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O fantasma do Borgen passado

Em Borgen, a ação política é um exclusivo da mente brilhante dos progressistas iluminados, para quem a nova política é uma questão de senso comum mágico, e onde nós, o povo, somos meros figurantes.

A actirz Sidse Babett Knudsen interpreta a personagem Birgitte Nyborg Christensen, na série <em>Borgen</em>.
CréditosMike Kolloffel / Irish Times

Com as celebrações de Abril e as jornadas de Maio, entre conversas soltas e outras mais organizadas, a realidade volta a convocar-nos. O nosso retrato social revela-se, também, nestas iniciativas coletivas em que nos encontramos e nos confrontamos com uma realidade material bem longe da ficção das séries, dos filmes e até mesmo da comunicação social, que em período de confinamento resgatou a nossa atenção.

«Ao longo de três temporadas, entre vitórias e derrotas, acordos com todas e quaisquer forças partidárias e decisões com forte influência mediática, há um protagonista que nunca irá aparecer, como se nem sequer existisse: o povo dinamarquês»

Nome do Autor, breve descrinção

Poderia, aqui, iniciar uma crítica violenta, por exemplo, à reportagem da RTP sobre o 1.º de Maio, onde se colocaram no mesmo prato da balança as iniciativas da CGTP e da UGT, onde se entrevistaram dirigentes partidários que, no ano passado, abandonaram os trabalhadores ou outros que valorizam a cedência dos trabalhadores em toda a linha. Mas, depois desses dias na rua, chego a casa, estico as pernas e leio, numa rede social, um elogio a uma série de ficção que, no início da década de 2010, alcançou algum sucesso entre a «geração mais bem preparada de sempre» – a série dinamarquesa Borgen – e, nesse momento, tive um choque de realidades.

De tempos em tempos, aparece um produto de ficção que faz dos corredores do poder o seu tema central. Com uma intriga orientada para os dilemas éticos, para a moralidade, para a realpolitik e para a fulanização, a ficção política contemporânea tem sido um dos instrumentos mais valiosos para a consolidação da ideia de que no centro é que está a virtude. No final da década de 1990, esse produto foi West Wing (Os Homens do Presidente). Em 2010, Borgen adaptava a narrativa a uma União Europeia que tremia com os efeitos da crise e que se preparava para entrar num grande período de desconfiança em relação às suas instituições. O sucesso imediato da série em países como Portugal, que a transmitiu na RTP2, anunciava as dificuldades que a contestação à política neoliberal europeia iria enfrentar.

Borgen retrata o percurso de uma mulher, Birgitte Nyborg, e do seu partido de moderados – uma espécie de partido do extremo-centro que pretende trazer frescura para uma cena política envelhecida, carregada de vícios, escândalos e corrupção. Sem uma base ideológica definida, a agenda de Nyborg são as suas boas-intenções, uma política abstrata de inclusão e o facto de ser a primeira mulher dinamarquesa a liderar um governo.

«Todas as decisões do poder político são tomadas nos corredores, todos os dilemas éticos são exclusivamente pessoais e toda a ação política só conhece escrutínio mediático. Sem uma única referência ao movimento popular, aos sindicatos ou a outras associações, os autores da série ignoraram o papel do trabalho na construção de uma sociedade democrática»

Nome do Autor, breve descrinção

Ao longo de três temporadas, entre vitórias e derrotas, acordos com todas e quaisquer forças partidárias e decisões com forte influência mediática, há um protagonista que nunca irá aparecer, como se nem sequer existisse: o povo dinamarquês. Todas as decisões do poder político são tomadas nos corredores, todos os dilemas éticos são exclusivamente pessoais e toda a ação política só conhece escrutínio mediático. Sem uma única referência ao movimento popular, aos sindicatos ou a outras associações, os autores da série ignoraram o papel do trabalho na construção de uma sociedade democrática. Vemos reuniões com grandes empresários e magnatas, instrumentalização das relações internacionais, debates e entrevistas televisivas e muita tática de gabinete. O cidadão comum, a classe trabalhadora, as crianças e os idosos e todos os seus interesses, esses, nada – nem um sinal. Em Borgen, a ação política é um exclusivo da mente brilhante dos progressistas iluminados, para quem a nova política é uma questão de senso comum mágico, e onde nós, o povo, somos meros figurantes para que as ruas não pareçam tão despidas.

