Ainda não sei bem onde irei este ano, mas sei que não vou à Cornucópia

Além daquilo que foi destruído devemos também recordar, neste tempo de frustes balanços e esquecimentos cientificamente planificados, aquilo que não chegou a nascer. E aquilo que poderia ter sido esmaga-nos.

CréditosTak Wing / CC-BY-SA-2.0

Abdicamos da memória e da criatividade, isto é, de nós próprios, quando julgamos que somos apenas o que fazemos, ou seja: o que nos mandam e possibilitam fazer, esquecendo que do que somos e fomos, também consta o que então planeámos e sonhámos. O que não viu a luz. Há mais mundos, como dizia o outro.

O que aqui se diz parece conceptual, mas estamos a falar de coisas bem concretas, como a dotação orçamental para a cultura, que determinou tanto do que não vimos, não escutámos, não sentimos, não aprendemos: do que não pudemos ser nos últimos anos. E assim continua. Por isso, para começar bem o ano vou começar por reencaminhar a oportuna carta aberta «Um por cento do Orçamento do Estado salvaria mil Cornucópias».

No blog desta iniciativa propõe-se o envio de mensagens ao Primeiro-Ministro. É boa Ideia! Tal tem sido a reivindicação do Manifesto em Defesa da Cultura. E como programa de trabalho para as gerações novas parece-me que é de não largar. E ficamos conversados. Parece que há sempre quem resiste, não é?

Nos últimos anos lembrei-me muitas vezes de um conto que o mestre Eça de Queiroz deixou inédito, porventura com medo de ser incompreendido. Ou desamigado. Chama-se «A Catástrofe» e relata um país conformista e amodorrado: um país que não se respeita a si próprio nem estuda o seu passado e o que nele há e haja de inspirador, que não confia em si próprio, nem nas suas capacidades nem no seu futuro e deixa dissipar as cornucópias de prosperidade, beleza e ousadia que as sortes lhe vão logrando. E depois um dia é violentamente invadido por uma potência estrangeira organizada e disciplinada (pode ser uma qualquer à escolha. Neste queirosiano caso em apreço eram mesmo as germânicas legiões): bandeiras estrangeiras nos edifícios públicos, sociedade altamente vigiada, abolição dos feriados nacionais (foi o Eça que escreveu, não estou eu para aqui a inventar um absurdo desses).

A resistência é parca e esmagada. Mas o que vai suceder neste perturbador escrito é que, lentamente, as interditas patrióticas festas começam a celebrar-se no remanso dos lares e em clandestinas amizades, as crianças filhas e netas dos invadidos ganham uma curiosidade maior sobre os feitos do seu antigo país agora lembrado com orgulho e saudade, e um sonho de regeneração invade os corações.

Esta história de um patriota, como lhe chama o seu autor, termina com uma abertura de esperança, dando a entrever que os novos iriam dar a volta à situação e, redescobrindo-se, reconquistar o seu país. Eça almejava, como afirma em carta ao Ramalho Ortigão, que o desconvenceu de publicar a radical prosa, dar um grande choque eléctrico ao enorme porco adormecido (refiro-me à Pátria). Esta ideia assombrava tanto Queirós, que já n'«Os Maias» exclamara pela boca do Ega: «Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia…»

Já proposta neste roteiro, que vai longo, a intervenção cívica e a literatice, passemos a coisas mais modernaças: séries de televisão. E não é que lá na América, para além da Trumpobama, como diz o nauta Délio, também há quem tenha pensado o mesmo que o Eça? Vejamos: Estamos em 1962 e um escritor grande lança um livro em que descreve o quotidiano desse país, nesse tempo: os vendidos e os vendedores, os resistentes e os opressores. Nada de muito diferente do habitual, com a única diferença que a Segunda Grande Guerra foi ganha pelo Eixo e os EUA invadidos por alemães e japoneses que governam com a absoluta delicadeza que já imaginamos.

Esta ucrónica distopia serve como aviso para os cruzamentos da história, aqueles em que isto pode mesmo dar para o torto… Até o Adolf está vivo neste pesadelo e habita um castelo que dá nome ao livro e à série. O escritor é o Philip K. Dick e a adaptação televisiva intitula-se «O homem do castelo alto». A primeira temporada é impressionante. Diz que que já saiu a segunda.

