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Luís Varatojo: «A música de intervenção não é coisa do passado»

O AbrilAbril conversou com Luís Varatojo sobre o projecto Luta Livre e os dez temas que apresenta no disco Técnicas de Combate, verdadeiras armas para resistir aos que têm «horror à força do colectivo».

CréditosSara Varatojo / Luta Livre

Luís Varatojo, o músico ligado a  projectos como Peste & Sida, Despe e Siga, Linha da Frente, A Naifa e, mais recentemente, Fandango, tem sido uma voz bastante activa na cena musical nacional. Em 2020 criou a Luta Livre, o novo projecto que resulta de um olhar interventivo sobre a sociedade e a actualidade.

AbrilAbril: Sentiste algum pudor em avançar para o nome deste projecto, Luta Livre, e deste álbum, Técnicas de Combate, por poderes ficar rotulado de música de intervenção e teres dificuldade em chegar ao público nas mesmas condições de outros projectos musicais?

Luís Varatojo: Não, isso nunca me passou pela cabeça, porque ando nestas coisas da música desde meados dos anos 80 e sempre de uma forma livre. Sempre fiz o que quis, que achei que devia fazer em cada momento e não faço a mesma música hoje que fazia há 30 anos, as coisas vão acontecendo. Surge uma ideia e uma vontade de seguir determinado caminho, de experimentar determinadas sonoridades e de abordar determinados assuntos. O que acontece de uma forma bastante espontânea e nunca me passou pela cabeça ter alguma limitação em relação àquilo que vou fazendo.

«Tenho noção de que quando falo de determinadas coisas vou ser ignorado em alguns meios, mas isso nunca pode ser condição para deixar de fazer o que quer que seja»

No meu percurso, apesar de ter estado muitas vezes ligado a editoras, como no caso, por exemplo, dos Peste & Sida e mais tarde dos Despe e Siga, nunca senti nenhuma pressão para fazer assim ou assado ou não falar disto ou daquilo, e tivemos canções até bastante directas em vários discos. O próprio nome da banda Peste & Sida, numa altura em que a Sida era um tabu, foi bastante agressivo, mas também não tivemos qualquer problema em fazer uma primeira gravação para uma editora que era a Transmédia, que editava também o Fausto. É claro que eu tenho noção de que quando falo de determinadas coisas vou ser ignorado em alguns meios, mas isso nunca pode ser condição para deixar de fazer o que quer que seja.

AA: Técnicas de Combate é também relativo às experiências que são os vários temas, a nível das sonoridades? São técnicas na forma de transmitir uma mensagem ou também na própria mensagem?

LV: Sim, acho que pode ter essas duas leituras. No fundo, estou a experimentar aqui várias técnicas, mesmo de composição e de manipulação da música. Elas nasceram de formas diferentes e, apesar de o disco andar um bocado à volta de referências do Jazz, há muito mais coisas no disco. Umas que são mais Rock e outras que são mais a apontar para outro tipo de música, para o Reggae, para seja o que for. Eu vejo a coisa um bocado por aí e, por isso, dei esse nome de técnicas de abordagem aos assuntos, tanto no lado da música, como na parte dos textos. E também pode ter essa leitura, para quem ouve, estão aí várias técnicas de resistir e de abordagem a esses problemas e a essas questões que estão nas letras.

AA: Mesmo o grafismo associado a este disco e a este projecto é em si uma técnica, também é uma forma de passar uma mensagem. Não só a capa do álbum, mas também os vários vídeos que lançaste. Podes falar um pouco sobre esse trabalho?

LV: A primeira ideia que me passou pela cabeça no início, quando comecei a concretizar em música algumas ideias que tinha tanto no campo da música como do lado dos textos, comecei a pensar, então agora o que é que vou fazer com isto? tenho de mostrar isto às pessoas. A primeira coisa que me ocorreu foi abrir um canal no YouTube onde fosse comunicando as músicas conforme as fosse acabando, sem nenhum compromisso, sem saber se ia demorar oito meses ou dez, se ia fazer seis ou se ia fazer três músicas. Então falei com duas pessoas em concreto com quem já tinha tido algumas colaborações na área da animação de vídeo, a Andreia Reisinho Costa e a Cristina Viana, e apresentei-lhes a ideia de, conforme as músicas iam estando prontas, irmos fazendos vídeos que acabassem por facilitar o passar da mensagem que esses textos tinham e que a tornassem mais clara e mais apelativa. A primeira ideia foi mesmo essa: comunicar esta música sempre de uma forma audiovisual, para que essas imagens as reforçassem... Portanto, a ideia não era promover um disco. Quando tive tempo para acabar mais músicas, começaram a sugerir-me que podia fazer um disco. Se o disco fosse audiovisual então é que era mesmo ouro sobre azul. Mas como os formatos audiovisuais são maus, DVD, ninguém se dá bem com este tipo de formato, tinha que fazer um disco áudio. Mas por exemplo, para o espectáculo, não o da Festa do Avante! que foi durante o dia, mas para espectáculos que farei a seguir, haverá essa componente de vídeo.

AA: E quanto à capa?

LV: A capa também tem uma história engraçada porque sou amigo virtual do João Pombeiro que é o autor da ilustração, e gosto muito do trabalho que ele tem desenvolvido. O trabalho dele é mesmo colagem digital, ele tem investido aí e é isso que ele costuma fazer. Às tantas vi um vídeo da Surma feito por ele, com animação dessas figurinhas digitais, dessa colagem digital com montes de pormenores como ele fez na capa deste disco e perguntei-lhe se ele estaria interessado em fazer um vídeo. Ele já tinha acompanhado a saída dos outros vídeos, tinha gostado, manifestou interesse e disse-me que sim mas que seria trabalho para quatro meses, o que era um prazo muito longo e não estava ao meu alcance. E ele sugeriu fazer um poster ou a capa. Daí, quando precisei de resolver a questão da capa, voltei ao contacto com o João. Enviei-lhe as letras porque eu gostava que os temas todos estivessem de alguma forma explanados na capa, o que seria muito difícil fazer com uma imagem só. Portanto, era o artista ideal para tratar o assunto.


AA: Não deixa de ser curioso que este projecto surja no ciclo político em que estamos a viver, porque alguns temas como a precariedade, a importância da participação política para transformar as coisas, o flagelo da desinformação, são questões que poderiam também ser associadas ao período da ingerência da troika e das medidas de austeridade. Mas a realidade é que trazes neste disco problemas que já existem há muito tempo e que se vão aprofundando e desenvolvendo, com avanços e recuos.

LV: Sim, esses assuntos estão aí desde sempre. Podemos até recuar décadas. Por exemplo, o caso do desinteresse pela política, do facto de as pessoas se absterem cada vez mais de participar, de votar... Isso é um trabalho que tem andado a ser feito por alguém ao longo das últimas décadas. Porque isso interessa sempre a alguém. A desinformação, as notícias falsas, se calhar é uma coisa visivelmente mais actual, sobretudo com o aparecimento das redes sociais, mas também já anda aí e vai andar aí por muito mais tempo. As questões do clima, a iniquidade que sempre esteve patente, agora a aumentar ainda mais com a pandemia.

«As desigualdades continuam, existem muitas pessoas no limiar da pobreza, pessoas a trabalhar 12 horas por dia e que chegam ao fim do mês sem dinheiro para pagar as contas»

Em relação ao trabalho precário, a canção é feita em torno dos entregadores de comida, mas é só um exemplo mais recente. Há muito tempo que existe trabalho precário, pessoas a trabalhar a recibos verdes, em todas as actividades. Nos últimos anos tivemos talvez um ciclo político um pouco mais positivo e isso sentiu-se na sociedade, diminuiu a crispação, as pessoas sentiram-se mais positivas. Mas o que é facto é que as desigualdades continuam, existem muitas pessoas no limiar da pobreza, pessoas a trabalhar 12 horas por dia e que chegam ao fim do mês sem dinheiro para pagar as contas. A música de intervenção não é coisa do passado porque, se estamos em liberdade e podemos falar, continuamos a ter muitas razões para lutar. Isto nunca é um trabalho acabado.

AA: Este projecto não arrancou com o confinamento, mas em algumas coisas parece um bocadinho profético.

LV: Eu posso dizer que os textos surgiram de recolhas que comecei a fazer em 2019, de notícias e de histórias que ia lendo em vários meios de comunicação nacionais e internacionais. Depois foram sendo trabalhados, fui remodelando e modificando a estrutura, às vezes dando um toque na linguagem, outras vezes arrumando melhor as palavras para caberem na música. No fundo, se não andarmos tão distraídos e às vezes até alienados com o entretenimento, se acordarmos um bocadinho, isso está tudo presente há algum tempo. Agora, com a pandemia, eles vieram mais à tona e há mais gente preocupada.

AA: Olhar para estas dez canções é quase como pôr um mapa mundo à frente e ir andando em zoom in e zoom out para algumas situações e problemas. Agora colocava-te aqui duas ou três questões relativamente às canções. A primeira canção chama-se Política e é muito marcante pelo apelo que faz à participação política e pela forma como denuncia o horror do sistema aos colectivos. Hoje, com a pandemia, ainda há mais uma maneira de tentar desmobilizar a organização colectiva ...

