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O trabalho na/da saúde não é uma mercadoria

O SNS contratou em 2022 perto de 5,7 milhões de horas através da prestação de serviço de «tarefeiros». Número que subiu em 2023 para 6 milhões, dos quais 4,9 milhões são trabalho de médicos. 

Médicos no Hospital de S. João, no Porto 
CréditosEstela Silva / Agência Lusa

«Insistir em remunerações à hora, incentivando regimes de sobrecarga e perda de qualidade, revela enorme insensibilidade e espírito mercantilista que só pode complicar ainda mais a vida ao SNS».

Esta citação é de um artigo («SNS: os piores cegos…») do Dr. Jorge Amil Dias, médico pediatra, no Público de 26/08/2024.

Atrapalhação, aflição mesmo, é o que, em geral, sentimos com o «coro» partidário e mediático-«comentador» sobre a «falência», o «caos» do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Não é caso para menos. Como disse o seu fundador, o Dr. António Arnaut, sobretudo como a realidade nos tem mostrado (basta lembrarmo-nos da pandemia), apesar de insuficiências e falhas que há a colmatar e corrigir, o SNS é, no que a expressão mais pode ter de significado humano, social e político, «a jóia da democracia portuguesa». Portanto, em democracia e porque desta é condição determinante, uma «jóia» a «polir» (corrigir e melhorar) mas, sempre, em todas as perspectivas, a preservar e defender.

É certo que há situações (sobretudo, limitações de acesso ou mesmo fecho de algumas urgências em unidades de saúde de grande e diversa procura de cuidados) que, pelo seu impacto socio-mediático, tornam este coro dificilmente desmontável. Mas também é certo que na situação há não pouco de conjuntural (férias, feriados, ainda repercussões da pandemia) ou, pelo menos, de ordem organizacional. Aliás, no essencial, não é exclusiva de Portugal, havendo também problemas do género noutros países (com fortes serviços públicos de saúde) da União Europeia e não só (por exemplo, na França e na Inglaterra). 

De qualquer modo, sim, como o próprio Governo (o actual e os anteriores) tem reconhecido, há problemas estruturais a resolver no SNS.

Estando em causa questões de ordem profissional, organizacional, económica e política de uma área sobre a qual, a não ser como utente, «não conseguimos falar» – avisa-nos Wittgenstein –, «devemos calarmo-nos».

Contudo, reflectindo a partir deste artigo da autoria de alguém com a experiência e estatuto académico e profissional para escrever o que escreveu (sendo que não está sozinho, longe disso, nessa opinião qualificada), percebemos (mais) um exemplo do que, por formação e por profissão de dezenas de anos (e assim observador participante e privilegiado da mais ou menos inerente realidade), algo de ordem mais geral cuja convicção se nos foi cada vez mais enraizando: a centralidade social do trabalho humano.

Sim, como já se escreveu noutro local, também no/do Serviço Nacional de Saúde, «o trabalho tem um braço longo».1

Porém, tanto quanto a realidade nos sustenta e reforça essa convicção, indissociável da de que o trabalho é «apenas» aquilo (muito, incomensurável) que as máquinas não podem fazer, que se consubstancia nas pessoas que trabalham, é também essa realidade que nos deprime ao nos confirmar que, cada vez mais, progride um retrocesso social (porque económico-político e vice-versa) no reconhecimento do trabalho humano como estrutural e estruturante da sociedade.

«O trabalho não é uma mercadoria» continua a ser o primeiro dos princípios fundamentais da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT)2, de que Portugal é membro fundador, como subscritor, em 1919, do Tratado de Versalhes.

Mas, como no século XIX e até meados do século XX, em cuja questão social essa proclamação então mais visava incidir, não obstante o manto diáfano e cintilante da acelerada inovação tecnológica, o trabalho tende novamente a ser considerado pelo poder gestionário e, pior, pelo poder político (consciente ou inconscientemente, por acção ou omissão), como uma mercadoria. Como também já se escreveu noutro local.3 

«O trabalho tende novamente a ser considerado pelo poder gestionário e, pior, pelo poder político (consciente ou inconscientemente, por acção ou omissão), como uma mercadoria.»

Pelos vistos, no domínio da Saúde Pública, do SNS como serviço público, há disso algum exemplo, pois que, voltando a citar o Dr. Jorge Amil Dias naquele artigo do Público, resvalou-se para uma opção de «mercantilização» do trabalho dos profissionais na crescente (sub)contratação de empresas de prestação de serviços de «empreitadas» (lotes) de «horas médicas».

Segundo dados do Ministério da Saúde, nas horas realizadas por prestação de serviço por parte de «tarefeiros», se em 2022 o SNS contratou perto de 5,7 milhões de horas, no ano passado esse número subiu para os 6 milhões. Destes, 4,9 milhões dizem respeito a horas de trabalho de médicos. Com reflexo nos gastos associados, que passaram de 170 milhões de euros em 2022 para 203 milhões de euros em 20234.

