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Ideias para a luta na Cultura (II). 1% por todos, todos por 1%

Não há «paixão pela Cultura» ou «desígnio nacional» que resista sem que a Cultura tenha o peso adequado, no Orçamento do Estado, ao seu papel no desenvolvimento pleno da sociedade e do indivíduo.

A luta da cultura esteve presente no 25 de Abril. Aspecto do desfile, na Av. da Liberdade, em Lisboa, a 25 de Abril de 2018.
CréditosJosé Manuel Teixeira/Manifesto em defesa da Cultura

É o objectivo de 1% para a Cultura um fetiche? Falar de dinheiro é fugir à essência dos problemas na Cultura? É ou não é o investimento na Cultura uma responsabilidade do Estado democrático? O que acontece à Cultura quando o Estado se demite de a apoiar: liberta-se ou mercantiliza-se? Cresce ou empobrece? Para que serviria esta parcela da riqueza?

Porque tem a política de direita tanto medo deste número?

Há dois meses, quando se começou a perceber que estava em curso uma hecatombe que ameaçava eliminar dezenas de estruturas de criação artística da lista de apoios públicos às artes, de repente, onde «não havia dinheiro», passou a haver e com despacho. Primeiro, o ministro «reforçou». Depois foi a DG Artes a «reforçar». Finalmente foi o próprio Primeiro-Ministro a anunciar mais um «reforço» de verbas. Os objectivos eram claros: controlo de danos, mas sobretudo abafar a explosão de indignação e de protesto. No espaço de duas semanas, os apoios às artes cresceram de 16 para mais de 19 milhões de euros.

«Na formulação do Manifesto em defesa da Cultura, 1% para a Cultura significa a atribuição imediata de um mínimo de 1% do OE à Cultura e um plano faseado no sentido de atingir a médio prazo 1% do PIB»

Diz-se que lutar vale a pena. Mas, caramba, tamanho sucesso, antes mesmo de as manifestações do povo das artes saírem à rua, é obra! António Costa, na reunião com a Plataforma da Cultura, foi claro: ir até aos 25 milhões de euros para apoios às artes, em 2019, parecia-lhe possível, 1% para a Cultura é que não. Ou seja, manipular o orçamento consoante as circunstâncias e apertos está bem. Comprometer a política do governo com objectivos de desenvolvimento, nem pensar!

Há seis anos, a expressão 1% para a Cultura não andava nas bocas de toda a gente. Era proposta democrática em momentos de discussão sobre a Cultura, mas sem qualquer valor político efectivo. Aliás, em 2010, um expressivo movimento de protesto, conduzido pela Plataforma das Artes, não tinha pretendido mais do que reverter os violentos cortes de financiamento ocorridos com os PEC do governo PS, de Sócrates e de Canavilhas. Apesar da pressão de massas de artistas e técnicos precários e empobrecidos para maior ousadia na exigência de outra política cultural, os termos «valorização» e «investimento» na Cultura apareciam como enfeites dos reais objectivos: constituir um lobby e repor a situação anterior. 1% para a Cultura não constava dos textos e comunicações do movimento.

É em Setembro de 2012 que ocorre, em várias cidades do país, por iniciativa do Manifesto em defesa da Cultura, a primeira acção política pública contra a política de direita tendo o 1% para a Cultura como principal reivindicação. A esta reivindicação aderiu também o sindicato CENA-STE e, em vésperas das eleições de 2015, as muitas dezenas de organizações signatárias da plataforma Cultura em Luta. De então para cá, a exigência do 1% ganhou força material, por apropriação pelas massas. É hoje tema primeiro da luta política na Cultura. Não é consensual, porque é objecto da luta política e ideológica entre os sujeitos de uma política classista e reccionária e os de uma política democrática e humanista.

