|Sugestões culturais

Lentos dias tem Agosto

Cinema, teatro, leituras. Para os dias que decorrem lentos, sob um sol estenuante.

«Rimance de Mateus e da Baleia», pela companhia açoriana Cães do Mar, é um dos espectáculos do XX Festival de Teatro, a decorrer em Setúbal entre 23 de Agosto e 2 de Setembro de 2018.
Créditos

O nosso querido verão anda a vogar entre dias de calor mais plausível e as violentas vagas que assaltam sem contemplações. A meteorologia pinta o mapa de laranja e vermelho alarmando os dias de horas mais lentas de férias, que mesmo quando não são de férias são de forte abrandamento de ritmos de trabalho para as energias se acumularem e espreguiçarem sob o sol que nos extenua.

Ciclo do Cinema Francês: é de mestres

Se não se deixou seduzir pelas praias ou pelas paisagens do interior e deambula por espaços citadinos vá ao cinema, o ar condicionado proporciona-lhe um interregno nas violências dos raios solares. Se está ou está perto de Lisboa, Porto, Setúbal. Figueira da Foz, Braga e Coimbra veja onde está em exibição, de 11 a 22 de Agosto, a segunda parte do excelente Ciclo de Cinema Francês - Grandes Mestres 1930-60. Uma oportunidade para rever Helena e os Homens, de Jean Renoir, que Godard classificava como o «filme mais inteligente do mundo». Se não for o mais inteligente é de certeza a exuberante mostra da beleza de Ingrid Bergman.

Na mesma série A Mulher do Padeiro, de Marcel Pagnol, talvez uma das grandes revelações deste ciclo por ser um filme nunca estreado em Portugal e talvez o de maior espessura dramática na cinematografia do realizador, os icónicos Fim-de-Semana no Ascensor, de Louis Malle, onde Jeanne Moreau representa uma actriz a navegar pelas ruas de Paris ao som do trompete de Miles Davis, que improvisou directamente a ver as imagens, Aquela Loura de Jacques Becker, celebrizado pela exploração das imagens plásticas. Se está em Lisboa poderá ver, noutra sala de cinema da mesma exibidora, os filmes que integraram a primeira parte do Ciclo, O Crime do Sr. Langue de Jean Renoir, Madame de..., de Marc Ophuls, Dois Homens em Manhattan, de Jean-Pierre Melville e Sem Rosto, de Georges Franju.

A Festa do Teatro faz 20 anos

Em Setúbal um acontecimento que deve merecer uma muito especial atenção, o XX Festa do Teatro / Festival Internacional de Teatro de Setúbal que vai decorrer de 23 de Agosto a 2 de Setembro. São 11 dias de festa, 15 espectáculos da secção oficial, oito a concurso no Mais Festa, em que o premiado integrará a secção oficial do próximo ano, outros oito no Mais Festa extraconcurso, dois concertos, um de abertura e outro de encerramento, duas residências artísticas, duas exposições, uma individual e outra colectiva, uma mostra de curtas e conversas abertas sobre teatro e sobre a mulher, porque é o feminino e a igualdade de género que, sem serem o tema da XX Festa do Teatro, têm uma presença forte. A Festa do Teatro, uma iniciativa do Teatro Estúdio Fontenova, vai na sua vigésima edição, tem ao longo dos anos lutado e sobrevivido a inúmeras dificuldades. Em 2018 dá um salto quantitativo, triplica o número de actividades, salto que também é qualitativo. Uma excelente proposta para animar culturalmente o seu verão.

Na secção oficial vai poder assistir a doze peças de companhias portuguesas e três de estrangeiras. Das portuguesas destaque – e destacar não é de modo algum colocar em segundo plano as outras companhias – para os Artistas Unidos, com O Teatro de uma Amante Inglesa, para a Escola de Mulheres, com AAC – Associação Amizade no Casamento, para A Tempestade, pela Companhia João Garcia Miguel, e para as estreias de Rimance de Mateus e da Baleia, pela Cães do Mar, e de Ah! Minha Dinamene!, pelo Teatro Estúdio Fontenova, a companhia anfitriã, numa produção que entrará em digressão e que, com base no texto original, será uma obra aberta que integrará excerptos relacionados com histórias de mulheres dos locais em que for representada. As companhias estrangeiras são as espanholas La Compañia Albadulake, com Las expertas, e Vaivén Circo, com “Do not disturb”, e a brasileira Palavra Z – Produções Culturais, com Contos Partidos de Amor.

