Na berma da estrada nacional, à porta da empresa, pela manhã cedo, aguardam as guias de remessa para carregar os camiões, com os quais não podem entrar nas instalações «por causa da pandemia». São dezenas de homens, bem dispostos, despidos de veículo, que mal nos veem aproximar desdenham com graça: olha, lá vêm eles, deve haver eleições, eu nem voto aqui, ó amigo eu não ligo nada a isso da política.
Um deles, de pé, em cima de um pequeno muro, insiste que não vota aqui no concelho. Mas trabalha. Todos os dias, percorre esta estrada e todos os dias vê-se obrigado a estacionar o camião numa berma. A empresa onde carrega a carga (combustível) não está muito preocupada e a que está lá no outro concelho, onde mora e onde está o patrão, não vê.
Acabou por ficar a falar connosco, com uma consciência de classe rara. Afinal, lá estava ele a falar de política. Não falava como se os seus problemas fossem só seus, não se vitimizava nem estava ali para atribuir culpas. Limitava-se a demonstrar as limitações e contradições de um sistema que lucra mais quanto menos trabalho com direitos houver.
«Estes trabalhadores e as suas circunstâncias, as condições de trabalho e as respetivas condições de vida familiar, social e cultural, não são objeto de interesse pela comunicação social ou por outros espaços de debate político ou de opinião. »
Este não é, de maneira alguma, um caso isolado. São dezenas, as empresas do concelho onde moro e onde desenvolvo a minha atividade política e associativa, nas quais as condições de trabalho, de transportes e de salubridade denunciam bem a natureza do modelo económico em que vivemos. Muitos destes trabalhadores deslocam-se a pé porque não há transportes que liguem as suas áreas de residência ao centro das cidades onde trabalham, muitas vezes no próprio concelho.
Enfiados dentro de grandes armazéns descaracterizados, estes trabalhadores e as suas circunstâncias, as condições de trabalho e as respetivas condições de vida familiar, social e cultural, não são objeto de interesse pela comunicação social ou por outros espaços de debate político ou de opinião.
O clima de agressividade para suprimir direitos aos trabalhadores no meu concelho reflete-se em empresas que acionam processos disciplinares porque os trabalhadores não conseguem cumprir objetivos, mesmo após um período de doença que lhes condicionou a disponibilidade física; nos contratos temporários e na precariedade que serve de ameaça constante; nos baixos salários; e, sobretudo, na descredibilização da luta organizada.
Quando chegam a casa, a estes trabalhadores restam já poucos espaços de sociedade: os bairros, muitos deles, estão desprezados e dependentes da vontade das autarquias; a vizinhança já não quer saber e pouco tempo dedicam a reconstruí-la.
Finalmente, sentados no sofá ou à mesa, ligam a televisão para ver as notícias e, se tiverem a mesma sorte que eu, apanham uma reportagem da RTP sobre uma empresa que permitiu aos trabalhadores ver o jogo da seleção, porque a sua CEO acredita que um bom ambiente de trabalho é a chave do sucesso, tal como havia aprendido no MBA. No fim do jogo, arruma-se a casa e volta-se ao turno. Afinal, não iam sair mais cedo porque é preciso continuar a produzir.
«Sozinho, em casa, o trabalhador pode pensar que aquela realidade alternativa que está a ver na televisão ou é uma provocação ou é um sinal de que a sua indignação diária é um problema exclusivamente seu, que está sozinho e que, na verdade, tudo na sua vida é inevitável.»
Talvez tenham tido a felicidade de ver a reportagem sobre os nómadas digitais, onde se romancia uma vida na estrada com wi-fi e Mbway, a opção de viver fora dos padrões da sociedade de consumo imediato, nas suas carrinhas adaptadas ao lifestyle, nos alojamentos locais e projetos biológicos que vieram alterar de forma revolucionária a vida das cinco pessoas que ali aparecem, como se toda a outra parte deste jogo – a população que sofreu com a desertificação ao longo de décadas – fosse mera figurante e assistisse deslumbrada à sofisticação destes escolhidos do séc. XXI, que vivem do ar.
