|Enciclopédia da Vida Sexual

«Eras capaz de amar alguém, que…»

O AbrilAbril esteve à conversa com Pedro Gil, criador da Enciclopédia da Vida Sexual, uma comédia amorosa e existencialista, que se estreia dia 26 de Março, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. 

CréditosJoão Gambino @wugamb / Razões Pessoais

«Tinha prometido a si mesma que não voltaria a acontecer, mas aconteceu. Apaixonou-se de morte por um monogâmico convicto. Com receio de o perder esconde-lhe que não é monogâmica, traindo assim a sua própria família.» A sinopse do último trabalho da companhia de teatro Razões Pessoais desvenda a ideia fundadora da comédia de portas de construção colectiva, mas está (intencionalmente) muito longe de tudo o que o espectador vai conseguir ver, sentir e questionar ao assistir a esta Enciclopédia da Vida Sexual

«Já imaginaram um mundo em que não fosse preciso escolher?», «O que é para ti amar?», «Eras capaz de amar alguém, que…», o exercício apresenta-se descontraído, mas existencialista. Afinal de contas, também no poliamor existe compromisso, traição, ciúme, dúvida, mentira. A par disso, o trabalho de Pedro Gil e do grupo de actores que sobem a palco acrescenta uma dimensão de triângulo amoroso que não estamos habituados a ver, um ingrediente que permite falar de família, amor, sexo, escolhas e, assim, da forma como nos organizamos social e familiarmente.

O AbrilAbril assistiu a um ensaio, ainda nos estúdios da Companhia Olga Roriz, no Palácio Pancas, em Lisboa, após o qual falou com Pedro Gil, criador e encenador, que nesta história veste a pele de Tomé, mas não apenas. 

CréditosCatarina Pereira / AbrilAbril

Com esta Enciclopédia da Vida Sexual há uma tentativa de desconstrução social ou é só pegar no que a vida já dá?

O poliamor existe, não é? E famílias poliamorosas existem. É pouco comum, se calhar todos nós conhecemos exemplos de coisas avulso, conheço aquela pessoa que tem dois amores, conheço aquela pessoa que chama filho a uma pessoa que não é seu filho, sei lá, temos avulso, mas existe, apesar de residual. E até podemos pensar que vivemos em estruturas poliamorosas. Normalmente não implicam sexo com outras pessoas, quando implicam são traições, mas no fundo nós vivemos em estruturas poliamorosas em termos de amizade, de família, etc. 

Só que aqui, o poliamor, mesmo levado a sério, acrescenta esta dimensão sexual. No fundo, liberta-nos desta condicionante que é o facto de na monogamia só podermos fazer amor com uma pessoa, ou então quando fazemos com outras é traição, não é? E todos os dramas, mil histórias, que daí advêm, portanto, acabou por ser uma história que nasce desta outra possibilidade, com a graça de, no fundo, isso também não invalidar o problema que vem a seguir. Apesar de ser uma família poliamorosa, há um drama normal como em qualquer outra relação, porque existe o amor também, existe o compromisso, existe traição na mesma, existe fim de relação. Há mais pessoas, mas, eticamente falando, são relações que têm o mesmo tipo de perfil. 

Fala-nos do processo criativo.

Eu trabalho com os actores num projecto que nós chamamos de Estúdio de Criação, em que vou trabalhando matérias, questões, também questões cénicas, portanto, é uma pesquisa tanto ao nível da construção de ficções, como também da própria matéria teatral. A certa altura aparece de facto a história, depois eu pesquiso dentro da própria história com actores e também sozinho, na escrita. E depois percebo: «Ok, tenho um espectáculo que acho que vai mesmo acontecer, tem pernas para andar».

Pedro Gil  CréditosCatarina Pereira / AbrilAbril

Nesse momento de não retorno, de «Vamos mesmo avançar com isto», aí escrevo sozinho, mas houve muita experiência feita antes. Digamos que é como se eu também encenasse para escrever. Há uma materialidade que surge no espaço de ensaio que me faz conseguir escrever. Escrevo e volto a ver com os actores, lemos, reescrevo. É um processo muito promíscuo. Há um momento de escrita muito compacto e solitário, mas é precedido de pesquisa no estúdio de ensaio, e tudo o resto que é estar vivo, ler e ver coisas, ver filmes, o que for. Enquanto pessoa que faz histórias não tenho a pretensão de ser… se há um cozinheiro em cena, não tenho a pretensão de dominar a culinária ou de sequer saber cozinhar, por exemplo. A ficção também é uma arte do engano nesse aspecto. É tudo forma, é tudo feito de espuma. Portanto, a questão é o que é que o teatro consegue fazer, não é? 

O facto de as histórias serem mais ou menos próximas, ou nós nos identificarmos mais ou menos com elas, ou nos tocarem mais ou menos, há quem diga que isso faz com que o objecto, no final, seja melhor, porque há essa paixão que nos move. Mas até isso é questionável. 

A ideia de público tem permissão de entrada ao longo da criação?  

