E de repente tudo se tornou sustentável. Dos mais solenes discursos dos poderes à publicidade mais assanhada instando aos mais desenfreado consumismo, a «sustentabilidade» tornou-se um mandamento inapelável; ignorando nós se muitos dos doutrinadores saberão do que estão a falar. Em prol da sustentabilidade faz-se uma mixórdia de conceitos onde cabem a ecologia, o combate às mudanças climáticas, a pegada de carbono e respectiva neutralização, o efeito de estufa, o degelo, as energias renováveis, o desenvolvimento sustentável; num ápice, as coisas que consumimos no dia-a-dia tornaram-se recicláveis, compostáveis, biodegradáveis, obrigatoriamente biológicas. Circula muito e constante ruído para nos obrigar a assimilar coisas de que a generalidade das pessoas não fazem ideia. Ora nada disto é inocente, conjuntural e fortuito.
«O capitalismo, o monstro cujas entranhas geraram a crise ambiental em que grande parte do planeta está mergulhado, promete agora limpar a sujeira que provocou – gerando para isso novos negócios»
Embalados por tão poderosa como compulsória campanha, caminhamos assim, promete-se, para o melhor dos mundos. E, milagre dos milagres, nada mudou para que isso acontecesse, a não ser «a consciência» do sistema. O capitalismo, o monstro cujas entranhas geraram a crise ambiental em que grande parte do planeta está mergulhado, promete agora limpar a sujeira que provocou – gerando para isso novos negócios. E já sabe como vai fazê-lo: através do desenvolvimento sustentado. Isto é, o capitalismo, na sua versão mais agressiva, o neoliberalismo, tornou-se «verde», ecologicamente correcto.
Alcançou-se assim a quadratura do círculo. E, a par da crise ambiental, estamos agora mergulhados também na mais insustentável das mentiras.
A mentir desde 1987
Foi em 1987 que, através do chamado «Relatório Brundtland», a Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU cunhou o conceito de desenvolvimento sustentado ou sustentável. O que corresponderia a «satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras em suprir as suas próprias necessidades». Para isso funcionar haveria, pois, que «satisfazer as necessidades do presente», meta da qual nos vamos afastando cada vez mais; e haveria também, nos termos do documento, que «criar e aplicar novas normas para o comportamento pessoal e recíproco ao nível do indivíduo em todos os países, a fim de alcançar o desenvolvimento sustentável». O método a seguir: o ardil da propaganda.
«a sustentabilidade transformou-se num chavão, numa muleta semântica para garantir o respeito ambiental sempre que seja necessário vender uma intenção, promessa ou decisão do sistema dominante»
A partir de então, a sustentabilidade transformou-se num chavão, numa muleta semântica para garantir o respeito ambiental sempre que seja necessário vender uma intenção, promessa ou decisão do sistema dominante. Na década de noventa do século passado, segundo técnicos que trabalharam na instituição, o Banco Mundial inseria pelo menos uma vez por página dos seus documentos e relatórios as palavras «sustentável» e «sustentabilidade». Não é necessário recordar o papel do Banco Mundial como pilar do autoritarismo neoliberal e da asfixia globalista. Mas, para que conste, a sua conduta ecologicamente correcta dir-se-á irrepreensível.
Digamos que o conteúdo do citado «Relatório Brundtland» foi o primeiro ataque em forma do capitalismo nos terrenos da ecologia e das preocupações ambientais e pacifistas que emergiram com pujança na década de oitenta, precisamente como oposição ao aumento do poder predador do sistema imperial dominante. Na Alemanha Federal, o Partido Verde conseguiu afirmar-se e quebrar o monopólio bipartidário; é importante não confundi-lo, porém, com o actual Partido Verde alemão e respectivas sequelas transnacionais, convertidos ao colaboracionismo dentro do sistema neoliberal, de que é exemplo maior o grupo Verde no Parlamento Europeu.
