Na semana passada, na véspera e no dia do debate do «Estado da Nação» na Assembleia da República, a generalidade dos órgãos de comunicação social utilizou copiosamente o termo «geringonça», fosse para referir-se à solução parlamentar de suporte ao Governo, fosse para esmiuçar o estado da própria maioria, mais do que o da nação. Não é novidade.
Nos últimos meses, num crescendo desde Fevereiro, o termo tem vindo a generalizar-se nos Media, a tal ponto que quase não há dia em que não surja em pelo menos um título, uma ou mais vezes num texto e numas quantas legendas, pretendendo alcandorar-se a um estatuto de seriedade jornalística que não tem.
Os jornalistas sabem – ou deveriam saber – que as palavras têm significados muito concretos e que a clareza, o critério e a transparência numa escolha judiciosa das que utilizam na construção das suas notícias (a opinião é outro terreno…) são o melhor filtro do rigor e também da lealdade para com o público.
No entanto, consciente ou inconscientemente, a Imprensa nutre-se com frequência de uma semântica armadilhada, carregada de termos, expressões e conceitos coincidentes com a agenda ideológica da Direita, que compromete a sua independência e contribui para a degradação da vida democrática.
Veja-se, por exemplo, a entorse da consciência democrática que resultou a adesão acrítica dos Media a concepções exclusivistas e antidemocráticas como o «arco da governação», fazendo-os alinhar durante décadas na ideia de que a governação era uma espécie de coutada interdita às forças da esquerda, apodados de meros «partidos de protesto».
A questão está em saber se o discurso jornalístico apropria termos e conceitos apenas pelo seu tom «picante», o que traduz frivolidade irresponsável; ou se está capturado por tal agenda, o que suscita sérias reservas sobre a transparência dos seus métodos.
«Uma análise de conteúdo às intervenções dos deputados do PSD e do CDS-PP nas sessões plenárias de debate parlamentar mostra que o uso do termo "geringonça", desde a utilização inaugural, por Paulo Portas, então ainda como vice-primeiro-ministro acossado pela nova correlação de forças na Assembleia da República, possui uma evidente conotação depreciativa, senão mesmo politicamente pejorativa.»
O próprio jornal i, que terá sido o primeiro a vulgarizar nos Media a expressão «geringonça», teve necessidade de clarificar o termo, vazio de conteúdo: «À direita, usa-se o termo "geringonça" para descrever o governo apoiado pelas esquerdas» (18 de Março de 2016).
Muito longe de constituir uma aquisição consensual, o termo é património da Direita apropriado pela Imprensa, expressando com frequência, senão o desejo de que falhe, pelo menos baixas expectativas nas possibilidades de êxito da plataforma parlamentar, cuja legitimidade alguns editorialistas puseram em causa.
Alguns exemplos, recorrendo só aos jornais: «Não será desta que a geringonça vai implodir», escrevia o i (4 de Fevereiro) sobre as negociações para o Orçamento do Estado; «Bloco prepara day after da geringonça», titulava o Expresso (20 de Fevereiro) sobre a estratégia em caso de ruptura; «OE. Geringonça sobrevive à prova de fogo mas vêm aí sobressaltos», titulava o i (24 de Fevereiro); «O debate do possível Estado da Nação será hoje feito de várias incógnitas, verdadeiros pedregulhos na engrenagem da geringonça», escreveu o Diário de Notícias (7 de Julho); «Sociais-democratas testam resistência do PCP na ‘geringonça’», escreveu o Público em post-título (8 de Julho); «Teste de stress à “geringonça”: Orçamento acelera», titulava o Expresso (9 de Julho).
Apesar de apresentado com certa frequência, no campo jornalístico, como termo que pretende designar uma entidade institucionalizada [«Geringonça: como a esquerda quer repensar a Europa», titulava o Público na primeira página (24 de Junho), a propósito do resultado do referendo no Reino Unido], o termo tem origem e só se justifica no campo político.
Uma análise de conteúdo às intervenções dos deputados do PSD e do CDS-PP nas sessões plenárias de debate parlamentar mostra que o uso do termo «geringonça», desde a utilização inaugural, por Paulo Portas(1), então ainda como vice-primeiro-ministro acossado pela nova correlação de forças na Assembleia da República, possui uma evidente conotação depreciativa, senão mesmo politicamente pejorativa.
Há quem considere que a expressão acabou por ser acolhida com «simpatia» pela própria Esquerda, admitindo-a até como forma de tratamento «fofinho» da maioria parlamentar, e que mesmo deputados de esquerda passaram a usá-la. Não será bem assim.
Se relermos com um mínimo de atenção as suas intervenções, verificaremos que as raras vezes que tal palavra surge na boca de deputados da maioria adopta um registo claramente irónico («Os senhores deputados do PSD e do CDS andam muito entretidos com a palavra “geringonça”», João Galamba, PS, sessão de 18 de Dezembro de 2015); ou é utilizada na contra-argumentação política («Dessa geringonça que os senhores da direita fizeram em relação à TAP», Bruno Dias, PCP, sessão de 9 de Dezembro de 2015).
Insistir no uso e abuso de expressões que pertencem ao território do debate político, como se fossem neutras ou consensuais, pode dar a alguns a ilusão de uma linguagem criativa, desinibida e ousada. Mas não deixa de manter o discurso jornalístico refém de códigos e de propósitos que deveriam ser-lhe alheios.
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