Liberdade, igualdade, fraternidade? Passemos adiante, são coisas anacrónicas, da arqueologia do humanismo; e a França de hoje pode orgulhar-se de ter acabado de vez com a trilogia que inspirou a revolução, já lá vão 228 anos. Tempo demais.
Igualdade e fraternidade há muito que são conceitos caducos; invocá-las seria desadequado, ridículo até, em sociedades formatadas como as nossas, onde a desigualdade é uma virtude inerente à competitividade e ao empreendedorismo, fazendo da solidariedade uma parolice, a não ser que se trate de «caridade».
A França de Macron, em alinhamento harmónico com a França de Hollande, Valls e Cazeneuve, acaba de instaurar o estado de emergência permanente, inscrevendo-o na lei comum, limitando-se a concretizar o que o primeiro-ministro Manuel Valls profetizara em Dezembro de 2015: «o estado de emergência é o estado de direito»; máxima no qual foi seguido pelo presidente e ditador turco, Recep Tayyp Erdogan, ao declarar que «o estado de emergência não é contra a democracia, a lei e a liberdade, antes pelo contrário”.
Sobram, portanto, argumentos para justificar a decisão do governo de Macron, passada à prática no passado dia 1 de Novembro, ao declarar o fim do estado de emergência, sucessivamente prorrogado desde Novembro de 2015, substituindo-o pela nova «lei antiterrorista». Lei que restabelece, agora como normas do direito comum, todas as práticas excepcionais contra os cidadãos e as liberdades praticadas à luz do estado de emergência. Um liberticídio.
A medida não é original: teve como mestre inspirador o presidente norte-americano George W. Bush, ao instaurar o Patriotic Act então com o pretexto dos atentados de Nova Iorque, em Setembro de 2001. Macron invocou os mesmos argumentos: a luta contra o terrorismo. Como se deduz facilmente, o terrorismo, fenómeno criminoso mal explicado e nunca esclarecido, é um esplêndido instrumento para dar conteúdo às ânsias securitárias e liberticidas de dirigentes norte-americanos e europeus que sofrem de crescente incompatibilidade com a democracia.
Na cerimónia de apresentação da «lei antiterrorista», o presidente Emmanuel Macron fez-se acompanhar pelo porta-voz do governo e pelo ministro do Interior, dispensando a presença da ministra da Justiça; como símbolo, nada poderia ser mais explícito para ilustrar a supremacia do poder policial sobre o judicial. «O estado de emergência é transitório, a ameaça terrorista é permanente», explicou entretanto o porta-voz governamental, confessando implicitamente a transformação do estado de emergência em «ameaça permanente» para os cidadãos e as suas liberdades.
Assim é. «Levantar o estado de emergência só era possível com uma condição», declarou o presidente Macron: «reforçar o arsenal jurídico pera lutar contra o terrorismo através do direito comum». A escolha da palavra «arsenal» manifesta o espírito guerreiro com que passa a ser encarada a «luta jurídica», na qual os poderes excepcionais aplicados na situação de estado de emergência passam agora a ser confiados às autoridades administrativas, algumas delas criadas expressamente para esse fim.
É o caso, por exemplo, do «juiz das liberdades e da detenção», que superintende sobre as invasões e buscas domiciliárias, nas quais podem ser confiscados materiais e documentação. Para não agredir olhos e ouvidos mais sensíveis, a nova lei designa estas operações, placidamente, como «visitas domiciliárias».
A medida de coacção de «prisão domiciliária» passa a ser mais benévola, também nos termos da linguagem suave da nova «lei antiterrorista», transformando-se em «detenção em determinado perímetro» a estabelecer pelas autoridades.
Uma das medidas agora adoptadas pelo governo de Macron, que cria maior oposição das Autoridades Administrativas independentes francesas, e do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, relaciona-se com os poderes arbitrários atribuídos aos chefes dos postos policiais; estes podem, por exemplo, encerrar lugares de culto; e, por outro lado, demarcar «zonas de protecção», ou regiões com área territorial indefinida dentro das quais as leis ficam suspensas e a polícia dispõe de poderes excepcionais para controlar pessoas.
«O estado de emergência é o estado de direito»
MANUEL VALLS, DEZEMBRO DE 2015
Antes da aprovação da lei, e tendo em conta o articulado do projecto, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos advertira para o espaço amplo de arbitrariedade que se abre a pretexto das «leis antiterroristas», recordando que, à luz do estado de excepção francês, foram sujeitos a buscas domiciliárias e submetidos a residência fixa numerosos cidadãos que participaram nas manifestações pacíficas a propósito da cimeira do clima, COP 21, realizada em Paris. As intenções alegadamente antiterroristas instauram «poderes amplos e vigilância intrusiva», conclui a instância da ONU.
«A falsa saída do estado de emergência é um recuo do estado de direito», denuncia a Liga dos Direitos Humanos em França, porque «a excepção inscreve-se de maneira permanente na legislação comum, enfraquece duramente a instituição judiciária, a presunção de culpa torna-se regra para uma parte da população que será, uma vez mais, estigmatizada».
Nada disto demoveu os poderes franceses, lançados numa deriva na qual «os direitos e liberdades são tratados segundo a bitola das necessidades do Estado através da autorização de recolhas massivas de dados, vigilância generalizada e controlos dos cidadãos sob o pretexto da luta antiterrorista», acrescenta a Liga dos Direitos Humanos.
Uma deriva que não é exclusiva de França e continua a generalizar-se na União Europeia. «São leis orwellianas», acusa a Amnistia Internacional num relatório sobre a legislação pretensamente antiterrorista que tem vindo a ser elaborada em países da UE, ao compasso da imposição das medidas de austeridade e da abolição de direitos cívicos, sociais e laborais.
Que o terrorismo é um grande aliado das intenções securitárias e da instauração de sociedades policiais não é novidade; assim como se conhece a existência comprovada de cumplicidades entre governos europeus e entidades do terrorismo islâmico, conforme as conveniências de cada qual.
Exemplo óbvio é o da aliança operacional, sob a bandeira da NATO, entre o Reino Unido, a França e o extremismo islâmico, consumada na destruição da Líbia. Passando a pormenores factuais, continua por esclarecer o motivo pelo qual o chefe do Estado Islâmico no Magrebe, o terrorista líbio Abdelhakim Belhadj, foi recebido em 2014, em Paris, no Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.
Sem decifrar o mistério, mas procurando entendê-lo de acordo com a sangrenta mentalidade que conduz os laços entre governos europeus e o terrorismo islâmico, aqui se recorda a frase proferida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, então Laurent Fabius, durante uma cimeira dos «Amigos da Síria» realizada em Marraquexe, Marrocos, a propósito da guerra contra o povo sírio:
«A Al-Qaida está a fazer um bom trabalho».
Meia dúzia de palavras que valem por um tratado sobre o «antiterrorismo» francês, e mesmo sobre o estado do mundo.
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