«da mesma maneira que os partidos oficiais ecologistas foram convertidos à sustentabilidade regimental, deste conceito desapareceram actividades como a guerra, a rapina de recursos naturais, a produção de lixeiras consumistas e a intoxicante agricultura transnacional predadora, entre muitas outras»
A conversão, aliás, foi bastante rápida. Durante a década de noventa, com o conceito de «sustentabilidade» afirmando-se de vento em popa, os Verdes alemães chegaram ao governo e então foi possível observar como assumiram, sem pestanejar, o militarismo atlantista na guerra contra a Jugoslávia e o bombardeamento criminoso sobre Belgrado, em 1999. Joscka Fischer, o carismático chefe dos Verdes, era então o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, portanto mergulhado até aos cabelos nesta guerra de facto nada sustentável.
Dez a 15 anos antes, porém, o cenário era ainda bem diferente. Os Verdes alemães engrossaram o grandioso movimento de massas em que as preocupações ambientais se manifestavam juntamente com a oposição ao militarismo e à instalação no continente europeu de uma nova geração de armas nucleares norte-americanas. Foram os tempos das gigantescas Marchas da Paz em toda a Europa, em que as preocupações com a sobrevivência do planeta abrangiam, de facto, todas as insustentáveis formas de destruição, desde a degradação ambiental, a rapina de recursos naturais à guerra. Então, o neoliberalismo em vez de combater frontalmente esse movimento dividiu-o e assimilou parte, chamando a si a ecologia. E assim nasceu o desenvolvimento sustentável.
Um silêncio insustentável
Hoje, quando tudo se tornou sustentável, a campanha pretensamente em defesa do planeta tornou-se bastante mais selectiva.
E da mesma maneira que os partidos oficiais ecologistas foram convertidos à sustentabilidade regimental, deste conceito desapareceram actividades como a guerra, a rapina de recursos naturais, a produção de lixeiras consumistas e a intoxicante agricultura transnacional predadora, entre muitas outras.
Essas práticas sumiram-se da campanha de propaganda em torno da sustentabilidade por serem insustentáveis para o planeta e a esmagadora maioria dos seus habitantes?
Nada disso. Apenas porque o sistema neoliberal e respectivas câmaras de eco fabricaram os seus próprios e inatacáveis modelos de sustentabilidade e de agressão ambiental, excluindo deles todas as acções que devem ignorar-se sempre que se fale da destruição do planeta e, por isso, não cabem nos soundbites políticos e publicitários. Ou seja, os predadores do planeta, que são os mesmos que se apropriaram da sua pretensa salvação, reconhecem a crise ambiental mas tentam esconder que é um resultado inevitável do modo capitalista de produção e consumo. Ora, como todos sabemos, o capitalismo nasceu e cresceu com base na extorsão dos recursos da Terra.
Histórias da Carochinha
O resto da estratégia de construção do mito da sustentabilidade é procurado através de lavagens cerebrais, entretendo os cidadãos com infindáveis histórias da Carochinha elaboradas a partir das inconsequentes cimeiras climáticas da ONU, de agendas e recomendações produzidas, com ou sem chancela das Nações Unidas, pelos poderes globalistas responsáveis pela tragédia ambiental.
Se o leitor visitar websites de alguns dos principais predadores do planeta, com actividades que vão desde a exploração de combustíveis fósseis, as indústrias mineiras até à produção de armamentos, todos eles prometem ser «neutros em carbono» até 2050, enquanto garantem apoiar acções sustentáveis através de mil e uma medidas. Entretanto, continuam a fazer o mesmo de sempre, a emitir gases com efeito de estufa, a encher o mundo de cidadãos sem direitos nem acesso a bens e recursos essenciais, a arrasar meio planeta através de conflitos de índole colonial.
A BP, por exemplo, foi responsável pelo gigantesco desastre ambiental decorrente da explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, abstendo-se, entretanto, de completar o trabalho de limpeza das áreas atingidas. Hoje «conduz carbono neutro», isto é, garante a todos os consumidores que se abasteçam nos seus postos de combustíveis que estão a ter comportamento «sustentável» porque os efeitos poluentes da gasolina ou gasóleo que utilizarem são «compensados» pelo patrocínio de acções como a compra de créditos de carbono «gerados a partir de projectos globais», ou a plantação de árvores algures na Zâmbia, México ou Índia – poupando-se assim «dois milhões de toneladas de carbono por ano». Entretanto, o sistema dominante e os seus subprodutos arrasam milhões de hectares de florestas em todo o mundo, da Amazónia à Europa Ocidental, passando pela Califórnia.
