1. As autoridades europeias e inglesas reagiram a notícias do The New York Times e do The Guardian de Londres de que a Cambridge Analytica, mais conhecida por trabalhar na campanha do presidente Donald Trump em 2016, havia obtido indevidamente dados de utilizadores do Facebook e que os reteve depois de afirmar que havia apagado as informações.
A actuação desta empresa de comunicação para fins políticos, originou um pedido de desculpas do CEO do Facebook mas não livrou a rede social – a mais utilizada no mundo inteiro – de ter perdido em bolsa uns 50 ou 60 mil milhões de dólares com esta revelação.
Segundo a revista Time, Chris Wylie, ex-empregado da Cambridge Analytica, disse que a empresa obteve informações de 50 milhões de utilizadores do Facebook, usando-as para criar perfis psicológicos de eleitores que os tornaria alvos de anúncios e conteúdos.
Wylie disse, depois, ao canal britânico Channel 4 que a empresa conseguiu acumular rapidamente um enorme banco de dados com uma aplicação desenvolvido por um investigador universitário que extraiu dados de utilizadores do Facebook que concordaram em participar na investigação, bem como dos seus amigos e contactos, sendo que estes, na sua imensa maioria, o desconheciam.
«Imagine que alguém pergunta "Se eu lhe der um ou dois dólares, pode fazer-me essa investigação recorrendo a esta aplicação?". "Muito bem” – responde o convidado – “Não recolho apenas as suas respostas, recolho todas as informações sobre si a partir do Facebook. Mas esta aplicação investiga também através da sua rede social e captura todos esses dados também”».
Wylie disse que permitiu que a empresa obtivesse mais de 50 milhões de registos no Facebook em vários meses e criticou o Facebook por facilitar o processo. «Não sei porque é que o Facebook não fez mais perguntas quando começaram a ver que dezenas de milhões de registos estavam a ser captados dessa maneira» – disse.
De um dia para o outro, mais precisamente no passado dia 19, um deputado conservador britânico acusou o Facebook de enganar as autoridades, ao minimizar o risco de os dados dos seus utilizadores serem compartilhados sem o seu consentimento. Damian Collins, que preside à comissão para a comunicação social do Parlamento britânico, disse que pediria a Zuckerberg, um dos fundadores do Facebook, ou a outro seu executivo que comparecesse no painel, que está investigando desinformação e «notícias falsas».
2. Parece-me claro que, a partir daqui, o que tem estado em curso é mais um episódio de perseguição às redes sociais, não fundamentalmente por permitirem o acesso a terceiros de dados dos seus utilizadores mas, segundo os próprios, contra a desinformação e as «fake news» («notícias falsas»). Para quem tem acompanhado os episódios desta telenovela, sabe que o que está em causa é impedir, também por via das redes sociais, que seriam «devidamente condicionadas», que dêem guarida a informações e reflexões alternativas àquelas que os patrões da comunicação social reservam o crédito de únicas e verdadeiras.
É interessante verificar no Facebook – que é de acesso gratuito e que garante que o continuará a ser – as possibilidades de pessoas e instituições apresentarem as suas próprias versões de temas e acontecimentos que rompem com as versões únicas dos patrões dos media. Não ignorando que fazemos os nossos dados correr os riscos decorrentes da posse privada da rede, cujo proprietário os pode usar para fazer negócios. Dos quais, a cada dia que passa, estamos mais conscientes.
«o que está em causa é impedir [que as] redes sociais, que seriam «devidamente condicionadas», dêem guarida a informações e reflexões alternativas àquelas que os patrões da comunicação social reservam o crédito de únicas e verdadeiras»
Por enquanto, nenhum jornalista verificou o que está a acontecer com o multibanco, forma de pagamentos mais generalizado, mas também aqui as empresas detentoras destes serviços dispõem de dados que utilizam para diferentes fins.
3. É interessante verificar a hipocrisia da comunicação social que, ao longo de décadas, – reflectindo os interesses imperialistas – tem vindo a fabricar desinformação e notícias falsas de especial gravidade e agora vem crucificar as redes sociais. Não é preciso remontar ao incêndio pelos nazis do Reichtag e à tentativa de inculpar os comunistas. Fiquemos, em tempos mais recentes, pelo massacre da Praça Tiananmen em 4 de Junho de 1989, que nunca existiu naquele local.
