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A nossa paixão não tem divisão

Por vezes, é preciso renascer para reaprender aquilo que, de facto, nos une num propósito comum. Uma história recente do Clube de Futebol Os Belenenses.

Os adeptos não faltaram, debaixo de uma chuva torrencial, em Mem Martins, a 25 de Novembro de 2018, para ver o CF Belenenses vencer por 1-2 a equipa da casa, o Mem Martins SC.
Créditos / Os Belenenses

Recomeços

Há muito tempo que não chovia assim, sem tréguas, durante horas. Íamos todos preparados para isso, já tínhamos estado naquele cenário, mas, se calhar, por motivos diferentes. O motivo, desta vez, era suficiente para nos tirar de casa a um domingo qualquer, debaixo da tempestade, deixando a família e o conforto de uma sala que, cada vez mais, se prepara para as tardes de inverno, no tempo livre que nos resta. Parece quase desperdício. Mas o que seria das comunidades se só nos déssemos às comodidades? A comunidade impõe sacrifício e a recompensa é, por vezes, tão simples como a alegria de um golo marcado em sofrimento aos noventa e poucos minutos.

Talvez quem leia estas linhas pense que o clubismo é uma identidade, que é cultural. E, sim, talvez seja na maioria dos casos. Mas comigo, que cheguei aqui há dois meses, foi a convicção que me trouxe. Em minha casa, toda a gente era do Benfica, apesar de nunca se ter morado, sequer, em Lisboa. O Benfica, como o Porto ou o Sporting, é como um genérico que tomamos para satisfazer a nossa sofreguidão ganhadora. Ao longo das últimas décadas, houve muitos clubes que foram perdendo dimensão e outros, muitos menos, que foram crescendo em simpatizantes, em clientes. As crianças são iniciadas na paixão pelo símbolo e pela cor desde muito cedo e, como um batismo, sem grande hipótese de escolha. Depois, diz-se que se nasceu do clube A ou B. Claro que há aqueles miúdos que se fidelizam aos clubes para contrariar (o pai ou os amigos). Os media, desesperados por audiência, alimentam com a devida desproporcionalidade esta ficção sobre o clubismo moderno que vivemos em Portugal. Este diagnóstico já é um lugar-comum.

Mas o meu caso é diferente. No final de 2017, um amigo começou a contar-me as peripécias que, desde 2012, o Clube de Futebol Os Belenenses andava a viver. Depois de um período em que a situação desportiva e financeira do clube se havia agravado, e com as oportunidades de negócio que a lei das sociedades desportivas abriu para o mundo empresarial, o Belenenses viu a maioria das suas ações vendidas a uma empresa, a CodeCity Sports Management, que passou a administrar a Sociedade Anónima Desportiva (SAD). As relações entre a SAD e o Clube foram-se deteriorando e, por causa de uma suposta quebra de um protocolo parassocial entre as duas instituições, os sócios viram-se impedidos judicialmente de votar a recompra da maioria daquelas ações – uma das condições acordadas em 2012.

«As associações e os clubes desportivos são os seus sócios, as insígnias e o património histórico. A identidade é a soma destes factores e a consciência da pertença»

Ao longo dos meses seguintes fui acompanhando a circunstância insólita de um clube pelo qual, até então, tinha apenas uma simpatia antiga. Recordava, amiúde, as equipas de Marinho Peres ou de João Alves, da alegria a jogar no soalheiro Restelo, nos anos 90. Nada, de resto, me ligava ao Belenenses.

Mas, quando, no final de Junho, o meu amigo se preparava para, com os outros sócios, votar, em Assembleia Geral, a não renovação de um contrato que dava à SAD direito ao uso das insígnias do clube, das suas instalações e a ostentar o seu património histórico, não hesitei e afirmei que, se se decidissem pela inscrição do Belenenses nas distritais, me solidarizaria com eles e me tornaria sócio. No final daquela longa noite, apreensivo, enviei-lhe uma mensagem para saber o resultado e recebi a resposta que, de certo modo, esperava: «está feito». Foi nesse preciso momento que me tornei adepto do Clube de Futebol Os Belenenses.

Em meados de Outubro, como prenda de aniversário, um outro amigo, que se havia mudado para a Ajuda havia poucos meses e decidido juntar-se a mim nesse movimento solidário com os rapazes da praia1, ofereceu-me a inscrição no clube, e assim formalizámos a nossa intenção. O meu vínculo ao Belenenses era, agora, ideológico. Como poderíamos nós tolerar uma sociedade que permite que a vontade dos sócios não seja, a qualquer momento, soberana? Como poderíamos aceitar que o desporto moderno tivesse mais preocupações financeiras do que sociais e culturais? Como poderíamos, enfim, deixar o nosso egoísmo competir na linha da frente, abdicando da nossa dignidade? Se a resposta dos Belenenses foi inequívoca, a nossa também não poderia deixar de sê-lo.