Ao mesmo tempo, a BP e as suas concorrentes aceleram a exploração e pesquisa de combustíveis fósseis em todo o mundo – e certamente não será para que as jazidas fiquem de pousio. Serão exploradas até ao último mililitro, incluindo os provenientes de fractura hidráulica (fracking), actividade ainda mais insustentável para as terras e as águas atingidas.
Por isso, e apesar de todos os avanços em energias renováveis, os combustíveis fósseis são ainda responsáveis por 80% do fluxo energético mundial.
Esta situação obriga a reflectir sobre o significado dos veículos eléctricos na propaganda da sustentabilidade. Embora não poluam com emissões de carbono, essas viaturas consomem energia resultante de combustíveis fósseis, sem contar com a exploração não sustentada de recursos naturais, principalmente o lítio, que são componentes essenciais das baterias. Portando, a montante das emissões «zero carbono» da chamada «mobilidade eléctrica» existe o lançamento de gases com efeito de estufa na atmosfera praticamente ao ritmo de sempre; além de actividades mineiras não sustentáveis.
«É uma questão de sobrevivência da humanidade: se todos os países emergentes como Brasil, China ou Índia, por exemplo, decidirem copiar o estilo de vida dos países desenvolvidos serão necessários cinco planetas Terra para atender ao aumento da procura»
Sha Zukang, diplomata chinês (2012)
Quando se fala na propaganda sobre as pretensas actividades sustentáveis dos produtores de combustíveis podem igualmente abordar-se os comportamentos das transnacionais dos refrigerantes e do sector agroalimentar. Dizendo-se muito empenhadas na sustentabilidade – a Nestlé promete borras de café transformadas em grãos de arroz – estão envolvidas, por exemplo, na exploração desenfreada e a preços irrisórios dos recursos aquíferos quando as carências de água atingem pelo menos mil milhões de pessoas no mundo. E a privatização da água apenas agravará esse problema, aprofundado ainda pelo aquecimento global.
Quando ao agroalimentar, é conhecida a actividade de grandes grupos como a Monsanto que, desde o envenenamento das terras com pesticidas à manipulação genética, multiplicam actividades nocivas para os seres humanos e o ambiente. É difícil acreditar que a sustentabilidade passe por aqui.
Insustentável
Embora se fale até à exaustão em desenvolvimento sustentável, a generalidade das pessoas desconhece do que se trata – e também não são muitos os esforços para informá-las. Desenvolvimento sustentado seria a capacidade de travar ou compensar as actividades que provocam danos irreversíveis ao planeta através da ruptura de ecossistemas, de modo a que houvesse soma zero entre prejuízos e vantagens. Um equilíbrio ideal, sempre precário e delicado na sua dinâmica, perfeitamente incompatível com o modo como o mundo funciona sob o poder neoliberal de tendência global.
«Os efeitos nocivos de 30 ou 40 anos de intervenção intensiva [de exploração mineira], entre desperdícios, venenos, desertificação e alterações geológicas, demoram centenas, milhares de anos a desaparecer. São feridas que ficam e que teriam de ser inseridas nas contas de sustentabilidade de uma teoria ecológica séria»
A imposição desse poder através dos padrões industrializados e consumistas decorrentes da ideologia de livre mercado como modelo civilizacional único torna impossível que o desenvolvimento sustentado seja alcançado por este caminho. Em Março de 2012, na chamada «Conferência do Rio + 20», o diplomata chinês Sha Zukang, na altura secretário-geral adjunto das Nações Unidas responsável pelo Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais, foi muito claro sobre as consequências dessa forma de globalismo: «É uma questão de sobrevivência da humanidade: se todos os países emergentes como Brasil, China ou Índia, por exemplo, decidirem copiar o estilo de vida dos países desenvolvidos serão necessários cinco planetas Terra para atender ao aumento da procura».
Está à vista de todos que a política de desenvolvimento sustentado apregoada pelos grandes poderes ocidentais e as instâncias do globalismo neoliberal como o FMI, o Banco Mundial e o Fórum Económico Mundial, assenta numa mentalidade colonial.