Ou pela invasão do Iraque, iniciada em 20 de Março de 2003 pelos EUA, Reino Unido, Austrália e Polónia – que deixou completamente arrasado um dos países mais ricos do Médio Oriente –, justificada pelos EUA com a necessidade de combater o terrorismo de Bin Laden e pelos britânicos com a necessidade de obrigar o Iraque a desfazer-se de um inexistente arsenal nuclear, químico e biológico.
Ou a exibição de corpos de crianças mortas, pelos «capacetes brancos», para esconder outras realidades da guerra imposta à Síria. Ou as campanhas russofóbicas e sinofóbicas, que parecem ignorar que chineses e russos têm hoje, por vezes, muito mais eficazes capacidades tecnológicas que os EUA ou a UE para lhes responderem em moeda semelhante, se o quisessem. Mas o mundo «ocidental», o FBI, o MI6, e a DGES já ficam suficientemente nervosos quando a moeda de resposta é simplesmente a verdade ou outra abordagem de acontecimentos…
4. Ao permitir que os utilizadores publiquem os seus próprios conteúdos, o Facebook é um relativo espaço de liberdade para esses utilizadores. Apesar disso há utilizadores que podem, por exemplo, levar à violação de direitos de autor e da propriedade intelectual, ao incitamento a violações, ao ódio e ao terrorismo, a notícias falsas. Para além da transmissão ao vivo de cenas de violência e crimes através da funcionalidade Facebook Live.
O Facebook foi banido por vários governos, incluindo a Síria, a China, e o Irão.
A empresa também tem estado sujeita a vários litígios ao longo dos anos, sendo o caso mais famoso o da acusação de roubo de ideia e de códigos, pelo seu fundador e CEO, a Tyler Winklevoss, Cameron Winklevoss e Divya Narendra. Estes eram estudantes da universidade de Harvard quando, em Dezembro de 2002, tiveram a ideia de criar uma rede social na faculdade, a «HarvardConnection», que posteriormente queriam alargar aos campus universitários do país inteiro.
Em Novembro de 2003 – viriam a alegar mais tarde – estabeleceram com Mark Zuckerberg, então colega de universidade, um contrato verbal para construir a «HarvardConnection» sobre uma base de trabalho já desenvolvida por anteriores programadores, tendo para isso facilitado a Zuckerberg o acesso à programação já efectuada1.
Em Janeiro de 2004 Zuckerberg regista o domínio «thefacebook.com» e em Fevereiro do mesmo ano lança-o precisamente em Harvard e no país. Os irmãos Winklevoss e Narendra alegam que, tendo aceite executar o site e associar-se-lhes, Zuckerberg optou por roubar a ideia e o código para a lançar no Facebook meses antes do início da HarvardConnection. O processo original foi finalmente resolvido em 2009, tendo o Facebook pago aproximadamente 20 milhões de dólares em dinheiro e 1,25 milhões de acções. Um novo processo em 2011 foi julgado improcedente.
Em Portugal tem havido alguns litígios não envolvendo directamente a empresa Facebook, mas sim a utilização de imagens de uns utilizadores por outros sem a concordância prévia dos primeiros.
5. Outra vertente desta questão fica clara quando Brian Acton, um dos fundadores do WhatsApp, desafiou os seus seguidores no Twitter a saírem do Facebook sem mencionar, claro, que essa saída seria em benefício da sua empresa e de outras empresas concorrentes de Zuckerberg, as quais, obviamente, estarão menos preocupadas com a defesa dos dados fornecidos pelos seus utilizadores do que em vencer um concorrente numa guerra comercial.
Isto é, o valor supremo de tanta agitação é atrair utilizadores em prejuízo dos interesses comerciais do «maior país do planeta», criado por Zuckerberg. Fica-nos a convicção de nos estarem a querer transaccionar sem vantagens.
Por ironia, ao acabar de escrever este parágrafo recebo um telefonema da Endesa, com promessas sobre a redução da minha conta de electricidade mas foram de carrinho, apesar de compreender a necessidade do jovem do call-center em ganhar o seu dinheiro…
6. Há ainda a ter em conta que não é de hoje a utilização de dados pessoais, inicialmente obtidos através de inquéritos de respeitáveis empresas de estudos e publicidade, as quais recorrem ao trabalho de universitários para fazer os cálculos, as sondagens, as projecções, etc. e depois os vendem a outras empresas, para as campanhas publicitárias ou o marketing destas. E nem sempre o fornecimento de dados para os efeitos finais por parte dos inquiridos é do conhecimento destes.