A lei do negócio desportivo

No início dos anos 90, nasceu a Lei de Bases do Sistema Desportivo e, sob o pretexto de que a gestão da modalidade não era transparente e rigorosa, aprovou-se em Assembleia da República a primeira legislação que criava a opção de aqueles clubes se constituírem como sociedade desportiva, num regime especial idêntico ao das sociedades anónimas. Em meados dessa década, é publicado um decreto-lei regulamentar, logo seguido de um novo decreto-lei para o rever, o qual considerava o primeiro inadequado por interditar «às sociedades desportivas a distribuição de lucros, retirando-lhes, assim, um dos principais atractivos para a sua constituição». Começava, aqui, no ano de 1997, a narrativa que nos permitiu, gradualmente, chegar à nossa surpreendente realidade.

Apesar de, até então, a constituição de uma sociedade desportiva ser opcional, uma parte significativa dos clubes a jogar nas ligas profissionais de futebol (I e II Ligas), deslumbrados pelas oportunidades do futebol moderno, seduzidos pela possibilidade de sacudir as dívidas para debaixo do tapete, entregando-as às SAD como se fossem gestores de condomínios, e entusiasmados com o futuro das marcas e da expansão do negócio, constituiu-se como sociedades desportivas, a maioria em sociedade anónima. Foi com esta tendência que, em 1999, o Clube de Futebol Os Belenenses alinhou.

«[O] decreto-lei, n.º 10/2013 [...] obriga os clubes de futebol a constituírem-se como sociedade desportiva, rejeitando a hipótese de estes competirem nas ligas profissionais com o estatuto de pessoa colectiva sem fins lucrativos. O futebol-negócio passa, então, a ser legitimado pela lei, sem outra opção»

Numa sociedade predominantemente capitalista, foram muito poucos a questionar os efeitos que este novo modelo de gestão e institucionalização dos clubes teria. Todo o espectro do futebol mudava, então, a uma velocidade elevada e, com ele, nascia uma nova era de especulação e mercadorização dos passes dos jogadores, do património imobiliário dos clubes, da publicidade, dos direitos televisivos e dos símbolos que, até há pouco tempo, não eram senão insígnias identitárias.

Esta globalização do futebol, promovida entusiasticamente pela FIFA e pela UEFA, entrou no nosso território através da Assembleia da República e tudo aquilo que veio transformar normalizou-se, banalizou-se. Porém, insatisfeita com a resposta de muitas organizações, em 2013, a Assembleia da República volta a aprovar um decreto-lei, n.º 10/2013, hoje em vigência, que obriga os clubes de futebol a constituírem-se como sociedade desportiva, rejeitando a hipótese de estes competirem nas ligas profissionais com o estatuto de pessoa coletiva sem fins lucrativos. O futebol-negócio passa, então, a ser legitimado pela lei, sem outra opção.

Esse dever legal, contudo, era já uma realidade de mercado para muitos clubes. Confrontados com inúmeras dificuldades financeiras e com gestões amadoras e, muitas vezes, pouco transparentes, a solução SAD veio resolver, a curto-prazo, muitas crises estruturais. Foi assim que o Belenenses, em 2012, entregou a maioria do capital social da SAD à empresa CodeCity Sports Management, de Rui Pedro Soares, mantendo o clube o mínimo de participacção exigido por lei – 10%.

A par desta compra, estabeleceu-se um acordo parassocial onde, entre outras regulações, estipulava-se que o clube poderia recomprar aquele capital social, voltando a ser o sócio maioritário. O acordo acabaria por ser resolvido unilateralmente pela CodeCity, alegando incumprimento contratual por parte do clube – alegações essas que convenceram os tribunais e que deixaram o Belenenses refém de uma empresa e dos seus interesses comerciais.

A direção que assumiu, entretanto, o comando do Clube, com o apoio inequívoco dos sócios, decidiu não renovar um outro contrato com o CodeCity, em fevereiro de 2018, onde se estabeleciam as regras de utilização das instalações do complexo do Restelo, os símbolos, o hino do Clube, entre outros elementos estruturantes da relação formal entre ambas as instituições. O contrato, alertou o Clube, teria o seu fim em junho de 2018, mas era proposto um novo contrato à empresa, o qual esta ignorou. O Codecity acabaria por ir jogar para o Estádio Nacional, no Jamor, mantendo-se na Primeira Liga, enquanto o Belenenses se inscreveria na última divisão - aquela que a Federação Portuguesa de Futebol permitiu – a I Divisão da Associação de Futebol de Lisboa. Ao mesmo tempo, foi interposta uma providência cautelar que requeria a cessação da utilização de todos os símbolos do clube e do seu hino pelo CodeCity, ação esta que o tribunal deu como procedente.