1% para a Cultura é um objectivo para os dias de hoje. Define para a Cultura – para todas as suas actividades mais relevantes socialmente e, por isso, objecto da política cultural do Estado – um valor mínimo no Orçamento do Estado, correspondente àquele que a sociedade já atribui no seu viver. Na formulação do Manifesto em defesa da Cultura, 1% para a Cultura significa a atribuição imediata de um mínimo de 1% do OE à Cultura e um plano faseado no sentido de atingir a médio prazo 1% do PIB.

Não há «paixão pela Cultura» ou «desígnio nacional» que possa escapar a isto: se a Cultura é factor fulcral de desenvolvimento pleno da sociedade e do indivíduo, se é factor de democratização e deve ser democratizada, então tem de ter o peso adequado no Orçamento do Estado.

Evolução do financiamento da Cultura pelo Estado

Como evoluíram os orçamentos1 iniciais da tutela para a Cultura, nas últimas décadas?

O orçamento inicial é aquele que se discute e aprova na Assembleia da República, no ano anterior ao da sua execução. De 1995 a 2002, as verbas para a Cultura acompanharam o crescimento dos Orçamentos do Estado, aumentando de 149,6 para 293,5 milhões de euros – de 0,5% para 0,6% do OE inicial. Em 2005 o OE ainda era de 285 milhões de euros mas, no ano seguinte, começa uma vertiginosa queda que atira o financiamento do Estado para os 165,5 milhões de euros – 0,21% do OE – em 2013. O apoio à Cultura situa-se abaixo dos valores de 1996, apesar de inserido num OE significativamente maior.

De 2013 para cá, observamos a seguinte tendência: a estabilização do financiamento público da Cultura em cerca de 200 milhões de euros – menos de 0,2% do OE – é acompanhada de engenharia orçamental com o fito de dar volume ao orçamento, como aconteceu com a inclusão das dotações para a Fundação CCB e para a RTP, financiada pela Taxa Audiovisual e pela publicidade, o que quase triplicou o fictício OE da Cultura.

Já a relação do investimento público com o PIB é eloquente: à excepção de 2008, ano pré-eleitoral, mesmo quando o PIB cresce, a migalha dedicada à Cultura diminui sempre.

O estranho crime dos orçamentos executados

Uma coisa é o que se promete no orçamento inicial. Outra, bem diferente, é o que depois realmente se investe, o orçamento executado2. Raramente nele se fala. Mas é aqui que se verifica com mais clareza a profunda indigência dos governos sucessivos para com a Cultura.

«De 2000 a 2012, a percentagem da Cultura no todo do OE, cai dos 0,59% iniciais para os 0,23%»

De 2000 a 2008, os valores executados variam entre os 223 e os 250 milhões de euros. À excepção de 2008, em que o valor é superior ao inicialmente orçamentado, em todos os outros anos da série se verifica um corte substancial, por vezes de 20%, nas verbas programadas. De 2009 a 2012, os valores baixam até aos 134 milhões de euros.

Quando verificamos que parcela ocupam esses magros valores no bolo do Orçamento do Estado, o quadro é catastrófico. De 2000 a 2012, a percentagem da Cultura no todo do OE, cai dos 0,59% iniciais para os 0,23%. Ou seja, diminui continuamente a parcela de investimento real na Cultura.

Um dos principais instrumentos desta redução oculta do orçamento para a Cultura são as cativações, que atrasam a disponibilidade das verbas até um momento em que ou deixam de ser necessárias, por cancelamento de actividades ou programas, ou deixa de ser possível utilizá-las, porque foram canalizadas para outros fins. Outro instrumento é fazer depender o financiamento da participação de terceiros (autarquias, por exemplo), que se sabe à partida não estarem capazes de corresponder.

O nojo dos dinheiros

Muitos intelectuais da situação agitam o nojo do «dinheiro». Segundo dizem, o problema não é o dinheiro, o problema é «político». É verdade que há visões políticas em confronto: há uma visão classista e egoísta, empobrecedora da experiência cultural e que usa de formulações vagas como «o respeito pela Cultura». Esta visão não tem um projecto democrático para o país. Não atende ao direito de todos à criação e à fruição, em todo o território, antes se preocupa em gerir os bens e serviços culturais suficientes para dar à burguesia nacional uma sensação de bem-viver, enquanto o país apodrece para lá das esquinas.

