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Washington monta guerra colonial na América Latina

Sendo Elliot Abrams o enviado especial norte-americano para a entronização de Guaidó e o derrube de Maduro, a presença de Roger Noriega numa reunião sobre o uso da força militar na Venezuela significa que a sua realização tem de ser levada a sério.

A 4 de Agosto de 2018, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, escapou ileso a um atentado
Créditos / thegrayzone.com

Os acontecimentos sucedem-se em cascata nos últimos dias tendo como alvos a Venezuela e, por arrastamento, a Nicarágua e Cuba – a «troika da tirania», citando o triunvirato fascista que comanda Trump: Michael Pompeo, John Bolton e Michael Pence. Os movimentos militares não estão apenas em cima das mesas de conspiração, conforme reconhece a própria CNN, as sanções económicas e políticas multiplicam-se, as ondas de choque extravasam em muito a região latino-americana e desconcertam até alguns dos mais fiéis súbditos de Washington, como a União Europeia.

A CNN, citando fontes próprias do interior do establishment norte-americano, revelou a existência de actividades militares orientadas para a América Central e do Sul resultantes da coordenação do Estado-Maior conjunto do Pentágono com o Comando Sul (SouthCom), aprofundando a interacção com países vizinhos – sobretudo Colômbia e Brasil. De acordo com as mesmas fontes, trata-se de dissuadir a alegada penetração da Rússia e da China na região, que recentemente o secretário de Estado, Michael Pompeo, qualificou como «uma provocação», além de, imagine-se, uma «ingerência nos assuntos internos» da Venezuela.

Tais razões serão válidas apenas para consumo propagandístico e agitação de fantasmas; porque, em termos práticos, o que continua a ganhar forma, depois do espaço dado à vocação «humanitária», são os preparativos de uma agressão militar norte-americana contra a Venezuela, que Washington continua a preferir por procuração, isto é, através de exércitos e mercenários alheios. As movimentações militares, especialmente navais, serviriam de enquadramento das operações ofensivas e teriam igualmente cariz intimidatório.

Os sinais de reactivação da «opção militar coincidem com os fracassos sucessivos de outras formas de desestabilização da Venezuela testadas desde que o vice-presidente dos Estados Unidos, Michael Pence, telefonou a Juan Guaidó para este se autodesignar «presidente interino» da Venezuela, em 23 de Janeiro.

Um mês depois, registou-se o falhanço estrondoso da intervenção contra Caracas a partir da Colômbia, sob capa de «ajuda humanitária», que acabou por se virar contra os promotores e deixar Guaidó em maus lençóis perante os patrocinadores de Washington.

Mais recentemente, em 6 de Abril, esteve programado o início de um «levantamento de massas» através da Venezuela, que deveria ir ganhando projecção e manter-se até à queda do governo eleito de Nicolás Maduro. Foi montada uma rede de células que deveria agitar manifestações em todo o país, mas tudo indica que a operação morreu no ovo: a resposta «das massas» está longe de ter o vigor ambicionado.

A conspiração de Washington

A perspectiva de novo fracasso parece ter esgotado a já pouca paciência de Washington. Em 10 de Abril, as estruturas conspirativas norte-americanas montaram uma «mesa-redonda» na capital federal, sob a capa do Centro de Estudo Estratégicos e Internacionais (CEEI), com um ponto único na ordem de trabalhos: «Avaliar a utilização da força militar na Venezuela».

A reunião deveria ter sido «privada», o que de facto aconteceu, mas o jornalista de investigação Max Blumenthal logrou acesso à lista de participantes – honrando a liberdade de imprensa e provando que a luta dos jornalistas dedicados à investigação e à busca da verdade foi ferida mas não liquidada com a prisão de Julian Assange.

A «lista de participantes» expõe uma autêntica associação de malfeitores, um conluio de índole mafiosa, gente para quem «a mudança de regime na Venezuela só é possível castigando a população», o que «não tem qualquer importância» – segundo palavras anteriormente proferidas por um dos presentes, o embaixador William Brownfield.

