A conversa com a escritora e realizadora Nana Ekvtimishvili ocorreu em Maio passado, na livraria Buchholz, em Lisboa. A autora acabara de publicar a tradução portuguesa da sua obra Onde as Peras Caem (de 2015, originalmente), finalista do Prémio Internacional Man Booker e do prémio literário EBRD.
Conhecemos a Escola dos Idiotas, como é apelidada a instituição, responsável pelo acolhimento de crianças com doenças mentais (ou apenas abandonadas à sua sorte), espaço central da narrativa de Onde as Peras Caem, por via da morte de uma de uma delas. O jovem Sergo é atropelado, socorrendo-o um homem suado, a tresandar a Vodka. A directora lamenta-se: «Nós não temos pessoal!», o Ministério já estava avisado.
Como em muitos outros momentos da história, cabe ao condutor enfrentar a brutal apatia que tomou posse da sua sociedade, exercendo um pequeno acto de bondade, de dignidade. Sem culpa do acidente, recusa-se a aceitar que a criança seja enterrada numa vala comum, pagando do seu bolso o caixãozinho de madeira e a singela coroa de flores.
Quando o projecto do Estado Soviético ruiu, as vidas de muitos georgianos ressentiram-se. Faltou tudo, explica a autora: a luz, o gás, a comida... mas foi nas vidas das populações mais marginalizadas que a escassez e a brutalidade mais evidenciou as consequências do processo de desagregação da União Soviética. É sobre elas o livro.
Nana Ekvtimishvili, cuja obra cinematográfica já foi candidata ao óscar de melhor filme estrangeiro, contou ao AbrilAbril a sua própria experiência enquanto jovem nestes tempos conturbados e o contacto directo que teve com muitas destas crianças abandonadas, prostituídas, raptadas, assediadas e violadas: A «geração perdida» da Geórgia.
Onde as Peras Caem retrata a Geórgia na pós-dissolução da União Soviética. Foi um contexto de muita violência, sem controlo, sobre a qual pouco se sabe aqui em Portugal. Foi esta a experiência que pautou a tua infância?
Fico impressionada quando leio os meus antigos diários, de quando era apenas uma criança. Tudo aquilo sobre o qual escrevia era política, sobre eleições, contra o império russo, sobre ser contra isto, a favor daquilo... O que eu ainda não compreendia é que já fazia parte de uma nova sociedade georgiana, em separação do estado soviético. Eu encontrava-me envolvida em tudo isso.
Quase não tive uma verdadeira infância. No início dos anos 90 [a dissolução da URSS deu-se em Dezembro de 1991] participei em mais funerais do que festas de aniversário dos meus colegas...
E, ainda assim, neste livro, escolheste não te focar demasiado no lado político, nas manifestações, nos conflitos partidários, nas interferências geoestratégicas. O teu romance é sobre o dia-a-dia da população marginalizada, a que pouco ou nada interfere no grande devir da História.
Nenhuma grande ideologia política funciona sem as pessoas, sem as populações. Ao escrever sobre um problema, sobre um conflito político real, não o poderia fazer sem o ligar à vida real daqueles seres humanos.
O teu retrato de Tbilisi [capital da Geórgia] é o de uma cidade altamente degradada, abandonada aos seus desígnios, sem que ninguém se responsabilizasse pela sua manutenção... É uma imagem fidedigna da tua experiência?
Sem dúvida, era uma situação completamente insólita. Depois da queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), tudo ficou fora de ordem: não tínhamos electricidade, não tínhamos gás nem comida; a polícia não era fiável – aliás, a polícia tornou-se tão corrupta que chegava a ser perigoso chamá-la se tivéssemos um problema... toda a gente tinha armas (era fácil arranjar uma nas ruas), havia violência em todo o lado, a todo o momento.
O meu livro é sobre uma instituição neste caos pós-soviético, um orfanato pelo qual ninguém se interessa, num momento em que ninguém se interessava pelo destino daquelas crianças. Não há pais, nem organismo de supervisão. Estas crianças tiveram de desenvolver as suas próprias estratégias de sobrevivência.
Mas não parece que sejam apenas as crianças com ausência de futuro, toda a sociedade está estagnada, bloqueada. O orfanato reflecte o desespero de uma comunidade sem perspectiva de alguma vez vir a resolver os seus problemas.
Sim, toda a sociedade estava desorientada. Lembro-me de, nessa altura, faltar muito à escola: a maior parte do tempo não estava a funcionar ou não tinha aquecimento quando ficava demasiado frio. Passávamos muito tempo nas ruas.
