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A caminho da ditadura das bitcoins

Uma globalização financeira cada vez mais injusta está a pressionar pequenos países a aderirem a autênticos esquemas de pirâmide tecnológica e especulativa para sobreviverem. 

Manifestantes contra o presidente de El Salvador.
CréditosRodrigo Sura/EPA / Lusa

No início de Junho de 2021, o presidente, Nayib Bukele, de El Salvador anunciou ao mundo o seu plano de tornar a bitcoin legal. Dias mais tarde, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou a proposta, e a 7 de Setembro a moeda foi oficialmente adoptada. O dignatário prometeu que o país seria em breve inundado por caixas automáticos de bitcoin, facilitando conversões, transferências.

Perante uma audiência, em êxtase, na conferência «Bitcoin 2021» em Miami, Bukele explicou como a moeda criptográfica aliviaria os problemas económicos da sua nação e ajudaria os salvadorenhos a escapar à pobreza. Bukele foi rápido a identificar o seu antagonista para a multidão de Miami: os serviços de transferência bancária predatórios e os bancos tradicionais que extraem comissões das remessas de dólares enviadas pelos emigrantes salvadorenhos. A bitcoin, garantiu, reduziria a dependência de dólares caros e manteria mais dinheiro nos bolsos dos salvadorenhos.

Ao mesmo tempo, o presidente esperava que a mudança provocasse uma nova ronda de investimento tecnológico no país, expandindo o protótipo de cripto-comunidade criada na pequena cidade de surf de El Zonte, agora conhecida como «Bitcoin Beach». Ele tocou na disponibilidade de bens imobiliários baratos à beira-mar, oportunidades empresariais, projectos de desenvolvimento como a exploração de vulcões geotérmicos para «mineração» de bitcoins, e o crescimento inevitável de outras indústrias favoráveis ao turismo. Juntos, estes transformariam El Salvador num santuário criptográfico tropical, reinventando o modelo panamenho de um centro de serviços financeiros offshore desregulamentado para a década de 2020.

De onde vem Bukele e para onde vai

Na véspera do dia 10 de Dezembro passado, uma mensagem espalhou-se pelas montanhas de Morazán. Naybe Bukele visitaria a praça central de El Mozote, onde, em 11 de Dezembro de 1981, no auge da guerra civil, o Batalhão Atlácatl do exército salvadorenho, financiado pelos EUA, proferiu frases como: «Major! Aqui está um que diz que não quer matar crianças», «Quem é o filho da puta que diz isso?». Mataram 558 crianças, usaram a violação de mulheres e raparigas como arma de guerra e os homens foram torturados e executados. Depois queimaram os seus corpos e casas e continuaram a fazer o mesmo noutras aldeias da zona. «Terra queimada» era o nome dada à técnica de contra-insurgência utilizada. Não sobrou nada. Passaram quarenta anos desde que o crime ficou impune, e a comunidade tinha estado a preparar a comemoração durante semanas.

Mas Bukele decidiu realizar o seu próprio evento e não acompanhar os familiares das vítimas naquele que elas próprias, sem a ajuda do governo, tinham organizado. Foi acompanhado por uma equipa de cerca de cem pessoas, incluindo cerca de vinte fotógrafos e operadores de vídeo (a matéria-prima do bukeleismo), polícia e, pasme-se, até militares.

«Todos sabem que isto é para desestabilizar a comemoração de amanhã. As instituições quiseram apropriar-se dela, mas como não lhes foi permitido», estão a tentar esvaziar as manifestações populares, disse Nancy Guevara, membro da Associação para a Promoção dos Direitos Humanos em El Mozote (APDHEM).

O massacre de El Mozote e Lugares Aledaños é um ponto de viragem na história contemporânea de El Salvador, tanto devido à magnitude do crime, às pessoas envolvidas (alto comando militar, apoio económico e aconselhamento militar dos Estados Unidos) como ao facto de ser o primeiro processo judicial para crimes da guerra civil a ter lugar no país. Mas o julgamento esbarrou contra uma série de impecilhos colocados pelo governo. Uma delas foi a recusa reiterada dos militares em cumprir as exigências do juiz Jorge Guzmán de entregar os documentos relacionados com o caso. O outro foi um decreto legislativo que reformou um terço dos 690 juízes do país e acabou por retirar Guzmán do processo.