Tendo em conta que no trabalho dos profissionais de saúde está em causa, por definição, a saúde (e daí, efectiva ou potencialmente, a vida) das pessoas que procuram cuidados de saúde, é preciso ter em conta as implicações nas condições sociais, organizacionais e mesmo operacionais-materiais de trabalho dos profissionais de saúde, inclusive no que essas condições se podem repercutir na qualidade e segurança do seu trabalho na prestação de cuidados de saúde a terceiros. E assim, não «só» nos utentes do SNS, mas também neles próprios, profissionais de saúde, quanto à sua (não) realização profissional e, mais grave, na sua responsabilização profissional e pessoal, eventualmente civil e criminal.

É que, para além de precarizante e escamoteadora da degradação das condições de trabalho e do fomento de desigualdades e de injustiças profissionais, porque para o bem e para o mal «trabalhar é sempre viver com os outros», esta opção político-gestionária suscita o risco de destruição dos colectivos de trabalho («equipas coesas e coordenadas … e não mera acumulação de 'contratados' ou 'tarefeiros' individuais», citando ainda o Dr. Jorge Amil Dias, naquele artigo do Público) e, mesmo, profissional e institucionalmente, o risco de perda de sentido de serviço público.

O próprio presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Dr. Xavier Barreto, é crítico da situação: «Nota-se que o sistema continua a ser muito dependente das horas extraordinárias e das prestações de serviço. Precisamos de ter uma visão mais estruturada nos próximos anos».5

«Tendo em conta que no trabalho dos profissionais de saúde está em causa, por definição, a saúde (e daí, efectiva ou potencialmente, a vida) das pessoas que procuram cuidados de saúde, é preciso ter em conta as implicações nas condições sociais, organizacionais e mesmo operacionais-materiais de trabalho dos profissionais de saúde (...).»

Em geral (em qualquer sector de actividade), não é raro que nas relações de subcontratação no confronto entre os interesses que se confrontam de parte a parte (no caso, entre as administrações das unidades de saúde contratantes e as empresas prestadoras do serviço de «fornecimento de horas médicas»), os direitos e valores humanos e sociais (e mesmo legais) dos trabalhadores que realizam o trabalho que garantam o produto ou serviço que é objecto (e objectivo) da subcontratação possam ser entendidos como uma «atrapalhação». E assim, de algum modo, ficarem «entalados» nessa relação entre quem os contrata mas não os emprega e quem (realmente) os emprega mas não os contrata.

Aqui, no caso do SNS, se bem que aos trabalhadores médicos ditos «tarefeiros» lhes assista a vantagem do forte poder negocial no contrato de trabalho ou de prestação de serviços com a empresa subcontratada pelo SNS que lhes advém da sua alta qualificação profissional de médicos (mais ainda se especialistas), esta pode ser, por sua vez, instrumento comercial das empresas de prestação de serviços que os contratam na relação de «empreitada» com o SNS.

Sem prejuízo do que de alguma maneira poderá condicionar concepções e decisões social e politicamente mais programáticas sobre a Saúde Pública, a perversidade destas situações exprime-se, do ponto de vista organizacional e laboral, na inibição, protelamento ou mesmo adiamento político-institucional da resolução de pelo menos uma questão de fundo, estrutural, que lhe subjaz: a reunião de condições para ser suprida a insuficiência ou desorganização de um quadro de pessoal de profissionais de saúde do SNS, nomeadamente de médicos, que permita responder à crescente e mais diversificada solicitação deste serviço público. 

Depois, para além disso e por implicação disso, do ponto de vista profissional, quanto aos profissionais de saúde do quadro do SNS, tal opção projecta-se negativamente nas suas condições de trabalho (em que sobressai a sobre-intensificação do trabalho, em duração e em ritmo), nas suas carreiras profissionais e nos seus salários, inclusive, quanto a estes, em injustiça se não mesmo discriminação salarial («para trabalho igual, salário igual», é um «direito fundamental» que constitucionalmente se mantém em vigor6). 

Ficam assim «entalados» entre a sua ética e deontologia profissional (a saúde do seu doente é a sua primeira preocupação), bem como de sentido de serviço público quanto à essência da missão do SNS (a qualidade, segurança e prontidão dos cuidados de saúde a prestar aos cidadãos) e as referidas consequências organizacionais e por implicação profissionais desta opção político-gestionária no SNS.

Claro que nisto, de facto, sai «atrapalhada» a Saúde Pública, porque – lá voltamos à centralidade social do trabalho –, para o bem e para o mal, «o trabalho tem um braço longo».

Apesar de económica e politicamente cada vez mais tender a (também) ser considerada como tal, pelas mesmas razões de que não o é o trabalho (a sua essência também são as pessoas), a saúde não é uma mercadoria.

Por isso, por maioria de razão, o trabalho na/da saúde não é uma mercadoria.

  • 1. «Serviço Nacional de Saúde: o longo braço do trabalho» – Público, 13/01/2018.
  • 2. Na redacção da Declaração relativa aos fins e objectivos da OIT (Declaração de Filadélfia) – 26.ª sessão da Conferência Geral da OIT, 10/05/1944.
  • 3. «O trabalho não é uma mercadoria» – Público, 04/01/2014.
  • 4. «SNS gastou 666 milhões com horas extras e tarefeiros em 2023. Custos subiram 65% em quatro anos». – Público, 26/03/2024.
  • 5. Ibidem.
  • 6. Alínea a) do Nº 1 do Artº 59º da CRP.

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