O público é o nosso imaginário, é a nossa vontade de querer contar esta história a outro. Acho que sempre que ensaiamos, sempre que escrevemos, temos em mente que alguém vai ver. Este jantar que nós estamos a cozinhar, alguém vai provar. E isso anima-nos, nesse sentido, sim. E, claro, temos uma ideia de público, temos uma expectativa de público, ou seja, o facto de estarmos a jogar com um fenómeno (poliamor) tão raro, eu tenho consciência disso. 

Agora, eu não tenho a pretensão de, com a história, querer alcançar isto ou aquilo no público. Vivo na crença de que, em última análise, aquilo que me toca a mim pode tocar outras pessoas e de formas diferentes e diversas. E por cada pessoa pode haver um espectáculo que é recebido de diferentes maneiras. E isso é fantástico. Portanto, se eu tentar controlar aquilo que eu quero que o público sinta ou pense, eu não só vou falhar e sofrer (porque falhei), como também vou acabar por estragar a própria história, estragar a própria obra. A moral da história é aquela que cada um vir e receber. 

Além do poliamor há outras questões sociais que emergem. Recordo-me de, no Mona Lisa Show (2008), assumires a vontade de trazer um retrato social. Há aqui uma continuidade?

Eu acho que me atraio por histórias que tenham o máximo do mundo nelas, por oposição a uma história muito monotemática. Gosto quando um conflito tem ecos, tem reflexos, porque tudo está relacionado com tudo e, portanto, a questão é como fazer isso e há histórias que funcionam melhor do que outras. Como é que de repente de um triângulo amoroso, em que uma

CréditosCatarina Pereira / AbrilAbril

das pessoas são cinco, se consegue falar dessas coisas. Ou essas coisas já lá estão e basta iluminá-las. Em última análise, estão lá sempre, a questão é conseguir puxar por isso. De repente, onde é que existe aqui o dinheiro? Onde é que existe a divisão das tarefas domésticas? Onde é que existe a filiação? A educação das crianças? Onde é que existe aqui o que é ser mãe, o que é ser pai? Onde é que existe aqui o desejo sexual? Onde é que existe aqui o ciúme? De repente, como mete família, facilmente é só puxar, quer dizer, está lá. Acho que isso tem a ver com o núcleo da história ser muito fértil. 

De alguma forma a ascensão das forças extremistas, a nível nacional e internacional, impulsionou este tema?

Eu não me vejo como uma pessoa que faz histórias para responder a um presente hiper-datado. Não sinto isso, uma resposta hiper-precisa ao momento presente. Eu acho que esta história há 20 anos teria o seu valor, como se calhar daqui a 20 anos também tem. Acabo por me interessar um pouco mais por coisas que são um pouco transversais, se quisermos, a uma era pós-industrialização, no geral. Mas, que o poliamor em si é uma provocação a uma ideia de família e se pensarmos que... aliás, eu já tinha pensado fazer este espectáculo ainda antes do livro Identidade e Família ter sido lançado, por exemplo. Agora, que tem relação, quer dizer, ver pessoas que não são mães e pais biológicos a chamar filho, e crianças a chamarem mãe e pai a pessoas que não são do seu sangue, é uma coisa controversa para a maioria das pessoas, incompreensível. Portanto, essa dimensão provocadora é uma coisa que me atrai, porque gosto disso na minha vida.

CréditosCatarina Pereira / AbrilAbril

Por que será o amor mais problemático do que propriamente o ódio? E que possa haver pessoas que se sintam agredidas pelo facto de realidades assim existirem, mesmo que não se repercutam nas vidas delas?

São muitos anos com um determinado paradigma. Há toda uma estrutura de sociedade laboral, económica e de costumes, assente numa lógica, e fica difícil mudar. Sei lá, só agora estamos a normalizar a homossexualidade e a qualquer momento volta atrás. O casal, a estrutura familiar, a dois, a ideia de família, os laços de sangue, etc., é  uma coisa muito difícil de questionar. O último grande avanço foi o divórcio e saber-se dos abusos dos pais em relação às crianças, são assim as duas grandes conquistas de questionamento da família, que eu me lembre. Pouco se avançou nesse aspecto de pensar que a família pode ser outra coisa. E a mim dá-me gozo. Portanto, as histórias acabam por ser um bocadinho «armado ao filosófico» nesse aspecto. Ou seja, quase sempre tem este e se, esta brincadeira meio fantasiosa que a filosofia tem que ter para questionar a realidade, não é? E se agora fizesse isto assim? E se fosse ao contrário? Portanto, e como é ficção, permite isso, porque é fantasia, não é?

Portanto, podemos inventar esta família que eu não conheço, nunca vi, uma família de facto assim, não é? Eu não conheço estas seis pessoas. Conheço bocados destas seis pessoas, mas estas seis pessoas assim eu não conheço. Mas esse é o gozo de fazer arte. É inventar novos mundos ou pelo menos um mundo que nunca vi.

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