«Atacaram recentemente um decreto da Assembleia Legislativa porque dizem que eu ataco o juiz do caso El Mozote, e penso: não houve Assembleia Legislativa, sistema judicial, Supremo Tribunal de Justiça durante 40 anos? Não foi tempo suficiente para provar se iam ou não fazer justiça?», disse, no seu discurso, o auto-intitulado CEO de El Salvador, que prometeu um investimento de 32,4 milhões de dólares, na região, mas em nenhum momento referiu-se à desclassificação dos arquivos militares, essencial para a investigação e condenação dos autores intelectuais e materiais do massacre. Várias organizações acusaram-no – uma vez que é também comandante geral das Forças Armadas – de «obstruir» a justiça e solicitaram uma investigação por parte do Ministério Público. Entretanto, Bukele já está a preparar o caminho para a sua reeleição, assim como a duplicação do número de tropas militares de 20 mil para 40 mil nos próximos cinco anos.

Bukele, antigo militante da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN), abandonou a esquerda para se candidatar e tornar um presidente populista. Uma das suas primeiras medidas foi o corte das relações com a Venezuela e a aproximação diplomática aos Estados Unidos de América. O oportunismo político neste caso anda de par em par com o aventureirismo económico.

«Coincidências não existem, causalidades existem», filosofou Sebastián Torogoz, antigo combatente da FMLN e actual líder do mítico grupo musical, Los Torogoces de Morazán. A sua reflexão coincidiu com o aumento das tensões com que se desenham os novos paradigmas que afectam os salvadorenhos, a sua classe política e aumentam a sua aproximação aos Estados Unidos.

O dólar do problema

Desde 2001, o dólar americano tem sido a moeda oficial de El Salvador, ou seja, utiliza uma moeda que não emite. Como resultado, o país precisa de obter dólares para fornecer liquidez aos bancos domésticos, empresas e famílias, manter a despesa pública e assegurar as importações. As entradas líquidas de dólares podem ser conseguidas exportando mais do que as importações e/ou recebendo remessas de salvadorenhos que trabalham no estrangeiro. Se isto não for suficiente, tanto o sector privado como o público podem recorrer à contracção de empréstimos nos mercados financeiros internacionais.

Nos últimos anos, embora El Salvador tenha compensado o seu défice comercial com o afluxo de remessas – estas representam 20% do PIB do país – , o endividamento tem continuado a aumentar, conduzindo a problemas de financiamento. Especificamente, a dívida pública atingiu 87% do PIB em 2020 e 24,5% das receitas cobradas pelo Estado foram para pagar juros da dívida em 2021.

Nayib Bukele viu a bitcoin como a melhor ferramenta para lidar com esta situação. Desta forma, os salvadorenhos podem pagar impostos, cobrar os seus salários ou fazer compras com bitcoins através da aplicação Chivo. A convertibilidade entre bitcoin e dólares é automática e apoiada pelo Banco de Desenvolvimento de El Salvador, que funciona como um fundo de convertibilidade, com reservas iniciais de 150 milhões de dólares.

Nas primeiras semanas, graças ao incentivo do governo de 30 dólares em bitcoins para usar Chivo, as descargas da aplicação cresceram rapidamente. No entanto, uma vez que manter as suas poupanças ou salário em bitcoins pode torná-lo incapaz de cumprir os seus pagamentos durante a noite, os cidadãos e empresas em El Salvador tendem a trocá-los por dólares imediatamente. Desta forma, o Estado salvadorenho recebe um fluxo de bitcoins em troca de dólares.

O perigo deste mecanismo é que o governo não possa pagar as importações ou pagar a dívida com bitcoins, uma vez que precisa de dólares para isso. Mas se estiver convencido de que o preço da bitcoin só pode subir, como o presidente do país está, tem a opção de ir aos mercados de crypto e trocá-los por mais dólares. Tudo na esperança de que o preço suba, que possa lidar com a volatilidade a curto prazo e que possa trocar as suas bitcoins por dólares quando for necessário. Desta forma, a ideia de Bukele é evitar o incumprimento e possíveis cortes na despesa pública através de pura especulação com o dinheiro dos cidadãos.

