O fascismo paira sobre a Áustria

No Parlamento de Viena, a extrema-direita «popular» e os fascistas genuínos dispõem agora de uma confortável maioria de 113 deputados em 183 (62%), não tão monopolizadora como a gémea da Hungria mas chegando e sobrando para as necessidades.

Sebastian Kurz
CréditosChristian Bruna/EPA / Agência Lusa

Na Áustria, país natal de Adolf Hitler, o partido fundado há sessenta anos pelos herdeiros do führer está prestes a entrar no governo pela mão de Sebastian Kurz, uma reprodução da «receita Macron» que tomou conta do Partido Popular e ganhou as recentes eleições com uma estratégia de comunicação da qual baniu a política e emergiu uma mensagem única: combater a imigração.

A exemplo de Macron, Kurz é um manequim de montra que fez da política uma guerra ao debate político e aos partidos tradicionais – poupando os fascistas do Partido da Liberdade (FPO) – prometendo a Áustria para os austríacos, o encerramento das fronteiras e acabar com o acesso dos imigrantes ao sistema social do país.

Em vez de criar um movimento de raiz, como fez Emmanuel Macron em França, Kurz reinventou o Partido Popular (OVP), no qual não deixou pedra sobre pedra: mudou a designação para Novo Partido Popular, trocou o negro por azul turquesa e apresentou-se às eleições gerais de 15 de Outubro como «lista Sebastian Kurz».

O resto da operação de marketing que o levou à vitória, com 31,6%, assentou numa estratégia de comunicação usando um dos mais populares animadores de rádio, conquistando a colaboração dos tablóides através de soundbites de laboratório, repetindo um discurso monocórdico e vago onde tudo cabe, monopolizando as redes sociais e rodeando-se de sósias todos na casa dos trinta anos e sem passado político.

«As palavras liberal, socialista, conservador não querem dizer nada hoje», dizem os seus assessores quando explicam o mote da campanha vitoriosa de um candidato com apenas 31 anos e que compõe a figura de um modelo de anúncio de perfume caro, resplandecente com gel no cabelo e roupa de marca seleccionada com rigor, conforme a ocasião.

«Decidi, consequentemente, iniciar conversações com o Partido da Liberdade», anunciou agora Sebastian Kurz depois de ter sido convidado a formar governo pelo chefe de Estado. É assim que começa a ganhar forma o assalto da extrema- direita fascista ao poder na Áustria depois de, há um ano, ter falhado por pouco a conquista da presidência.

Nesse ano, porém, tudo mudou: Sebastian Kurz tomou conta do Partido Popular, estilhaçou a chamada «grande coligação», aliança tradicional entre conservadores e sociais-democratas (SPO) – há muito convertidos à terceira via à moda de Blair –, na qual desempenhava o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros; e forçou a convocação de eleições gerais antecipadas.

Contados os votos da consulta, em 15 de Outubro, a «lista Sebastian Kurz» obteve 31,6%, contra 27% dos sociais-democratas e 26% do Partido da Liberdade de Heiz-Christian Strache. Ao invés do Partido Popular, o partido fascista não necessitou de qualquer rejuvenescimento, bastou-lhe ser como é, fiel aos seguidores de Hitler que nos anos cinquenta do século passado fundaram a organização.

«Sem Hitler, nem anschluss, nem invasões militares, pelo contrário, com a serenidade do voto, a cumplicidade passiva da União Europeia e a colaboração activa da NATO – o inimigo é, como sempre, a "ameaça russa" – a Europa caminha, de recuo em recuo, em direcção ao seu mais trágico passado.»

Parte do eleitorado tradicional social-democrata foi atraído pelo íman de Kurz, que também beneficiou da diminuição da abstenção. Os Verdes, que ainda há um ano elegeram o chefe de Estado, não conseguiram qualquer deputado.

No Parlamento de Viena, a extrema-direita «popular» e os fascistas genuínos dispõem agora de uma confortável maioria de 113 deputados em 183 (62%), não tão monopolizadora como a gémea da Hungria mas chegando e sobrando para as necessidades.

No quadro da simples aritmética, Kurz também poderia obter maioria parlamentar recorrendo aos sociais-democratas, uma saída que é excluída em todas as análises políticas com base em vários motivos, o principal dos quais é a ideia nem passar pela cabeça do chanceler indigitado.

Foi o próprio Kurz quem rompeu a coligação dos conservadores com o SPO, provocando eleições gerais; as afinidades dos «novos populares» são com os fascistas; os próprios sociais-democratas não aceitariam um convite no caso de, por absurdo, o vencedor o formular.

As negociações na área da extrema-direita são ainda uma incógnita, embora as duas formações partilhem o essencial: xenofobia, nacionalismo radical e economia neoliberal, um tema que não foi minimamente discutido nem posto em causa durante a campanha.

O Partido da Liberdade parte com um notável poder de exigência permitido pelos 26%, menos cinco pontos e meio que Kurz, e diz que pretende ver o seu programa político reflectido no governo.

O que está longe de ser um problema insolúvel. «Populares» e fascistas convergem no combate à imigração e também na outra grande linha de campanha, a redução acentuada do imposto sobre rendimento. Nenhuma das forças foi clara quanto aos métodos a seguir para cumprir esta promessa atraente, embora uma das vias tenha sido desvendada ainda durante a campanha: as poupanças geradas pela proibição do acesso dos imigrantes ao sistema público de segurança social.

Em Bruxelas ouvem-se vozes «inquietas» com a situação na Áustria, palavras proferidas apenas porque têm de ser ditas. Os dirigentes da União Europeia revelam-se sempre muito mais preocupados, por exemplo, com as décimas do défice em Portugal do que com a continuada conquista do poder pelos fascistas, nacionalistas e afins dentro dos 27.

Depois da Hungria, da República Checa, Estónia, Letónia e da Polónia, chega a vez da Áustria. Na Alemanha, um partido que só os púdicos evitam qualificar como fascista entrou pelo Bundestag com mais de noventa deputados.

Sem Hitler, nem anschluss, nem invasões militares, pelo contrário, com a serenidade do voto, a cumplicidade passiva da União Europeia e a colaboração activa da NATO – o inimigo é, como sempre, a «ameaça russa» – a Europa caminha, de recuo em recuo, em direcção ao seu mais trágico passado.

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