Consulte o programa completo e, se não poder assistir a tudo o que a XX Festa do Teatro seleccionou, terá mesmo dificuldade de escolha, tanto pela variedade como pela qualidade do que integra esta edição do Festival Internacional de Teatro de Setúbal.

Ler saboreando um buñueloni

Que fazer no resto do tempo livre, partindo do princípio que no verão o tempo livre tem primazia? Ler !!! Ler sempre, seja na praia, mesmo arriscando que a areia se intercale nas folhas, numa espreguiçadeira, na mesa de uma esplanada. Pode ler e acompanhar a leitura por uma bebida refrescante, talvez um gin. Não é por estar na moda, o que é irrelevante para os apreciadores de gin, que não se deixam apanhar nessas teias das panóplias do marketing. Ponha de lado os botânicos e as águas tónicas exóticas. Experimente uma receita antiga, dos anos 40, inventada por Buñuel, que dizia que era o gin que lhe despertava a imaginação. É o buñueloni. Retire um copo alto, cilíndrico de diâmetro médio do frigorífico. Preencha-o de cubos de gelo bem duros. Encha-o de um bom gin, de destilação mais tradicional. Adicione umas gotas de licor de angustura e deixe que se misturem perfeitamente. Erga o copo para que um raio de sol o atravesse com a delicadeza com que o Espírito Santo atravessou o hímen da Virgem Maria. Todos estes passos são essenciais, segundo Buñuel, para obter um gin perfeito, para fazer a imaginação cavalgar a galope. Se já ergueu o copo e o raio de sol o atravessou, beba uma contida golada, pouse o copo e abra um livro.

Na literatura, destaque para essa escritora hoje quase secreta que é uma das grandes escritoras portuguesas do séc. XX, Maria Judite de Carvalho, que a Minotauro resgatou do limbo do esquecimento. Das Obras Completas foi publicado o Volume I com os contos Tanta Gente, Mariana e As Palavras Poupadas. Um deslumbramento.

Portugal conhece mal a obra de Karl Kraus, apesar de no ano passado no Teatro São João, Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso terem encenado Os Últimos Dias da Humanidade, uma edição da Antígona que está esgotada. Kraus é o cronista dos dias sangrentos que viram nascer a era da industrialização da morte, da mentira, da estupidez.

Compreendeu como poucos que, pela destruição e manipulação da linguagem, todo o tipo de ditaduras seriam possíveis. As suas sátiras são de uma actualidade que nos alerta para o gume da navalha que está apontada às nossas gargantas. Lembrem-se que Marine Le Pen só agora desapareceu da lista de convidados da Web Summitt por pressão nas redes sociais. Ainda andam por lá outros também não muito recomendáveis, alguns pelas previsíveis estúpidas banalidades que irão debitar, que serão muito aplaudidas mediaticamente porque «os jornalistas escrevem porque não têm nada a dizer e têm algo a dizer por escreverem» numa «imprensa (que) devastará o que a sífilis deixou» (KK). Sobretudo não esqueçam que Le Pen figurava entre os convidados e havia um ensurdecedor silêncio por parte do governo e da Câmara Municipal de Lisboa que tanto acarinham e contribuem em dinheiro e géneros para o sucesso do evento. Não seria de admirar ver Medina agraciar a madame com um daqueles sorrisos que distribui pelas madonas. Previnam-se contra esse mundo, leiam Karl Kraus. Podem escolher entre dois livros, Nesta Grande Época, da Relógio d’Água, e Aforismos, edição VS, embora o melhor conselho é que leia os dois enquanto espera pela reedição Os Últimos Dias da Humanidade.