No entanto, não se sabe como evoluiu o fundo de 150 milhões de dólares desde que a «Lei da Bitcoin» está em vigor, uma vez que o governo se recusou a fornecer esta informação. De facto, só se sabe de algumas das compras de bitcoin, porque o presidente as anuncia via Twitter: cerca de 85,5 milhões de dólares, que perderam cerca de 23 por cento do seu valor no final de Janeiro.

Para além de El Salvador, outros estados latino-americanos começam a ver a moeda criptográfica como um recurso que vale a pena. Consideram-na como um caminho para a soberania financeira, um meio para iniciar a recuperação pós-pandémica ou para renovar o sector financeiro decadente da região. Estes sonhos de empoderamento, desregulamentação e inclusão financeira remontam ao ano 2000, quando o Equador e El Salvador abandonaram as suas moedas nacionais, o sucre e o colón, pelo dólar americano. Impulsionado pela hiperinflação e desvalorização, e destinado a estimular o investimento global, o processo de dolarização resultou de facto em extrema disparidade de rendimentos mais salários estagnados ou em declínio entre sectores, seguido por ondas de emigração. Na prática, o dólar americano circula agora por quase toda a América Latina como uma segunda moeda não oficial – um arranjo que a bitcoin pode vir a aumentar.

No Paraguai, a bitcoin e outras moedas criptográficas estão a tornar-se rapidamente parte do discurso político dominante, com leis sugeridas para encorajar a sua utilização. No México e Panamá, em breve será introduzida nova legislação para aumentar a mobilidade da bitcoin. As caixas multibanco e as trocas bitcoin estão espalhadas pelos centros comerciais da Cidade do Panamá. O Uruguai, agora considerado o «Vale do Silício das Américas», continua a fazer incursões na fintech global, lançando recentemente a sua própria moeda criptográfica chamada «Ñeripeso». Em Porto Rico, os empresários de bitcoin tiraram partido das leis fiscais liberais para criar um centro de investimento conhecido como «Puertopia».

Não é coincidência que a América Latina seja o lar de tantos paraísos criptográficos. A «Banca sem Banco» tem desempenhado um papel fundamental nas estratégias económicas de muitos países da América Latina que se esforçam por sincronizar as suas economias informais com os ritmos dos circuitos de acumulação global. Na década de 1980, as micro-finanças surgiram como parte dos programas de neoliberalização apoiados pelo FMI para enfrentar este desafio em todo o mundo em desenvolvimento. À medida que a região se tornou um local de experimentação económica, a sua população foi utilizada para testar instrumentos financeiros incipientes, incluindo as primeiras formas de «fintech» (finanças-tecnológicas). As matérias-primas dos países – bananas, palma, borracha, minério – e, por extensão, as suas economias inteiras, tornaram-se objectos de especulação de mercado. Entretanto, as políticas de liberalização do comércio precipitaram crises recorrentes de dívida que mantiveram os seus governos presos na servidão fiscal.

A viragem para a bitcoin é a mais recente destas experiências, que é susceptível de produzir uma espécie de colonialismo fiduciário. Para os bitcoiners, as reformas de El Salvador fornecerão dados valiosos sobre a utilidade social da moeda criptográfica, demonstrando a sua função como uma moeda fiduciária viável. No entanto, o foco principal é o desenvolvimento de infra-estruturas criptográficas que possam ser exploradas pelos empresários de risco de Silicon Valey. Para os vendedores de rua que se preocupam com os ganhos diários, ou para as famílias que se recuperam das dificuldades da pandemia, o influxo destes tecno-capitalistas injectará ainda mais volatilidade na vida económica.

A utilização de criptomoedas continuará provavelmente a espalhar-se pela região à medida que a banca tradicional introduzir novos produtos desse tipo. No entanto, a inovação política de El Salvador, que poderia tornar-se um paradigma regional, é a utilização de criptografia para todas as transacções do Estado, dando-lhe paridade oficial com o dólar para transacções domésticas. A «Lei Bitcoin» exige que todas as empresas se equipem para aceitar as criptomoedas: uma medida que ameaça criar novas formas de apartheid tecnológico, dado o acesso desigual à tecnologia da Internet e dos smartphones em todo o país. A bitcoin também aumentará o risco de cibercrime, bem como devastará a ecologia local ao utilizar energia vulcânica para extrair as moedas. Desde a sua adopção, a utilização da moeda criptográfica tem sido irregular e contestada, levando o governo de Bukele a lançar campanhas de propaganda para os cidadãos terem a aplicação de bitcoins do governo, Chivo app. Quase 70% dos salvadorenhos opõem-se à reforma da Bukele, e um movimento para a revogar foi visto nos protestos de #NoAlBitcoin na capital. Mas o governo, que se torna mais repressivo a cada dia que passa, não tem mostrado sinais de recuo.