Quando se lhes aponta o facto de o orçamento se concentrar em Lisboa e Porto, respondem que é assim que deve ser, pois é aqui que se concentra «a Cultura»; que não se vai financiar «tudo e mais alguma coisa».

Dizem que não resolve nada «atirar dinheiro para cima dos problemas». Quando questionados sobre que problemas serão esses, logo se vê: são os seus problemas: o seu direito a determinar o que deve ser a Cultura e o que deve ou não ser financiado, o seu direito ao financiamento, o seu direito à atenção dos outros. Vai a ver-se e não estão de facto contra o dinheiro, desde que este seja o suficiente para pagar a sua Cultura.

«Dizem que não resolve nada «atirar dinheiro para cima dos problemas».  Vai a ver-se e não estão de facto contra o dinheiro, desde que este seja o suficiente para pagar a sua Cultura»

A visão e o projecto desta gente para o país chegam a ser tão toscos, que esquecem que, para além de corresponder a um direito de todos, a política cultural e o orçamento que a sustenta não se resumem ao apoio a actividades consagradas, mas envolvem também o financiamento daquelas que o merecem e não a ele não têm acesso, e o financiamento daquelas que merecem existir. Esquecem que é preciso financiar a investigação, a recolha, gestão e conservação do património cultural, que é preciso ter uma política de livro, de leitura e de bibliotecas. Esquecem que é preciso financiar uma política de informação, de documentação e de arquivos. Esquecem que é preciso pagar salários a muita gente e arrancar muita gente do desemprego e da precariedade, porque o merece e é necessária.

E nada disto se faz com 0,2% do Orçamento do Estado. Nada disto se faz com um ministério morto e um ministro inexistente. Nada disto se faz sem uma sólida e complexa organização do Estado nos vários terrenos da política cultural. Nada disto se faz sem um Serviço Público de Cultura.

O 1% é um instrumento da política alternativa

Se a exigência de 1% para a Cultura não tivesse um conteúdo político e ideológico, PS, PSD e CDS não teriam medo dela.

O objectivo de 1% para a Cultura tem conteúdo político inquestionável e benefícios para a luta pela democratização e valorização da Cultura verificáveis nestes seis anos que passaram.

«a exigência do 1% [para a Cultura] não é consensual, porque é objecto da luta política e ideológica entre os sujeitos de uma política classista e reccionária e os de uma política democrática e humanista»

Exige instrumentos de análise contrários a uma política de direita: corresponde a uma visão do papel do Estado no desenvolvimento cultural, a um compromisso e a um plano. Sustenta-se numa visão de democratização da sociedade, de complexidade na formulação do que pode ser a Cultura, de defesa da sua liberdade e diversidade. Insere-se numa visão que recusa o mundo separado de «agentes» e «públicos» e afirma uma outra, que é a do direito de todos ao exercício e produção de cultura. Defende o trabalho e os trabalhadores, o emprego com direitos e a estabilidade necessária.

Mas demonstrou também ser uma grande bandeira da luta em defesa da Cultura. Num tempo em que se lutava pelo que estava para trás, marcou um objectivo de futuro. Num tempo que não se falava de números e de orçamento, fixou uma bitola em relação à pobreza do real. É uma reivindicação profundamente agregadora. Porque é profundamente comunicativa. Porque é profundamente democrática. Porque diz respeito a todos.

Próximo artigo: Ideias para a luta na Cultura (iii) - Não acaba aqui!

  • 1. Fonte: Mapear os recursos, Levantamento da legislação, Caracterização dos atores, Comparação internacional – Relatório Final, SEC/GEPAC, 2014.
  • 2. Idem.

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