Desconhece-se o teor das intervenções na reunião sobre a intervenção militar na Venezuela. Mas averiguando o que pensam os conspiradores, pelo menos os principais, ficaremos com uma noção do que foi dito e preparado.

O já citado William Brownfield foi embaixador dos Estados Unidos na Venezuela a seguir ao golpe de 2002 contra Hugo Chávez e não descansou um momento no ataque à democracia venezuelana, sucessivamente como membro das administrações de George W. Bush, Obama e, agora, Trump. «Mais do que um narco-Estado, a Venezuela é um Estado mafioso», considera Brownfield. Por isso, «a melhor solução é acelerar o colapso, nem que produza um período de maior sofrimento durante meses, talvez anos».

Não será descabido supor, perante este tipo de afirmações, que o «combate ao narcotráfico» venha a ser um dos argumentos a brandir para justificar uma agressão militar contra a Venezuela. Já não seria a primeira vez, conhecendo o tipo de alegações que conduziram à invasão do Panamá e até do Afeganistão, país onde, desde a instalação da NATO, o comércio de estupefacientes floresce como nunca. O que acontece também com um dos grandes aliados norte-americanos na América Latina, a Colômbia, um narco-Estado que não necessita de ser invadido porque Washington já está presente e tirando proveito.

Uma reunião que não foi académica

Olhando a lista de participantes na reunião promovida em 10 de Abril, deduz-se que a intenção de «avaliar a utilização da força militar na Venezuela» fica muito aquém do que efectivamente se passou. Tratou-se muito provavelmente de uma reunião operacional, pois figuras como o almirante Kurt Tidd, o embaixador Brownfield ou o terrorista Roger Noriega não são pessoas de perder tempo e gastar experiência com debates académicos. E a presença de membros em funções no Departamento de Estado de Pompeo, como Stephen Dreikorn e Keith Mines, de um alto quadro do Conselho Nacional de Inteligência como David Tapia, de três representantes da USAID, uma agência da CIA para mudanças de regimes, além de vários «assessores» da equipa usurpadora de Juan Guaidó indiciam um estado mais avançado de preparação do que uma simples troca de opiniões. Sem esquecer o significado da presença de delegações oficiais representativas da Colômbia e do Brasil.

O almirante Kurt Tidd foi, até há quatro meses, o comandante do Comando Sul das Forças Navais norte-americanas (SouthCom), com tarefas de controlo sobre a América Latina.

A sua presença numa reunião deste tipo tem enorme importância, não há outra interpretação possível; porque se trata de alguém com anos de práticas desestabilizadoras e intimidatórias contra a Venezuela, incluindo planos golpistas organizados como o que esteve previsto para 2016 e foi frustrado pela Revolução Bolivariana.

«Há que continuar a manipular o cenário em que a Venezuela ‘está à beira do colapso e da implosão’, reforçando a matriz mediática que liga a crise eléctrica à responsabilidade exclusiva de Maduro», incitou o almirante em ocasiões anteriores, que não estão, porém, desactualizadas. A multiplicação de actos terroristas para provocar apagões que afectam a Venezuela é actual e provavelmente continua a ser testada não apenas para minar a situação interna, mas também para ser uma arma em situação de agressão militar.

O terrorista Noriega

A presença de uma figura como Roger Noriega na reunião de 10 de Abril, ainda que na discreta posição de representante do American Enterprise Institute, é todo um programa de conspiração operacional.

Noriega é um intervencionista veterano dos tempos do escândalo Irão-Contras, um braço executivo de Elliot Abrams no apoio a grupos de mercenários e esquadrões da morte patrocinados pelos Estados Unidos para lançar o terror contra as revoluções na Nicarágua e em El Salvador nas duas últimas décadas do século passado.

Sendo Elliot Abrams, actualmente, o enviado especial norte-americano para a entronização de Guaidó e o derrube de Maduro, a presença de Roger Noriega numa reunião sobre o uso da força militar na Venezuela significa que a sua realização tem de ser levada muito a sério.

