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Uma mão que filma a outra

Eliminar o cânone de produção alienante do modelo industrial e ensaiar novos caminhos estéticos.  De Jean-Luc Godard ao Dogma 95 de Lars von Triers e Thomas Vinterberg, das pioneiras Aaton ao formato MiniDV.

Cena do filme «Festen», de Thomas Vinterberg (Dinamarca, 1998).
Créditos/Lars Høgsted/Det Dansk Filminstitut

Muito antes da digitalização, vários artistas e cineastas utilizaram materiais distintos dos convencionalmente usados no campo profissional como ferramentas ao serviço da sua escrita cinematográfica. Diversas vezes, estes recorreram ao registo com câmaras e suportes destinados ao mercado amador (primeiramente, aos formatos de película, depois, também aos de vídeo, quando estes passaram a estar disponíveis). Isso ocorreu em resultado de motivações diversas, tais como a necessidade de contenção orçamental, a rejeição do modo industrial ou a vontade de ensaiar novos caminhos estéticos.

Nesta lógica, no decurso da década de 1970, Jean-Luc Godard imaginou uma nova câmara que pudesse combinar uma elevada qualidade de imagem com uma real portabilidade. O cineasta propôs-se trabalhar em conjunto com Jean-Pierre Beauviala, criador das câmaras Aaton, para desenvolver a 35-8, um híbrido entre uma câmara de 35 mm (capaz de obter registos com uma elevada resolução) e uma Super-8 (leve e fácil de transportar).

O propósito do cineasta, expresso por Alain Bergala num texto introdutório a uma conversa entre aquele e Beauviala, publicado na revista Cahiers du Cinèma, consistia na procura de libertar a mise-en-scène dos condicionamentos a que estava sujeita em resultado do «(...) equipamento disponível, assim como de certos hábitos de trabalho que têm a ver com a natureza da equipa de filmagem convencional (o« número de pessoas que a constituem, a divisão do trabalho, as normas profissionais)» [1985 (1)]. Assim, ainda segundo Bergala, Godard almejava, «encontrar novos lugares, novos ângulos, diferentes pontos de vista» (1985), em suma, encontrar «uma maneira totalmente diferente de filmar» (1985).

A pretensão de Godard, como ficou registado no seu debate com Beauviala, não foi fácil de concretizar. Vários condicionalismos de ordem técnica impediram a concretização dessa câmara. A digitalização do cinema, contudo, parece ter encontrado a resposta. A câmara imaginada por Godard, que o cineasta desejou «ter sempre disponível no porta-luvas do seu automóvel» (1985), foi finalmente criada.

Em 2010, aquele realizador fez a longa-metragem Filme Socialismo (Film Socialisme) com pequenas câmara digitais amadoras (usando, maioritariamente, o modelo Canon 5D, uma DSLR) que possuíam, como antes pretendera, a portabilidade da Super-8 e uma qualidade aproximada à de 35 mm. Em 2001, Godard havia filmado parte da sua longa-metragem Elogio do Amor (Éloge de l’amour) com recurso a câmaras DV; antes, em 1975, fora um dos pioneiros na inclusão do vídeo analógico no cinema profissional comercial. No registo com estes materiais, já obtivera a portabilidade pretendida. Contudo, foi apenas no filme de 2010 que conseguiu aliar-lhe a elevada resolução.

Curioso notar que em Filme Socialismo a introdução dos novos materiais se torna um dos temas do filme. Esta ideia nunca é expressa de forma declarada, mas intuída pelo registo que, ocasionalmente, evidencia o efeito da pixelização ou de perda de frames, traços exclusivos do digital, ou ainda deficiências na captação sonora, resultantes da utilização de microfones de baixa qualidade.

No decurso dos anos 1990, começaram a ocorrer mudanças significativas no domínio dos instrumentos de registo e edição digital. Estas originaram transformações nas práticas e manifestações cinematográficas.

Em 1995, dois cineastas dinamarqueses, Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, idealizaram a fundação de um novo cinema contra o que designavam «o cinema de ilusão», ou seja, um cinema refém de artifícios estilísticos, proporcionados pela crescente facilidade de construção técnica de efeitos visuais em Hollywood. Com o propósito da sua concretização, redigiram o manifesto Dogma 95, a sua declaração de intenções, que incluía um conjunto de normas práticas denominadas por voto de castidade.

Essas regras (entre as quais se incluíam, por exemplo, a obrigatoriedade do manejamento da câmara à mão, a não utilização de música extradiegética ou a proibição de iluminação especial), propunham eliminar o cânone de produção alienante do modelo industrial, privilegiando, em alternativa, a verdade decorrente da interação entre o trabalho dos atores e o seu ambiente de atuação. Se, de certa forma, estes propósitos não se distanciavam muito de alguns já propostos por outros movimentos de vanguarda, que pretenderam, mediante recursos de baixo orçamento, romper com as normas de produção e a gramática industrial vigente, a nova tecnologia, tornada disponível na mesma fase, facilitou a sua concretização.

O primeiro filme a ser realizado sob a égide do movimento assim criado, identificado como a sua Opus #1, foi A Festa (Festen) dirigido, em 1998, por Vinterberg. Como todos os filmes subsequentes, este não cumpriu todas as regras definidas pelo voto de castidade. Aliás, pouco tempo depois da sua formulação, a nona regra estabelecida naquele documento, que determinava que o filme tinha de ser construído no formato académico de 35 mm, foi alterada. A nova versão indicava que o mesmo podia ser registado noutros suportes, desde que posteriormente transferido para 35 mm, para exibição em sala.

A Festa foi filmado na íntegra no formato MiniDV. Este formato, lançado no mercado em 1996 – portanto, ainda indisponível na altura da redação do manifesto – e a forma como foi apropriado naquele filme por Vinterberg e pelo seu diretor de fotografia, Anthony Dod Mantle, definiu, mais do que o texto original do movimento, os modos de produção e a estética que lhe ficariam associados. Dada a baixa resolução que aquele equipamento era capaz de registar, comparativamente aos formatos de cinema convencionais, as imagens eram pouco definidas e frequentemente pixelizadas. Devido à sua elevada portabilidade, o registo era instável, demasiado próximo dos objetos, focado nos detalhes.


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