O outro objectivo da Bukele é atrair dinheiro do estrangeiro, encorajando as remessas através de Chivo e transformando o país num paraíso fiscal para as moedas criptográficas e para lavagem de dinheiro. O novo quadro legal lançado em Setembro permite comprar bens com bitcoins e evitar a lei de prevenção do branqueamento de capitais, facilitando o branqueamento internacional de capitais. Esta dinâmica pode alimentar um boom de investimentos em bitcoin, tais como imóveis, a serem revendidos e retirados do país sob a forma de dólares limpos. No entanto, este é outro mecanismo perigoso, pois a única forma de compensar a saída de dólares é que o valor do bitcoin em relação ao dólar continue a subir. Se isso não suceder, tudo cairá como um castelo de cartas.

Desesperado por financiamento e para aumentar a atracção de dinheiro para o país, o presidente anunciou a criação da «Cidade Bitcoin». Esta cidade, isenta de impostos excepto o IVA, será paga através da emissão de mil milhões de dólares em «obrigações vulcânicas». Estas obrigações terão uma maturidade de 10 anos e pagarão 6,5% de juros anuais, muito inferiores à taxa de juros de outras obrigações «normais», que podem exceder 30%. Metade das receitas das obrigações será utilizada para comprar bitcoins, que serão congeladas durante cinco anos e vendidas aos detentores de títulos de dívida. Além disso, aos investidores que detenham $100.000 em «obrigações vulcânicas» durante cinco anos será concedida a cidadania salvadorenha.

Este novo plano visa acelerar os mecanismos acima descritos: transformar o país num paraíso criptográfico para atrair investimento e procurar desesperadamente financiamento, uma vez que está prestes a ser excluído dos mercados financeiros convencionais. No entanto, contrair dívidas para comprar mais bitcoins apenas aumentará o risco, o que pode traduzir-se na impossibilidade de refinanciamento e de reembolso de dívidas.

É o que recorda o antigo ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis numa entrevista feita pelo especialista em questões das novas tecnologias e política Evgeny Morozov : «Um governo está a convidar especuladores a comprar moedas criptográficas apoiadas por um estado empobrecido. Os primeiros entusiastas da bitcoin foram motivados, em parte, pelo ódio que os governos tinham assumido por dívidas insustentáveis – antes de se entregarem à repressão financeira e à austeridade a nível nacional – a fim de «alargar e fingir a sua dívida». A preocupação era que, a dada altura, Wall Street e outras maldades financeiras convencionais começassem a construir pirâmides semelhantes com bitcoin. E, o último receio era que o Estado aderisse. Bem, a Volcano Bonds está a tornar este pesadelo realidade, permitindo aos especuladores fazê-lo com uma moeda criptográfica e usando como suporte um Estado soberano empobrecido.»

E conclui, «Em termos mais gerais, para não esquecer, a dívida pública de El Salvador é em dólares e por isso pouco importa se a bitcoin se torna moeda corrente ou não. Tornar o Bitcoin legal apenas acrescenta custos enormes às pequenas empresas e assegura que aqueles que aceitam o Bitcoin saiam efectivamente do sistema fiscal nacional, levando a uma perda substancial de espaço fiscal para o governo, um desenvolvimento que aumenta a sua dívida em dólares a longo prazo.»

Se a diplomacia do dólar do início do século XX levou ao imperialismo através do investimento, forçando as nações latino-americanas a colocar os interesses dos EUA acima dos seus, então a vez de hoje para a moeda criptográfica irá perpetuar esta dinâmica. Em vez de oferecer um desenvolvimento que responda à comunidade, a dinâmica das criptomoedas vai abrir mais as economias para os investidores super-ricos que procuram formas de escapar à fiscalidade. Para El Salvador, trata-se de capitalismo puro entregue através da criptografia, onde o devaneio da descentralização do laissez-faire mascara um inquietante arrepio autoritário.

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