Os planos contra Caracas desenvolvidos sob a alçada do almirante Kurt Tidd prevêem desde sempre o recurso a mercenários e esquadrões da morte que, para o efeito, continuam a ser preparados nas bases norte-americanas de Tona e Tolemaida, na Colômbia.

Perante os acontecimentos em cascata que se têm sucedido nos últimos dias, torna-se evidente que Roger Noriega reaparece agora como uma peça-chave dos planos de Pompeo, Bolton e Adams para a América Latina – e que vão além da Venezuela.

O recentíssimo reforço das sanções contra a Nicarágua e, sobretudo, contra Cuba representam o agravamento de uma filosofia colonial intervencionista no «quintal das traseiras» e que tem vindo a ser considerada como a restauração plena da velha Doutrina Monroe. À luz da qual, obviamente, quaisquer apoios a países da região por parte de potências como a China e a Rússia são «provocações», como já declarou Michael Pompeo, o secretário de Estado e ex-director da CIA.

«Os acontecimentos dos últimos dias em relação à América Latina [...] colocam, afinal, um dilema à União Europeia: reage à doutrina colonial de Washington ou continua, como até aqui, a sustentar uma figura golpista e cada vez mais desacreditada como Guaidó?»

Além de antigo e actual colaborador próximo de Elliot Abrams na definição da estratégia terrorista contra a Venezuela, existem outras poderosas razões para considerar relevante o papel de Noriega em tudo o que está a passar-se na América Latina. Ele foi exactamente um dos autores da lei anti-cubana Helms-Burton, em 1996, agora restaurada em todo o seu articulado para agravar as sanções contra Havana.

Existe uma unidade estratégica na política de Pompeo, Bolton e Adams para a América Latina. E Roger Noriega é um dos elementos fulcrais da equipa que a desenvolve e aplica. Por isso, a sua presença na reunião de 10 de Abril, juntamente com o almirante Kurt Tidd e o embaixador William Brownfield, confirma o carácter operacional desta.

Roger Noriega, o terrorista que em tempos lamentou o facto de «os Estados Unidos se terem enganado ao não dar a devida importância a Hugo Chávez», defende que a mudança de regime é a única opção a tomar em relação à Venezuela. «Quando existe um regime cruel, não há outra solução», afirma.

A restauração plena da chamada Lei Helms-Burton é mais um reforço do bloqueio contra Cuba mas afecta também numerosas empresas e importantes negócios de outras regiões e entidades, incluindo a União Europeia.

Ora a União Europeia tem-se identificado com a estratégia latino-americana do triunvirato fascista que envolve Trump. O alargamento dessa estratégia a vários países, designadamente Cuba, afecta ainda mais directamente vastos e importantes interesses da União Europeia. Interesses que realmente contam para Bruxelas, como os dos negócios privados e das propriedades e lucros das empresas.

A imprensa espanhola revelou que a alta representante para a política externa da União Europeia, Federica Mogherini, escreveu uma carta para a Casa Branca garantindo que Bruxelas fará queixa dos Estados Unidos à Organização Mundial de Comércio se a aplicação da lei de Noriega contra Cuba for até às últimas consequências. O cenário resultante desta demanda europeia, se for concretizada, poderá criar atritos muito sérios entre a União Europeia e Washington.

Resta agora saber se este rasgo de «atrevimento» de Mogherini segue os seus trâmites ou não passará de um papel perante o qual Trump irá rir-se às gargalhadas.

Os acontecimentos dos últimos dias em relação à América Latina, incluindo a reunião de guerra efectuada em 10 de Abril, colocam, afinal, um dilema à União Europeia: reage à doutrina colonial de Washington ou continua, como até aqui, a sustentar uma figura golpista e cada vez mais desacreditada como Guaidó?

Tendo em consideração os antecedentes próximos ou afastados e o que está em jogo – não apenas regionalmente –, é difícil acreditar que Bruxelas chegue a desafiar Washington. Nada faz prever que tenha chegado o dia das surpresas.

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