Foi por esta altura que em Portugal, por exemplo, nasceu um partido com características muito semelhantes às dos Moderados de Borgen – o Livre. Com a entrada da Troika, há precisamente 10 anos, o Livre surgia como um partido europeísta, sofisticado e moderno num país que sofria as consequências de uma crise agravada pelo papel das instituições europeias e por um modelo político-económico neoliberal. Mas o partido idealizado por Rui Tavares trazia a pretensão de unir a esquerda. Numa das suas primeiras ações públicas, em pleno período de intervenção da Troika, o Livre levava bandeiras da União Europeia para a Avenida da Liberdade nas celebrações do 25 de Abril. Parecia uma piada de mau gosto. A união da esquerda era, afinal, um contributo para a sua divisão. Sem qualquer intervenção no meio sindical e com preocupações que pouco diziam à classe trabalhadora, o programa do Livre parecia inspirado pelo guião de Borgen, na sua obsessão com uma inclusão abstrata definida pelas cúpulas e com um diálogo multilateral que aceitasse que no meio é que está a virtude. E, na verdade, nada o distinguia de outras forças partidárias, algumas até já bem envelhecidas.

«Borgen é um reflexo da radicalização do extremo-centro e tem o seu papel na relativização dos perigos de uma política de bastidores, inspirada por valores morais de uma classe emergente, que quer reconfigurar a cena política no topo da pirâmide do poder»

Nome do Autor, breve descrinção

Talvez seja rebuscado dizer que Borgen inspirou alguns movimentos políticos da última década. Mas, podemos dizer, com toda a certeza, que é um bom retrato desses movimentos que, de vez em quando, lá vão surgindo, crentes de que antes do seu tempo não havia nada, de que há uma velha política que tem de ser destruída em nome de uma nova política, mais apelativa e pragmática, onde a unidade é sinónimo de consenso pluripartidário e através dos quais se faz tábua rasa de todo o processo de conquistas e recuos.

Borgen é um reflexo da radicalização do extremo-centro e tem o seu papel na relativização dos perigos de uma política de bastidores, inspirada por valores morais de uma classe emergente, que quer reconfigurar a cena política no topo da pirâmide do poder. Para a realização deste projeto, torna-se essencial uma comunicação social que viva aqueles bastidores como uma parte integrante e que sirva de palco à intriga; uma comunicação social, de resto, que também queira interferir nesse projeto e veja no centro político a única solução para a harmonia social.

«Para a realização deste projeto, torna-se essencial uma comunicação social que viva aqueles bastidores como uma parte integrante e que sirva de palco à intriga; uma comunicação social, de resto, que também queira interferir nesse projeto e veja no centro político a única solução para a harmonia social»

Nome do Autor, breve descrinção

Poderíamos, por isso, dizer que Borgen era uma excelente série, caso se tratasse de uma sátira. Mas, na certeza de que não interpretei mal, trata-se de uma apologia séria de um idealismo moralista que rapidamente se confronta com a sua inoperância. Os seus autores nunca pretenderam, em momento algum, fazer a crítica da própria ideologia dominante, ao contrário do que acontece, por exemplo, na série francesa Baron Noir.

Por ser uma obra de ficção, corre o risco de o seu alcance ser relativizado. Acontece que a ficção também é formadora de opinião e em Borgen sugere-se que o poder democrático pode ser exercido exclusivamente pelas cúpulas, que a vida é assim e não há nada a fazer. O que produtos de entretenimento como este fazem é contribuir para a desmotivação política dos indivíduos e convencê-los de que o seu único papel é o de mero espectador.

Ao longo dos anos, Borgen passou pelos pingos da chuva como uma boa série política. Foram muito raras as críticas que li sobre este produto do entretenimento nórdico. Agora disponível numa das plataformas de streaming mais famosas do mundo, parece ter voltado algum do entusiasmo que suscitou aquando da sua estreia.

Uma década depois da entrada da Troika em Portugal e de várias dinâmicas que nos foram distraindo, torna-se fundamental regressar a esta caricatura política com um olhar crítico e, com exemplos bem reais, demonstrar que a democracia é feita nas ruas, nos bairros, nas associações, nos sindicatos e não na sala de estar das elites.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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