Mas que futuro estará reservado ao Belenenses se uma lei que ignora os princípios básicos do associativismo e promove o negócio vier a triunfar sobre o espírito inicial da vida em comunidade? É esta dúvida que acompanha todos aqueles que querem ver o Belenenses regressar ao seu histórico lugar. A resolução de todo este conflito poderá estar na venda dos 10% do capital social da SAD, detidos pelo Belenenses – que correspondem, aliás, à exigência legal de as SAD terem um clube fundador que sustente a sua existência e participação nas competições. E, nesse momento, tornar-se-á difícil para as entidades oficiais justificar a presença de uma empresa sem clube de origem num campeonato profissional de futebol. Na prática, esse suporte já não existe.

Voltarás onde pertences, nunca te deixamos só.

À parte de todo o conflito institucional, a vida no Restelo está revigorada e preparada para a celebração do centenário, em 20192. Por todo o recinto, famílias, crianças, adolescentes e adultos percorrem alegremente o espaço que sentem como seu e partilham as alegrias e tristezas das competições de andebol, futsal, voleibol, rugby, basquetebol e do tão popular desporto de que nos temos ocupado por aqui – o futebol. E, no fundo, é a isso que tudo isto se resume: à identidade popular do desporto, à relação dos indivíduos com o desporto, e que, por necessidade e comunidade, os leva a juntarem-se e a formarem coletivos sob a mesma insígnia, a mesma cor e o mesmo princípio.

As associações e os clubes desportivos são os seus sócios, as insígnias e o património histórico. A identidade é a soma destes fatores e a consciência da pertença. Por vezes, é preciso renascer para reaprender aquilo que, de facto, nos une num propósito comum ou para que outros, como eu, sintam a causa como sua, como uma demonstração daquilo que de mais belo há na nossa vida coletiva, sem outro interesse que não esmagar o próximo adversário dentro das quatro linhas, libertando as agruras do dia-a-dia em cânticos épicos com a mais genuína das poesias.

Entrar no Restelo todos os fins-de-semana é sentir a recuperação desse espírito inicial do desporto popular. Nas bancadas, a alegria de uma onda azul que sobe do Tejo e se estende até ao topo da bancada tem reforçado o papel de todos aqueles que fazem o Belenenses; uma alegria que se faz sentir nas comemorações dos golos, quando os jogadores, agradecidos, abraçam os adeptos; a persistência numa missão que sentem os adeptos nas deslocações aos outros campos, debaixo da mais inibidora das tempestades; uma claque que tem dado apoio incondicional e é a imagem de um clube que pertence aos sócios, dentro da sua diversidade.

Escrevo estas linhas após um dia exaustivo de trabalho, poucos dias antes de regressar ao Restelo. Anseio por domingo, por chegar àquele recinto que se acomoda naturalmente numa das zonas mais burguesas da cidade de Lisboa, mas onde a massa adepta é predominantemente popular. Entusiasmo-me com a ideia de entrar na sede da Fúria Azul, cumprimentando e sendo cumprimentado por todos os meus companheiros, novos e velhos, homens e mulheres, que desde 1984 têm construído esta tribo de camaradagem e dedicação, partilhando duas ou três minis; agarrar nas tarjas e nas bandeiras e partir para a bancada, onde, com a mais verdadeira das paixões, cantaremos em uníssono os versos inscritos num hino histórico: «hoje, como antigamente, nada temos que temer. Belenenses para a frente com a certeza de vencer».

  • 1. A propósito dos rapazes da praia – como eram chamados, inicialmente, os jogadores e sócios do CF Os Belenenses – leia-se o texto do jornalista Homero Serpa, ele próprio um belenense: «o velho Belenenses [foi] erguido por gente da praia, por homens modestos, que viviam no bairro operário e levaram para o seu clube a têmpera de quem sabe quanto custa a vida e quanto esforço é preciso para a enfrentar e vencer. Por isso, a camisola azul dos Belenenses não está ligada apenas ao mar em estreita ligação com a Cruz de Cristo, que de Belém saiu a bordo das caravelas, mas ao fato de ganga, também azul». Transcrição do blogue Fúria Azul, em post de 23 de Setembro de 2009.
  • 2. Artigo sobre a fundação do CF Os Belenenses, no sítio MaisFutebol, em artigo de 22 de Setembro de 2014.

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