Não é segredo que as grandes potências, no actual modelo económico, não conseguem sobreviver com os próprios recursos. Essa é uma das origens essenciais dos comportamentos dominantes para impor o modelo neoliberal global: a guerra, a corrida às matérias-primas e a eliminação de fronteiras e soberanias nacionais através da dissolução do conceito de Estado.
E nenhum destes caminhos é sustentável do ponto de vista humano e ambiental.
A guerra é insustentável por definição. Por isso não surge nas contas de deve e haver que acompanham a doutrina ecológica do capitalismo «verde». As guerras sem fim que hoje constituem a dominante comportamental do neoliberalismo de tendência global arrasam povos, países, territórios e também qualquer doutrina de sustentabilidade. Os efeitos das guerras não são compensáveis por «créditos de carbono», plantações de árvores ou substituição de automóveis a diesel por eléctricos. Estas medidas, tidas como grandes passos no caminho do desenvolvimento sustentável, não passarão de panaceias irrisórias – mas bastante lucrativas - enquanto se mantiver o culto da guerra planetária: assumida ou alimentada por uma tensão permanente geradora de uma infindável – e insustentável – corrida aos armamentos.
Não poderá existir qualquer teoria ecológica séria e profícua que não equacione com rigor as componentes belicista e militarista, doutrinariamente dominantes. No entanto, a NATO diz-se comprometida com exercícios militares onde a «sustentabilidade» é uma preocupação; e os gigantes da produção e comércio de armamentos cada vez mais sofisticados prometem «carbono neutro» até 2050 nas suas actividades. A mentira delirante não tem limites.
Tão insustentável como a guerra é a corrida desenfreada aos recursos naturais do planeta, que se desenvolve em muitas pistas – algumas delas muito bem guardadas através da implantação de conflitos armados.
«A guerra é insustentável por definição. Por isso não surge nas contas de deve e haver que acompanham a doutrina ecológica do capitalismo «verde». As guerras sem fim que hoje constituem a dominante comportamental do neoliberalismo de tendência global arrasam povos, países, territórios e também qualquer doutrina de sustentabilidade»
Uma delas é a actividade mineira transnacional, que não conhece direitos humanos e ambientais. Um território abandonado por uma transnacional depois da exploração de uma ou várias minas é uma chaga aberta na crosta do planeta. Os efeitos nocivos de 30 ou 40 anos de intervenção intensiva, entre desperdícios, venenos, desertificação e alterações geológicas, demoram centenas, milhares de anos a desaparecer. São feridas que ficam e que teriam de ser inseridas nas contas de sustentabilidade de uma teoria ecológica séria.
Ora isso não acontece. As transnacionais mineiras também prometem «carbono neutro» à luz dos Acordos de Paris, chegam a instalar moinhos eólicos e painéis solares nas áreas de intervenção para simular que as suas actividades de extorsão são apoiadas por energias limpas e renováveis, mas nada disso disfarça, na prática, a insustentabilidade dos seus comportamentos. Os fantasiosos resultados da propaganda, contudo, tornam-se mais reais que os factos perante a opinião pública, e assim se vai disseminando, como virtuosa, uma ideia de ecologia absolutamente insustentável.
Estamos perante uma patranha com dimensões planetárias. Enquanto isso, as calotes polares vão-se derretendo, os mares sobem, a água continua a esgotar-se, as zonas desérticas avançam, as tempestades meteorológicas adquirem características e periodicidades cada vez mais agravadas; entretanto, no sector colonialista do mundo os cidadãos estão entretidos com bem-intencionados exercícios ambientalistas, embalados pela conversa fiada do discurso sobre o desenvolvimento sustentado, enquanto o planeta continua a caminhar para o abismo.
A pandemia de COVID-19 está a proporcionar um processo de concentração de riqueza nunca visto em apenas meia dúzia de mãos; as instâncias neoliberais preparam o «grande reinício» do sistema capitalista, apresentando a questão ambiental como um dos pilares; a guerra e a delapidação dos recursos do planeta continuam imparáveis; a educação para o consumismo, que transforma a Terra numa lixeira, é uma das mais poderosas vertentes coloniais.
A cultura do lucro máximo e sem restrições continua a aprimorar-se. O discurso do desenvolvimento sustentado é um dos seus principais suportes propagandísticos.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui