Ao longo da conversa na Fundação José Saramago, em Lisboa, José Sucena, que foi durante largos anos presidente da Editorial Caminho, cuja chancela marcou grande parte da obra de José Saramago, falou da simplicidade do homem, que o Nobel não conseguiu calar, e do que calou Portugal em relação ao escritor.
O «grande veterano das letras portuguesas», como o designou a Reuters, é até agora o único escritor português distinguido pela Academia Sueca com o Nobel de Literatura, e, reconhece José Sucena, é também ele «único».
Como foi a sua relação com José Saramago?
Eu conheci o José Saramago em 1969, aquando da campanha eleitoral da CDE [Comissão Democrática Eleitoral]. Na altura eu estava na tropa com o Adriano Correia de Oliveira e foi necessário ir falar com o José Saramago no sentido de ele dar uma colaboração específica para a campanha.
Saímos do quartel e fomos ter com ele ao Bairro Alto, porque na altura ele era jornalista d’A Capital. Lá fizemos o que era necessário fazer e só voltei a encontrar o Saramago a seguir ao 25 de Abril. O grande contacto surge quando eu assumo a condição de advogado da Editorial Caminho, em 1978, e depois o lugar de presidente do conselho de administração, em 1983.
Aí nasce não só uma relação de trabalho, mas também uma relação de amizade. O Saramago era de facto um homem muito afável e era fácil ser seu amigo. Saramago era meu amigo e eu era muito amigo dele.
Além de um homem com uma grande ironia, com grande afabilidade, que facilmente criava amigos, era um tipo muito solidário. Era interessante ouvir o que o tinha para dizer.
Embora não tenha sido dessa forma que mais vezes o caracterizaram...
Sim, porque ele tinha uma grande virtude, do meu ponto de vista: é que só falava quando tinha alguma coisa para dizer. De facto tinha aquela cara fechada, mas, quando se abria, era de uma ironia extrema e de uma grande afabilidade. Eu não conheci nenhum escritor na Feira do Livro, antes e depois do Prémio Nobel, que tivesse tanta gente a pedir autógrafos. E ele estava lá horas, horas e horas, e nunca disse: «Eh pá, vou-me embora que estou farto de aturar esta gente.»
As pessoas falavam com ele e ele respondia calmamente, com grande cordialidade, apesar da cara de pau que as pessoas dizem que ele tinha. E tinha, de facto [risos], mas há aqui uma contradição entre o parecer e o ser.
Alimentada por quem?
Mais pela comunicação social, propriamente. Por ele não. Há uma grande diferença entre aquilo que os jornais imaginavam que ele fosse e aquilo que ele de facto era. Não sei se haveria maldade ou ignorância, ou porventura as duas coisas. No fundo, tudo se resume ao facto de ser comunista. Ainda hoje se sente isso.
De que forma se sente?
Por exemplo, nós estávamos à espera que houvesse, de fora para dentro, mais iniciativas, e não notámos isso. Nós vamos fazer várias iniciativas mas todas elas partem daqui: as propostas são daqui, as ideias são daqui, embora haja a colaboração do gabinete do primeiro-ministro, dada a amizade, o respeito e a consideração que o António Costa tinha por José Saramago.
Aliás, é o António Costa que assume a entrega da Casa dos Bicos à Fundação José Saramago (FJS). A partir daí, também sentiu alguma responsabilidade em relação ao Saramago e à importância que o Prémio Nobel tinha, não só para nós, portugueses, como para a língua portuguesa.
Agora, é uma realidade que ainda há um anti-comunismo, não vale a pena estarmos a escamotear isto.
Ainda podem existir resquícios do «episódio Portugal-Espanha»?
Embora os espanhóis tivessem considerado que o Prémio Nobel era também espanhol, nunca senti da parte deles uma necessidade de absorverem essa ideia, nem ciúmes da nossa parte.
O que nós sabemos, porque é uma realidade, é que ao nível do interesse, quer do Estado espanhol, quer da população espanhola, é muito maior esse interesse por parte da Espanha do que por parte dos portugueses. Os espanhóis têm iniciativas autónomas e fazem muita coisa à volta do Saramago. Nós aqui [FJS] empurramos mais as questões porque senão não aparece nada.
Quase me apetece dizer que, se não houvesse fundação, não sei se se falava do Saramago hoje. Durante estes 20 anos, houve (em Espanha) dezenas de iniciativas, em que o Saramago foi convidado para ser homenageado ou para divulgar, pensar e discutir a sua obra, quer do ponto de vista ideológico, quer do ponto de vista filosófico.
Como, por exemplo, no México. O México tem uma paixão violentíssima pelo Saramago, ainda hoje. De tal maneira que há uma altura em que ele está na Cidade do México para uma conferência que estava prevista num teatro e a afluência começa a ser tão grande que a organização teve que mudar desse teatro para um muitíssimo maior e colocar ecrãs de televisão na rua porque o largo em frente estava cheio de pessoas que queriam entrar e não podiam.
Também por iniciativa nossa, concretamente da Pilar del Río [presidente da FJS], Portugal é o país convidado da Feira Internacional do Livro de Guadalajara [México], que é agora em Novembro, em homenagem a Saramago e por ocasião dos 20 anos da atribuição do Nobel. Quer a Espanha, quer o México são para mim dois pilares de divulgação do pensamento e da obra do Saramago, muito mais do que em Portugal.
A obra de classe pode ajudar a explicar esse esquecimento?
Pode ter a ver com a obra, sim. Por ser uma obra marcadamente política e de classe, embora não seja partidária. Ele põe na obra o quê? As preocupações que ele tem em relação à própria humanidade. Quando ele recebe o Prémio [Nobel], comemora no seu discurso os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Digamos que a obra dele é estruturada nessa preocupação da defesa dos direitos humanos.
