|Edgar Silva

O que restará de Francisco?

Francisco estabeleceu ruturas com os usos e costumes da antiga burocracia vaticana, com protocolos que determinavam a definição do ensino dogmático e a estrutura do pensamento.

Os doze anos do pontificado do Papa Francisco correspondem a um tempo memorável. É uma estação de esperança. Aparentemente na contracorrente da História, em diferentes etapas, este Papa recriou a utopia pascal mais necessária. Escancarou diante dos nossos olhos imagens proféticas grávidas de futuro. 

Sempre precisaremos de rever Francisco abrindo as portas da enorme penitenciária de Rebibbia, em Roma, no dia 26 de dezembro de 2024. Entre tantos outros, são gestos que antecipam futuros. E necessitamos tanto de gestos daqueles.

O pontificado de Francisco ficará na História como um dos marcos do compromisso transformador da Igreja Católica: 1) de mudança do âmago dos mecanismos internos do Vaticano, da administração da Santa Sé; 2) de viragem nas orientações e práticas da Igreja, através da concretização de formas de funcionamento mais coletivo e democrático, seguindo  dinâmicas da «sinodalidade»; 3) na recriação da mensagem, dos fundamentos teológicos e do discurso ético e político da Igreja Católica, da ortopráxis, num mundo caracterizado pela «mundialização da indiferença», ante o grito daqueles que sofrem.

Os ensaios de transformação na Igreja Católica nunca coexistiram com uma história tranquila, linear e sem obstáculos. As resistências, as incompreensões e os oposicionismos fizeram parte da complexidade do élan do aggiornamento. No contexto mais amplo dos seus predecessores e da história da Igreja na contemporaneidade, o Papa Francisco enfrentou uma poderosa oposição organizada.

Francisco estabeleceu ruturas com os usos e costumes da antiga burocracia vaticana, com protocolos que determinavam a definição do ensino dogmático e a estrutura do pensamento. As mudanças no governo e nas finanças afrontaram o poder multiforme da Cúria Romana. A reforma da Cúria, publicada em março de 2022, suprimiu e esvaziou lugares de poder ancestral no comando da estrutura da Igreja Católica.

O Papa foi severo e exigente relativamente aos processos de pedofilia e acerca da verdade das questões dos abusos sexuais no seio da Igreja.

«Francisco reacendeu a exigência do compromisso consequente com "os condenados da terra".»

 

Francisco desenhou uma nova arquitetura eclesial densificada por uma cultura de descentralização e de democratização a todos os níveis na Igreja Católica. O ideário de democratização, que ainda estará distante do horizonte ambicionado por Francisco, teve nas experiências de «sinodalidade» concretizações multiformes e, por vezes, surpreendentes. Já a descentralização conheceu nítidos avanços no reforço dos poderes de decisão local por parte das Conferências Episcopais.

Francisco reacendeu a exigência do compromisso consequente com «os condenados da terra». A escultura em bronze pedida a Timothy Schmalz, que o Papa teimou em colocar na Praça de São Pedro, a barca dos migrantes, é uma rutura simbólica. Mais do que romper com o traçado clássico e barroco da Praça e do espaço monumental projetado por Bernini, aquele é um apelo a todas as ruturas com a «economia que mata». Não é só o compromisso do pontificado dos migrantes, como também aquela escultura ali requer aos cristãos o dever da hospitalidade, da solidariedade com quem é explorado e injustiçado. Aquela escultura é uma outra forma de expressar a encíclica «Fratelli tutti».

De Francisco permanecerá o seu vasto e profundo magistério contra a «absurda realidade da guerra», da urgência de paz e sobre os artífices da promoção da paz.

Depois do pontificado de Francisco será improvável um movimento de sentido inverso com o objetivo de contrariar as transformações em curso? Será inviável um processo de recomposição das transformações operadas na Igreja?

Temos a consciência de que não é irreversível a dinâmica do compromisso transformador da Igreja Católica que Francisco projetou. Existe uma influente e poderosa vontade de alteração do rumo da história da Igreja nos nossos dias. A oposição ao pontificado de Francisco dispõe de meios colossais ao seu alcance, desde logo, a partir dos Estados Unidos da América…

No entanto, também perguntamos: será possível subestimar a força coletiva do movimento de sinodalidade desencadeado por Francisco? Será possível anular o vento de transformações fundamentais impulsionadas ao longo dos anos de missão de Jorge Mário Bergoglio como o Bispo de Roma?

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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