euros sendo de 0,49% ou de 0,24%, conforme o valor da pensão, nas de montante superior.

«A direita correu a denunciar a «austeridade» porque pretende legitimar o que fez no período da troica – cortes directos nos salários e nas pensões e regressão dos direitos sociais.»

Poderá acrescer uma perda por via fiscal se os escalões do IRS não forem revistos segundo a inflação prevista (3,7%), embora tenha sido alargado o nível de rendimento que fica isento de IRS, uma medida discutida com o PCP no processo do anterior OE. Há outros elementos a ter em conta. Veja-se a impressionante subida dos preços de aquisição de alojamentos: 9,1% em média anual no período de 2016-2021 com 11,6% no 4.º trimestre de 2021.

Mesmo que a subida da inflação seja «transitória», como se afirma na Proposta de OE para 2022, não se justificam estas perdas. No Programa de Estabilidade 2022-2026, o Governo vangloria-se de ser um dos países que melhor cumprem as regras europeias. É este o fulcro do problema. Pretende-se a todo o custo, contra ventos e marés, ser um bom aluno europeu, cumpridor das desacreditadas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Custe isso o que custar aos assalariados, aos pensionistas e a uma parte significativa das chamadas «classes médias», com consequências sociais desastrosas.

A direita correu a denunciar a «austeridade» porque pretende legitimar o que fez no período da troica – cortes directos nos salários e nas pensões e regressão dos direitos sociais. Mas, se o Governo mantiver a actual posição e se houver na opinião pública a ideia de que a política de «bom aluno» europeu também serve fins pessoais, será um presente oferecido numa bandeja à direita e à extrema-direita.

  • 1. INE, «As famílias despenderam mais de 60% em habitação, transportes e alimentação», Destaque, 19.12.2016 e INE, Inquérito às Despesas das Famílias 2015/2016, 2017.

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