LV: Sim, isto dá muito jeito em muitas situações e posso até dizer-te uma já, que se está a passar neste momento. A reestruturação que está a acontecer na TAP está a ser feita aproveitando o facto de os trabalhadores terem mais dificuldade de se juntar. Não é a mesma coisa uma negociação com assembleias gerais ou onde as questões são colocadas via e-mail. Ora, alguém não tem interesse em que as pessoas falem umas com as outras e tem interesse em que estejam separadas para serem mais facilmente manipuláveis. Isto é um exemplo do que se está a passar em larga escala.

AA: Indo por outras latitudes, na canção Terra falas de activismo ambiental e político, que em alguns sítios do planeta estão longe de ser temas separados. Falas da luta pela defesa de ecossistemas que são destruídos por interesses económicos de grandes multinacionais, onde o poder político reprime violentamente as pessoas e colectivos que travam essas lutas.

LV: Sim, acho que esse tema é mesmo aquele que, talvez à primeira vista, diga menos a quem vai ouvir o disco aqui em Portugal. Porque é um assunto que está escondido. Eu comecei a ter contacto com esse assunto através de uma secção especial do The Guardian, que se chama mesmo «Earth Defenders», onde começaram por fazer uma lista das centenas de mortos, assassinados, nesse contexto da defesa das suas comunidades e da defesa da terra.

«Alguém não tem interesse em que as pessoas falem umas com as outras e tem interesse em que estejam separadas para serem mais facilmente manipuláveis»

Os governos abrem a porta às multinacionais sem quaisquer regras ambientais e estas, quando vêem alguma dificuldade, têm capangas ao seu serviço para matar quem for preciso. E essa lista é enorme, essa lista de mortos. Eu achei que isso era um assunto que devia pôr no disco, dar a conhecer a quem ouvisse o disco, porque é um assunto que também é nosso.

AA: Na verdade, é um tema que já abordaste na canção anterior, O Problema É o Sistema, que dizes que também surgiu muito da tua participação ou de teres acompanhado as manifestações em defesa do clima em que muitos jovens afirmam que «o capitalismo não é verde».

LV: Sim, felizmente acredito que este tema está muito presente junto das gerações mais jovens. Quase toda essa letra é composta por frases que eu apanhei na manifestação, que retirei de cartazes da manifestação. «Resolve o problema, boicota o sistema»: isso saiu da boca dos estudantes, dos jovens que estavam nessa manifestação. De repente ver essa malta toda a aderir a um tema, acho que isso é altamente positivo.

AA: E achas que é capaz de contrariar um bocadinho outras concepções mais individualistas de que as soluções para o mundo se resumem a opções pessoais?

LV: Acho que a responsabilidade individual deve existir e toda a gente deve fazer aquilo que está ao seu alcance, porque há pessoas que tiram lixo das praias, que reciclam o lixo e se não fosse isso isto ainda estava pior. Mas isso não é solução, porque basta um governo pôr leis apertadas em relação ao assunto e já fazia o trabalho de milhões de pessoas. Aí é que bate o ponto. Mas, de qualquer forma, acho muito importante o pessoal ir para a rua, desestabilizar e pressionar os governos. O facto de irem todos juntos para a rua acaba também por causar discussão entre eles, e isso é bom.

AA: E para o futuro, que pistas nos deixas? O concerto que foi adiado para Março vai ser apenas com estas dez canções ou trazes outras coisas?

LV: Olha, esse concerto de Março é mais certo que seja em Abril. Vou contar com o mesmo núcleo, com as mesmas pessoas que participaram no espectáculo na Festa do Avante!. O disco foi feito de uma forma muito solitária. Mas, quando se pôs a hipótese de fazer um espectáculo, pensei: «porque não fazer isto de outra forma?». Pôr uma banda grande a tocar isto, com bateria, teclas, guitarra, saxofones, vários cantores, resultou muito bem porque, de repente, a música ficou elástica. As músicas, como já tinham esse tom jazzístico, acabaram por se adaptar, por ser um espaço de exploração para os improvisos dos músicos e o espectáculo acabou por ficar assim, um misto de palavras de ordem puras e duras e desvarios instrumentais, o que me agradou bastante. O que quero fazer agora é exactamente pegar nessa ideia, juntar-lhe as músicas que entretanto acabei para o disco e que não foram incluídas nesse espectáculo da Festa, e mais duas ou três novidades.

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