|António Bernardo Colaço

Sindicalismo militar em foco

Está demonstrado que o sindicalismo militar e a contratação coletiva não constituem um bicho de sete cabeças. Constituem realidades de alcance militar ao nível europeu cada vez mais vincadas.

CréditosAntónio Cotrim / Agência Lusa

Face à Queixa Coletiva n.º 199/2021 formulada ao Comité Europeu dos Direitos Sociais (CEDS) em maio de 2021 pela EUROMIL (Organização Europeia de Associações e Sindicatos Militares) v. Portugal, alegando violações da Carta Social Europeia (assinada por Portugal em 03.05.1991 e ratificada na sua versão Revista em 30.05.2002) devido a restrições aos direitos sindicais do pessoal militar, o Comité decidiu concluindo que Portugal está a violar – os artigos 5.º e  o n.º 2 do artigo 6.º da Carta. Esta decisão enfatiza que o pessoal militar deve ter pelo menos alguma forma de direitos sindicais e mecanismos de negociação coletiva, semelhante a outros trabalhadores da função pública, como as forças policiais. Na sequência do decidido, fica assim Portugal obrigado a alinhar o seu quadro jurídico com o ónus de: i) Reconhecer os direitos sindicais dos militares; ii) facilitar os mecanismos de negociação coletiva, com a garantia de poder negociar as condições de emprego através de um processo estruturado; iii) rever a proibição de direito à greve, avaliando a possibilidade de aplicação de restrições mais proporcionais, no quadro do § 4 do artigo 6.º da Carta e ; iv) o dever de Portugal apresentar um relatório ao Comité de Ministros sobre as medidas tomadas em cumprimento desta decisão, respeitando as recomendações do Comité. «A não adoção de medidas adequadas poderá resultar num acompanhamento contínuo e em pressões para que Portugal respeite os direitos consagrados na Carta».

Esta singela, mas significativa decisão da CEDS, enquanto órgão do Conselho de Europa, vem no seguimento da iniciativa tomada em 2018 pelas três APM – Associações Profissionais Militares (ANS, AOFA e AP legalizadas ao abrigo da Lei Orgânica 3/2001 de 29/08), no sentido de sugerir à EUROMIL a alteração da sua designação com o acréscimo do termo «sindicatos», proposta que foi adotada. Para as três APM, a figura jurídica de associativismo profissional vigente havia perdido o seu tempo de validade, estando já nesta altura obsoleta, principalmente por não corresponder ao direito do militar português a fruição da cidadania de corpo inteiro. Na verdade, sem pôr em causa o clássico «espírito de missão» na materialização de segurança nacional e disciplina militar, está demonstrado que, para se exigir dos militares, capacidade e dedicação no exercício das suas funções, impõe-se que se lhes reconheça a plenitude do direito de cidadania, sob pena de se atropelar o normativo do n.º 2. do artigo 275.º da Constituição. Para as APM, qualquer utilidade que este tipo de associativismo pudesse revelar havia desvanecido ante o rigor abusivo das restrições impostas às APM na prossecução dos seus objetivos estatutários, nomeadamente o de sujeitar os dirigentes associativos ao regime disciplinar por declarações proferidas, o não reconhecimento da sua legitimidade para representar os associados  contenciosamente e do direito de contratação coletiva, entre outros – tudo fruto de uma concepção anquilosada e não europeizada da condição militar.

«Na verdade, sem pôr em causa o clássico "espírito de missão" na materialização de segurança nacional e disciplina militar, está demonstrado que, para se exigir dos militares, capacidade e dedicação no exercício das suas funções, impõe-se que se lhes reconheça a plenitude do direito de cidadania, sob pena de se atropelar o normativo do n.º 2. do artigo 275.º da Constituição.»

Não admira por isso que a argumentação do nosso Governo apresentada em jeito de defesa no pleito n.º 199/2021, não tivesse o mínimo acolhimento. Na verdade, o que designava de «restrições» não passavam senão de verdadeiras «proibições», algo que, em matéria de direitos, liberdades e garantias é expressamente afastado pelo artigo 18.º da Constituição Portuguesa. Está demonstrado que o sindicalismo militar e a contratação coletiva não constituem um bicho de sete cabeças. Constituem realidades de alcance militar ao nível europeu cada vez mais vincadas, como é o caso de Holanda e Dinamarca (sindicalismo) e de Alemanha, Bélgica e Noruega (contratação coletiva), países onde não há notícia de quebra de disciplina ou de menor eficácia operativa dos militares por fruírem desses direitos.

Por tudo quanto acima fica dito, na audiência parlamentar da Comissão de Defesa Nacional concedida à EUROMIL, no dia passado dia 6, na pessoa do seu Presidente Emmanuel Jacob, e salvo sempre o devido respeito, não pode por isso deixar de se configurar de infeliz o entendimento do Sr. Deputado do Chega ao recusar ao militar português a qualidade de «cidadão em uniforme». Também o Sr. Deputado do PSD parece ter pretendido passar a ideia de o risco do sindicalismo militar vir a partidarizar-se ou politizar-se assim contrariando o disposto no n.º 4 do artigo 275.º da Constituição.

Salvo o devido respeito, não se pode nem se deve transpor para o mundo da realidade algo que não passa senão de um receio ou mera suposição. É sabido que todo o cidadão, individualmente considerado, é político. A realidade portuguesa tem demonstrado, porém, que o sindicalismo é, por via de princípio, uma organização coletiva de trabalhadores de quadrantes vivenciais e perspetivas mais diversas, o que à partida o coloca fora da esfera política e/ou partidária. É o caso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, do Sindicato dos Guardas Prisionais, da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal, da Associação Sindical dos Profissionais da Polícias, todos com um estatuto que aponta no sentido de não envolvimento partidário e de não envolvimento político. Porque sê-lo-ia um Sindicato Militar?


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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