E se conseguiram chegar ao fim do noticiário, em esforço, ainda viram mais uma reportagem no serviço público de televisão sobre uma empresa monopolista portuguesa que decidiu entrar no negócio das nozes, em Évora. Sobre as condições de trabalho dos tais cem postos que prometem criar, – numa região que ainda há semanas deu a conhecer ao país da 2.ª Circular que a escravatura ainda é uma prática –, sobre a forma como vão engolir os pequenos produtores de nozes da região e monopolizar toda a grande distribuição, sobre tudo isso, nada, absolutamente nada.
Sozinho, em casa, o trabalhador pode pensar que aquela realidade alternativa que está a ver na televisão ou é uma provocação ou é um sinal de que a sua indignação diária é um problema exclusivamente seu, que está sozinho e que, na verdade, tudo na sua vida é inevitável. Talvez, até, a indignação com a polémica que o editor escolheu para abrir o jornal, a frase polémica do ministro ou o bate-boca, também polémico, sobre o que é ou deixa de ser politicamente correto, sobre o que é ou não a liberdade de um destacado membro das elites dizer o que bem lhe apetece em canal aberto ou numa coluna de jornal, sobre o político corrupto que ainda há dois anos era querido nos salões de festas da burguesia, talvez apenas isso seja a denúncia com que poderemos contar e na qual iremos projetar a nossa revolta.
Mas, todos os dias, voltamos a ligar a televisão para «ver as notícias». É este o veículo mais acessível à informação sobre o que se passa no País e fora dele e aquele no qual ainda depositamos a esperança de ver escrutinar os abusos do poder. Se os trabalhadores reconhecem nos media um poder de denúncia das grandes injustiças, quando ligam a televisão e não veem a sua luta diária e permanente espelhada nos noticiários, comentada por especialistas e motivo de «debate esquerda/direita», ficam a acreditar que a luta é inconsequente, que os políticos só querem saber de taticismo para a disputa dos lugares de poder.
«Dez minutos depois, já pouco se fala dos «políticos» e é ele que conduz a conversa entre o valor do salário, as horas que tem de fazer ao volante, a mentira sobre o fim das diuturnidades, os truques do patronato, o lucro do patrão, a mais-valia.»
Essa falta de relevância que a invisibilidade mediática sugere não é real. Ela é uma estratégia declarada de apoio ao modelo económico que protege o estatuto de poucos e que promete um bilhete dourado a tantos outros que aspiram a uma vida desafogada, com acesso aos bens de consumo que confirmam o seu estatuto – a casa, o carro, as férias, os vinhos e outras mercadorias que lhes são vendidas como exclusivas e os fazem sentir especiais. Este é o grande motor da divisão da classe trabalhadora – a ilusão de classe.
O sol vai nascendo enquanto a conversa com o camionista na berma da estrada nacional continua. Dez minutos depois, já pouco se fala dos «políticos» e é ele que conduz a conversa entre o valor do salário, as horas que tem de fazer ao volante, a mentira sobre o fim das diuturnidades, os truques do patronato, o lucro do patrão, a mais-valia. Ali, tudo aquilo sobre o qual todos se deviam questionar é relatado de uma forma simples por um homem que diz não gostar de política. Ali, como à porta de outras empresas, o discurso antipolítico choca com a natureza política das escolhas que afetam o quotidiano destas mulheres e destes homens que, lá bem no fundo, sabem que podem paralisar tudo.
Na despedida, sugerimos que procurasse o sindicato, para transformar aquela revolta em luta consequente. Hesitou, primeiro, porque isso implicaria descontar um valor do salário e o patrão descobriria. Garantimos que havia outras formas de pagar as suas quotas e então parou ali por uns momentos a pensar. Despediu-se de nós como quem já é cúmplice e não mais uns desses que são todos iguais. A euforia inicial transformou-se em seriedade introspetiva e seguimos cada um para seu lado, para mais um dia de trabalho.
Até breve, dissemos. Cá estaremos.
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