Um livro de humor inteligentíssimo é Obra Perfeitamente Incompleta de José Sesinando, edição Tinta da China. Roçam a genialidade os textos de sofisticados jogos de linguagem em que a cultura portuguesa é peneirada pelo autor. Um livro que se lê com enorme prazer e sem desbarato. De caminho aproveite a oferta que o jornal Público faz de publicar em fascículos, como aconteceu originalmente, Lisboa - Cidade Triste e Alegre do irmão de José Sesinando, Vitor Palla, e de Costa Martins. Um livro que faz parte da história da fotografia mundial.

As edições de poesia são cada vez mais reduzidas e de magras tiragens. Uma situação que ainda tem a agravante de a maioria das edições de poesia serem de pequenas editoras que têm dificuldades reais em ter presença significativa nos grandes espaços livreiros que, à semelhança das editoras, tem sido objecto de concentração em grandes grupos, a maioria propriedade dos grandes grupos editoriais.

Destaquem-se quatro livros de poesia recentemente editados: A Foz em Delta, de Manuel Gusmão, edições Avante!. Poemas assumidamente políticos em que Manuel Gusmão reivindica uma linhagem de poetas em que a apropriação da língua devolve à poesia a vibração que se faz contra a poesia que trafica sentimentos, satisfeita consigo própria e os frémitos que provoca a atravessar e atravancar salões com petilantes versos que saltam de copo em copo para apaziguar a luta de classes que não pára nem desiste de acontecer e decorre para lá das vidraças das torres vidro em que batem e batem incapazes de as ultrapassar.

De algum modo surpreendente é Ultimato, de Diogo Vaz Pinto (Maldoror) onde ressoa a voz daqueles poetas em que poesia arrisca fora dos territórios habituais da lógica para nos exigirem o esforço de os interpretar. Uma poesia que procura os leitores exigentes o que é o gabarito de toda a grande literatura.

Alberto Lacerda, exilado em Londres, viveu os dias brumosos dessa cidade nas persistentes névoas editoriais em que por cá andava. Até o chegámos a descobrir, a servir de modelo para um dos personagens de um dos quadros de Paula Rego, tão silencioso como silenciosa era a sua ausência em impressões tipográficas. A Tinta da China publica agora Labareda, uma pequena antologia que marca o regresso do poeta ao nosso convívio.

Maria Teresa Horta recupera um episódio bíblico, o do anúncio do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria de que ia ser mãe de Jesus.


Um episódio que seria o pacífico transporte da mensagem divina se Teresa Horta não descobrisse a história de uma paixão condenada entre o mensageiro e a eleita de Deus. Um romance de amor contado em 280 poemas, ordenados em catorze estações tantas como as da Via Crucis. Anunciações, publicado pela Dom Quixote, um livro de poemas que se lê sem detença para se conhecer o fim desta história em que os protagonistas recusam mas estão condenados aos desígnios de Deus.

Estas são algumas, escassas para o muito que foi publicado, das novidades editoriais de que se excluíram livros de ensaios teóricos tão importantes e aliciantes como George Steiner em "The New Yorker", de George Steiner (Relógio d’Água), uma recolha dos artigos, longos e densos, que publicou na New Yorker, ou Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais, de Maria Filomena Molder, também da Relógio d’Água, onde se cruzam ensaios e reflexões sobre cultura, arte, poesia, com a velocidade do pensamento que nunca se subtrai a enfrentar as suas maiores complexidades, sempre pensando em nós enquanto leitores alegres, pensantes e fatais.

Por último relembramos o conselho de Séneca a Lucílio depois de o avisar «toma, porém, atenção não vá essa tua leitura de inúmeros autores e de volumes de toda a espécie causar algo de indecisão e instabilidade», para concluir «lê, portanto, constantemente autores de confiança e quando sentires vontade de passar a outros regressa aos primeiros». Se quiser regressar aos autores de confiança três sugestões: as Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, agora numa edição de preço acessível da Leya/RTP, o Ulysses de Joyce numa tradução de Jorge Vaz de Carvalho para a Relógio d’Água, que lhe vai proporcionar uma releitura fecunda de anteriores e boas traduções, ou o Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell (Dom Quixote), com texto revisto e fixado pelo próprio autor.

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