Sem esquecer as próprias origens…
Sim, aliás, também nesse discurso ele fala das suas próprias origens e da situação complicada que foi a infância e a juventude. É um homem que, sei lá, quando escreve A Caverna [2000], está a denunciar a sociedade de consumo que estamos a construir, que não pensa em mais nada a não ser no consumo. No Ensaio sobre a Cegueira [1995] denuncia a violência do homem em relação ao outro homem. Aliás, ele tem uma frase, não sei se sou capaz de dizer ipsis verbis mas a ideia é esta: «o homem é o único animal que mata os outros sem ser para se alimentar». No Ensaio sobre a Cegueira, o que ele quer dizer um pouco é isto.
«Em Frankfurt, no dia 9 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem-haja, portanto.»
excerto do discurso de josé saramago em estocolmo, 10 de Dezembro de 1998
No Memorial do Convento, que é uma obra marcadamente política em defesa da classe trabalhadora, o que é que ele quer dizer com aquilo? Que aquele trabalho, aquela obra brutal, lindíssima numa perspectiva arquitectónica, e com uma volumetria que assusta, é consequência do trabalho e dos trabalhadores. Não é o dinheiro do rei D. João V quem faz aquilo, é quem trabalha. Isto tem um peso específico, não há nenhum escritor em Portugal que se pareça com Saramago em relação a isso.
Como foi a relação dele com o PCP ao longo dos anos?
Foi sempre uma relação cordial. Ele tinha óptimas relações com o Álvaro Cunhal [1913-2005] e com o José Casanova [1939-2014]. Nunca vi o Saramago contra o partido, [esteve] sempre disponível para o partido, embora tivesse quatro ou cinco coisas em que manifestou uma opinião contrária ao partido. Fazia parte dele, toda a gente sabia que ele era assim. Quando ele não concordava, dizia que não concordava.
Mas sempre foi um homem solidário com o partido, disponível para aparecer nas coisas do partido. As discordâncias nunca foram motivo para grandes perturbações.
Quando sai de presidente da Assembleia Municipal [Março de 1990], não é por alguma divergência com o PCP, mas porque diz: «Eu não percebo nada disto, isto é uma grande confusão, chateia-me. Mas porque é que eu me meti nisto?!». Ele sai porque sente que não tem nem tempo, nem capacidade, nem aptidões para ser um bom presidente da Assembleia Municipal. Ou seja, sai porque ele próprio está em divergência com o cargo.
Regressando ao Nobel, que memórias guarda do dia em que foi anunciado o Prémio?
Eu estava na Beira, na qualidade de presidente da Editorial Caminho. O Presidente da República [Jorge Sampaio] e o primeiro-ministro [António Guterres] fizeram uma viagem a Moçambique e convidaram entidades de vários domínios, da economia, da cultura, e eu fui também.
Estava num grande almoço que Portugal estava a dar às entidades moçambicanas e a certa altura aparece-me o Paulo Dentinho [RTP] e disse: «O Saramago ganhou o Nobel!»
Pediu-me logo uma entrevista, confesso que já não me lembro o que lhe disse, para além da satisfação, do orgulho e da vaidade, aquelas coisas que saem por muito que a gente queira evitar.
Como se desenrolaram as coisas a partir daí?
Também tinha ido o Norberto Pilar, que era o presidente dos CTT na altura. Deu-me os parabéns, fez um grande elogio e disse que tinha uma grande admiração pelo Saramago.
Depois chegámos a Lisboa e mais tarde telefonou-me. Disse-me que precisava de falar comigo. «Vamos fazer um selo a propósito do Saramago», disse. Eu respondi: «Óptimo, mas deixe-me primeiro falar com o Saramago, sabe que o homem é esquisito nestas coisas.»
E sempre foi, não se queria expor. Eu liguei-lhe e disse-lhe: «Olha que os CTT querem fazer-te uma homenagem, fazer um selo. O que é que tu achas?». E o Saramago, que já estava na cama, respondeu: «Se eles querem, diz lá que sim.» E lá fomos fazer o selo.
E quando é que está pela primeira vez com Saramago, depois da notícia do Nobel?
Em Lanzarote. Há uma guerra entre o João Soares [presidente da Câmara de Lisboa] e o Manuel Maria Carrilho [ministro da Cultura], sobre quem vai a Lanzarote buscar o Saramago. Acabou por ganhar o Carrilho. Além dele, foi o José Manuel dos Santos, que era na altura o assessor da Presidência da República para a área da Cultura, foi o Zeferino Coelho [editor], fui eu, e não me lembro de mais ninguém.
Almoçámos em casa do Saramago e viemos embora: ele, a Pilar e a Fátima Campos Ferreira, que estava lá a fazer uma reportagem, também veio. Nunca mais me esqueço disso. Veio meter-me uma cunha para vir connosco no avião. Eu não a conhecia de lado nenhum mas o homem ganhou o Nobel e portanto éramos todos amigos. Era uma espécie de 25 de Abril: conhecíamo-nos uns aos outros, dávamos abraços uns aos outros.
Aliás, há um livro que vai sair de um colaborador da Fundação José Saramago sobre o dia em que os portugueses subiram todos três centímetros [Um país levantado em alegria, de Ricardo Veil]. As pessoas que iam assistir a qualquer iniciativa de Saramago, parecia que se conheciam todas. O Saramago fez com que fôssemos todos amigos, era o ponto de convergência para aquela malta toda.
Qual era o sentimento de Saramago?
Sempre muito calmo, muito agradado como é evidente, mas muito calmo, com aquela fleuma que sempre teve. Nunca foi um homem de exageros, nem de excessos. Do ponto de vista público, muito introvertido, muito concentrado, só dizia aquilo que era preciso dizer.
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