«Não acaba aqui!» foi a palavra de ordem que espontaneamente irrompeu, no final do protesto no Rossio, em Lisboa. No Porto, tinha surgido uma outra – «1% já neste orçamento!»
A expressão massiva e nacional deste movimento, o leque de organizações que o sustentaram, a consonância de exigências e de objectivos centrais verificada, do texto do Apelo pela Cultura às palavras de ordem gritadas pela multidão, passando pelas declarações de personalidades diversas, fazem deste episódio um momento histórico na luta das gentes da cultura, mas também na luta geral por um solo mais digno, mais democrático, mais livre para todos.
Estas duas palavras de ordem demonstram-no. Em vez de um momento de catarse, muitos entenderam que este era o momento de construir um caminho de ruptura com a miséria de décadas. «1% já neste orçamento!» tem um sentido táctico e estratégico. Tem um sentido estratégico, porque aponta um objectivo de exigência, de ambição e de generosidade. Exigência no reconhecimento do papel da cultura no desenvolvimento social. A ambição de quem recusa pratos de lentilhas. A generosidade como expressão de solidariedade para com o todo, com todos.
Tem um sentido táctico, porque compreende o calendário que se desenha. 2019 é o último Orçamento do Estado da legislatura. Se, na reivindicação, for desperdiçado, no ano seguinte voltaremos à estaca zero, com promessas «de médio-longo prazo» que se esfumam na engenharia das palavras e das contas.
É por isso que não pode acabar aqui. Não pode acabar aqui, porque é para continuar e tem de ir até ao fim. Não acaba aqui, porque exige alargamento. Não acaba aqui, porque é para ir mais fundo.
Temos portanto, em primeiro lugar, uma questão de calendário político, mas também de fome de futuro.
Está já a ser preparada e negociada a proposta de Orçamento do Estado de 2019. Os três últimos anos já demonstraram o que pretende o PS para a Cultura. O PS recusou a proposta do PCP de aumento para 25 milhões no orçamento do apoio às artes. O PS recusou e continua a recusar um plano para o desenvolvimento para as artes que aponte, ainda que de forma faseada, para o patamar de 1% do OE para a cultura. O PS prossegue o caminho de desresponsabilização do Estado, de empobrecimento e de mercantilização da cultura que partilha com os seus parceiros de direita.
No calendário, seguem-se ainda as eleições europeias e legislativas. Este calendário coloca responsabilidades e oferece oportunidades à luta em defesa da cultura. As forças e as vontades devem organizar-se e mobilizar-se para produzir, nestes meses que virão, um movimento que produza alterações profundas a favor de uma política de esquerda: forçando o PS a compromissos que não tem querido assumir e reforçando as posições e capacidade de intervenção da esquerda, no plano social, sindical, partidário e institucional.
Mas a questão do futuro não se esgota nos termos do calendário. Esta luta é a própria luta por um país decente, um país de gente, pela democracia e pela liberdade. Cada vez mais se compreende que esta luta é campo de clivagem ideológica e política. Não é terreno de consenso, como quer ensinar o status quo. É terreno de confronto. É importante reconhecê-lo, pois devemos ser capazes de identificar muitas ideias de direita contidas no discurso de protagonistas muito respeitáveis, do ponto de vista artístico e cultural, mas contrários aos objectivos de uma luta pela democratização da cultura.
Uma mão: a unidade da cultura em luta
Não acaba aqui. A luta alarga-se e prolonga-se como os dedos de uma mão: é a luta pelo direito e liberdade de criação e fruição artística e literária; é a luta pela preservação e fruição do património cultural; é a luta pelo acesso à informação pública; é a luta em defesa do trabalho e dos que nela trabalham; é a luta do povo pela sua emancipação. Nessa mão, a unidade da luta em defesa da cultura.
A luta ganha imenso com essa unidade, encetada há três anos com a criação da plataforma Cultura em Luta, que assinou, em 2016, um programa de 12 eixos para outra política cultural. Essa plataforma juntou em reflexão e acção o Manifesto em defesa da Cultura, o CENA-STE, sindicato da área das artes do espectáculo e do audiovisual, a FNSTFPS, federação de sindicatos da administração pública, a BAD, associação de bibliotecários, arquivistas e documentalistas, o STARQ, sindicato de trabalhadores da arqueologia, a REDE, associação de estruturas para dança contemporânea e a PLATEIA, associação de profissionais das artes cénicas, importantes sindicatos da CGTP e dezenas de outras estruturas e personalidades. A plataforma criada para o protesto da artes, contou ainda com a participação da PERFORMART, associação para as artes performativas.
No plano das artes e das letras, desdobram-se e encontram-se: a urgência em atender ao descalabro na actividade artística e literária, amputada, empobrecida e tolhida na sua liberdade, por um lado; a necessidade de construção de condições de estabilidade e de suficiência de meios, para que artistas, demais trabalhadores e as suas estruturas de criação possam fazer o seu trabalho, por outro; e a exigência de pleno cumprimento do direito de todos neste país à formação e prática da arte.
No plano do património cultural, articulam-se as exigências de salvaguarda da autonomia orgânica, financeira, técnica e de gestão dos organismos tutelados, o reforço dos meios humanos, o trabalho com direitos e condições plenas de recuperação, conservação e livre acesso a monumentos, palácios e sítios.
No plano da informação e documentação, cruzam-se a exigência de valorização dos meios humanos e logísticos com a de livre acesso de todos à informação pública.
Mas para alcançar vitórias políticas neste terreno, o campo democrático tem de estabelecer duas alianças determinantes. Uma, a dos trabalhadores da cultura com os restantes trabalhadores, no sentido de fazer dos objectivos de uma nova política cultural coisa de todos. Outra, que apela ao povo no sentido de fazer da cultura um efectivo direito seu. A inclusão da luta em defesa da cultura na agenda da luta geral é um ganho para todos. A luta específica da cultura ganha relevo e centralidade na luta geral, o que lhe garante mais possibilidades de sucesso. Em contrapartida, a luta de todos por um país melhor também só pode avançar se der à democratização da cultura a centralidade que partilha com democratização económica, política e social.
Convém tomar nota de algumas linhas de campanha da política de direita. Uma, a da «subsídio-dependência», posta a rolar até hoje pela ex-Ministra da Cultura do PS, Gabriela Canavilhas, em 2010, pretende apresentar, aos olhos do país, a actividade cultural e artística como um antro de ociosidade. A então ministra encomendou um estudo que realçava a «sustentabilidade das indústrias criativas e culturais», no qual se misturava actividade artística e cultural genuína com as indústrias publicitária, de jogos electrónicos, de turismo, de design e outras altamente lucrativas. O objectivo era claro: menorizar toda e qualquer actividade «incapaz» de se auto-financiar, abrir curso a um processo de profunda mercantilização, tendo como promotor o próprio Estado, e rasurar o valor intrínseco e insubstituível da cultura.
O mote do valor económico da cultura conquistou a simpatia de artistas no seu desespero. Abdicando rapidamente de lutar pelo valor próprio da cultura, achavam que apontando para o seu valor económico conquistariam respeito. Era e é, claro, uma armadilha. Estavam a entregar o ouro ao bandido. E o «ouro» aqui era, como continua a ser, o valor sem preço da cultura, da liberdade e de uma vida que mereça ser vivida.
Não acaba aqui é então também dizer que queremos muito mais do que isto. É dizer que estamos convictos da urgência, da possibilidade e da qualidade deste caminho de investimento e de paixão pela cultura, na qual a política pública tem um papel indeclinável. É dizer que há alternativa política e que ela sonha acordada.
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