Deixando agora a catástrofe e consolando-me num quotidiano bem mais respirável, convido os meus amigos do Norte a passarem no Ateneu Comercial do Porto este dia 3 de Janeiro, pelas 18h30, onde se realiza um debate intitulado «Galiza e Portugal – qual (quais) fronteira(s)?», promovido pela livraria portuguesa e galega Orfeu, de Bruxelas, com Joaquim Pinto da Silva (seu director), Ana Miranda (da Palavra Comumartes e letras da lua nova, uma óptima revista electrónica de cultura, redigida na nossa língua galaico-portuguesa) e Ramiro Torres (do Parlamento Europeu). É que sobre isto de identidades e fronteiras convém lançar constante luz e questionamento, para evitar o tal choque eléctrico.

Em Lisboa, nesse mesmo dia, porque estamos na regularíssima primeira terça-feira do mês, realiza-se a imperdível «Tertúlia de Banda Desenhada», na Casa do Alentejo. O programa está ainda em gestação mas o convidado Especial será o Sérgio Marques e ainda se fará a apresentação de «Hotel Hell», de André Mateus e Pedro Mendes.

Ainda em Lisboa, fui à Feira da Ladra no outro Sábado e vi à venda imensos fragmentos de azulejo, uns em melhor estado do que outros, mas todos à sua maneira belos. Eles dão conta do desleixo, da incúria e do roubo, das casas devolutas que foram palácios da fidalguia transacta, mas também das recentes transformações da cidade, da transformação do centro em algo de artificial, das tascas disfarçadas de assépticos balcões de bancos e da maresia do Tejo tornada ar condicionado.

Não só por isto vale a pena visitar o injustamente subestimado Museu do Azulejo, na Rua da Madre de Deus, mas a cidade não é apenas museu nem a queremos parque temático… das nobres paredes se extraem os azulejos para vender como se arrancam os velhos do centro histórico de que eram e são a memória e a que dão uma autenticidade que se anda a tentar transformar em marca registada ou a vender às postas em franchise; os velhos andam a ser expulsos para a periferia para que as suas casas sejam alugadas aos turistas ou transformadas em coisas turistificáveis.

Mas os turistas também não são burros e quando Lisboa perder a patine vão para outro lado procurá-la. É por isso que na base do turismo não está só a sardinha, mas toda a dita cultura e nisto voltamos ao princípio da conversa, já feita roteiro, ou crónica, sei lá. Este tema tão lisboeta, mas afinal próprio de uma dinâmica económica mundial, vai ser abordado num filme brasileiro já multi-premiado do Kléber Mendonça Filho, chamado «Aquarius», que estreia a 12 de Janeiro entre nós.

A presença de Sónia Braga já seria argumento, mas pensar que nele se assumem com candura e firmeza as questões do envelhecimento, da transformação do património das cidades em incaracterísticas funcionalidades que o tempo apagará e da luta pela dignidade do nosso habitáculo mais nos farão a todos ir à estreia. E ainda deixo um bem-haja a estes Artistas pelo protesto cívico perante a ofensiva brasiliense dos últimos meses que a equipa do filme teve no festival de Cannes. Foi justo o brado. E lançou sementes que um dia vingarão.

Voltando a Lisboa, no dia 18 de Janeiro – mas neste dia relembro sempre a heróica Marinha Grande, 1934! – ao fim da tarde, recomeça o ciclo de conferências mensais sobre poesia no Museu da Música (Metro Alto dos Moinhos). O primeiro orador é Miguel Tamen que vai evocar João de Deus. O da «Cartilha».

Ainda voltando à literatura, não esqueçamos mais para o fim do mês o dedicadíssimo, e sem cartilhas, António Cândido Franco, que vai lançar mais um libertário número da sua revista Ideia que tem em alvo as coisas surrealistas. A apresentação vai ser no imprescindível Museu do Aljube a 28 de Janeiro. Promete-se, como sempre sucede com o trabalho do António, Poesia, liberdade e aventura.

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