As bases informatizadas dos nossos endereços e telefones são transaccionados ou roubados por empresas umas às outras e ficamos perplexos com a quantidade de lixo que nos aparece nas mensagens e telefonemas recebidos de entidades a quem nunca fornecemos os nossos dados.
A actividade das redes sociais é um prolongamento delas, tal como as televisões o são. Como referiu Francisco Teixeira da Mota no Público de 23 de Março, esta é uma realidade perversa, em que nos prometem muita coisa que acabamos por pagar a um preço que podemos avaliar se tivermos em conta o tempo que nos fazem perder, a catadupa publicitária que condiciona as nossas escolhas. Como todos sabemos o seu papel é passarmos mensagens publicitárias, entre programas televisivos de péssima qualidade altamente manipuladores com uma série ou um filme aqui ou ali para não perderem completamente a credibilidade. No caso das redes sociais há também um modelo de negócio em que pagamos, além disso, uma mais completa alienação de muitos aspectos das nossas vidas que são vendidos a terceiros para fins que desconhecemos.
Os recursos crescentes das empresas de consultadoria, incluindo as que trabalham para o universo político, permite-lhes, com a compra de certas aplicações, piratearem-nos dados pessoais com a cooperação mais ou menos consentida por parte do Facebook e de outras redes sociais, para já não falar nas escutas telefónicas. Grandes empresas e também órgãos de comunicação social mais relevantes compram esses serviços para melhor venderem a publicidade.
Estaremos, face a este admirável mundo novo, «churriscados», como diria uma amiga minha? Não iria tão longe mas apalpados sim, apesar de muitos de nós terem a obrigação de conhecer as consequências da sua intervenção nas redes sociais.
7. O modelo do negócio, como referimos, em que as redes sociais estão envolvidas, tem outros pólos além delas. Em primeiro lugar há um cliente (empresa, partidos político, etc.) que quer obter uma intervenção resultante do tratamento de dados, captados algures, de um público-alvo. Estes vão ter com uma consultora, como a Cambridge Analytica. Que por sua vez, acede, com um qualquer tipo de contrato, a dados que uma rede social tem armazenados. Finalmente a consultora contrata um investigador ou um departamento universitário que cria uma aplicação, adequada ao tratamento de dados disponíveis, que satisfaça a exigência dos clientes. A consultora define a estratégia de intervenção pretendida pelo cliente e pode ela própria conduzir essa estratégia com o seu acordo. É disto que o The New York Times e o The Guardian referem a propósito da intervenção da Cambridge Analytica na campanha eleitoral de Trump para as presidenciais que o tornaram Presidente dos EUA. Será que isto põe entre parêntesis a «interferência russa» ou ainda vão descobrir que o board da consultora é pró-russo?
8. «Cometemos erros, há mais para ser feito e temos de o fazer. Temos a responsabilidade de proteger os vossos dados e, se não o conseguimos fazer, não merecemos servir-vos», disse Mark Zuckerberg, na primeira reacção ao escândalo com a Cambridge Analytica. Depois disso, em entrevista à CNN, acrescentou a declaração de «completa disponibilidade» para prestar declarações ao Congresso norte-americano. Depois deste mea culpa parcial de Zuckerberg, as tentativas de «regulação» das redes sociais podem tornar-se apenas em limitações no acesso às redes, em condicionamentos de conteúdos por razões políticas, ideológicas, de costumes e culturais em termos mais abrangentes, na redução da enorme capacidade de comunicação que pôs fim a muitos isolamentos individuais e de pequenas empresas, numa mais estreita relação com governos, etc.
Se é certo que o acesso gratuito às redes configura a situação de «não haver almoços grátis», não é menos certo que «o menino não deve ser deitado fora com a água do banho».
- 1. A história da colaboração de Zuckerberg e da sua duplicidade está disponível na Wikipédia, na biografia de um dos queixosos, Tyler Winklevoss, com abundantes notas e ligações.
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