Por todas as suas falhas, a União Soviética constituía um garante de estabilidade na vida das populações: educação, emprego, uma vida. Como é que tudo se evapora de um momento para o outro?
Durante muito tempo acreditei mesmo que nada ia mudar na minha vida. A minha vida ia ser isto: viver na Geórgia, nos subúrbios de Tbilisi, naquele apartamento sem luz, sem gás, sem comida, apenas uns bons vizinhos com quem partilhar o destino comum. Nada, nada, nada acontecia...
Para mim, as coisas só começaram mesmo a mudar quando, aos 15 anos, me matriculei numa escola onde nos ensinavam a fazer cinema e televisão e onde os professores ainda acreditavam em qualquer coisa. Não falávamos muito sobre o futuro, no que iria acontecer, mas falávamos sobre valores, sobres as coisas pelas quais valia a pena viver.
Estes desafios intelectuais, e filosóficos, ajudaram-me a mim, e aos meus colegas e amigos, a sobreviver a esse período.
Aquela escola era um paraíso. Fora dos portões havia um grande mercado, sempre repleto de gente, um espaço muito grande, muito sujo, tudo a vender, a comprar, a trocar, anúncios, muita gente pobre, sem-abrigo. Era um espaço muito tenso, de luta pela sobrevivência. Aquela escola era um oásis único, em que ainda podíamos aprender sobre a poesia.
O livro é marcado por pequenos actos de resistência em que os personagens imersos num mundo de violência, de abandono e individualismo, resistem praticando pequenos actos de grande dignidade, como o homem que, apanhando crianças a roubar gravetos, lhes dá toda a lenha que eles consigam carregar...
A vida nunca é a preto e a branco, nunca é só uma cor. Mesmo agora, na Ucrânia, coisas muito bonitas podem acontecer ao lado de situações verdadeiramente trágicas. Esta procura por alguma coisa positiva, uma outra perspectiva, é um mecanismo de sobrevivência humano. Algo em que acreditar, algo a que nos podemos agarrar.
Falámos sobre a tua escola, que procurava emergir da «substância do tempo», mas o que é que aconteceu às crianças que frequentaram uma escola «sem valores»? As crianças de Onde as Peras Caem desaparecem, frequentemente , sem deixar rasto, são empurradas para a prostituição, são presas, raptadas, o livro arranca com um funeral infantil... Chegaram a integrar, de pleno direito, a sociedade georgiana?
Pode ser que algumas tenham conseguido alcançar uma vida normal, chamemos-lhe assim: ter uma família, um emprego, mas a maioria nunca chegou ao futuro. Um orfanato, principalmente aqueles que recebiam crianças com necessidades especiais (ou simplesmente abandonadas), eram espaços muito violentos. Viviam-se ali experiências traumáticas muito negativas. A maior parte daquelas crianças precisava de muito apoio, de muita ajuda, mas isso raramente aconteceu.
Foram uma geração perdida. Durante a guerra [a Guerra Civil da Geórgia, entre 1991 e 1993], após a queda da União Soviética, falharam muitas coisas.
A minha profissão [cineasta] é um bom exemplo. Em Cinema, o período mais importante na carreira de um actor é entre os 20 e os 30 anos. É de tal forma importante que depois deixa-se de poder fazer papéis de personagens mais novos. Ao impedir estes actores de trabalhar durante 15 ou 20 anos, as suas carreiras, e vidas, vão-se. É extremamente difícil encontrar actores masculinos com mais de 50 anos na Geórgia: a maior parte morreu ou tem graves problemas de saúde.
Todos os detalhes são importantes no livro: o pente que já perdeu a maior parte dos dentes, o espelho quebrado na casa de banho, o entulho no meio do pátio, de uma varanda que ruiu e que a ninguém ocorreu limpar. Sendo também cinematógrafa, e uma escritora muito visual, porque escolheu a Literatura?
Eu sabia que estas histórias eram reais, que tinham acontecido, mas que, no mundo em que vivemos hoje, já não seriam credíveis... Conheci estas crianças, que me falaram sobre a violência sexual a que foram sujeitas, joguei à bola com elas, estiveram em minha casa. Esta sensação esteve sempre presente, assim como a aparente irrealidade do cenário.
Escrevendo-a, materializando-a no papel, consegui ultrapassar esta sensação e acreditar verdadeiramente que era real, compondo-a através dos detalhes, os cheiros...
Não a conseguiria ter gravado, pelo menos eu não o faria. Fiz o livro e contei o que tinha para contar, não tenho qualquer desejo de o vêr no ecrã.
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