Há uns tempos ouvi uma senhora, uma veterana novembrista entre aqueles que têm a missão de ensinar-nos a pensar de maneira correcta, falar na existência da actividade de «comentariado» como uma espécie de profissão, ou até um sacerdócio. Como a informação foi veiculada durante um programa humorístico deduzi que era uma piada inserida no contexto, mas pelo andar do paleio acabei por concluir que a dama falava a sério.
Por vício cidadão tento andar sempre a par das evoluções – e também, porque mais frequentes – das involuções da língua portuguesa; e assim movido fui consultar o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa do Círculo de Leitores e ainda, como força do hábito, o dicionário actualizadíssimo da Porto Editora e não encontrei a palavra «comentariado».
Estamos, então, diante de um neologismo que se supõe estar à frente do tempo nestes tempos em que a voracidade das mensagens supostamente informativas excede a velocidade do tempo. À frente dos mais credíveis dicionários da língua pátria está de certeza.
Elaborei mais demoradamente o assunto, porque apesar das premências da vida nunca conseguirei atingir a agilidade e presteza dos comentadores encartados da comunicação social, capazes de identificar num ápice os «momentos históricos» que se sucedem a uma velocidade nunca vista em época alguma, e consegui até – presunção minha? – ficar com algumas luzes do que suponho ser o tal «comentariado».
De maneira um tanto empírica, parece ser o conceito agregando o conjunto de pessoas acima dos cidadãos banais, iluminadas e predestinadas com níveis de sabedoria inatingíveis pelo comum dos mortais e que, por isso, ganharam assento no Olimpo dos meios de comunicação corporativos e aparentados; sendo estes os disfarçados de «públicos» – mais propriamente parcerias público-privadas.
Tentando avançar metodicamente de dedução em dedução, apurei que o comentariado, servindo de complemento indispensável da informação noticiosa chancelada pelos patrões da comunicação – e os outros – deve ser considerada uma instituição corporativa. Nada de associação ou comunidade, mas uma corporação mais ao serviço das grandes corporações. Uma garantia de reforço do poder patronal num regime comandado pelos grandes patrões.
«De maneira um tanto empírica, parece ser o conceito agregando o conjunto de pessoas acima dos cidadãos banais, iluminadas e predestinadas com níveis de sabedoria inatingíveis pelo comum dos mortais e que, por isso, ganharam assento no Olimpo dos meios de comunicação corporativos e aparentados; sendo estes os disfarçados de "públicos" – mais propriamente parcerias público-privadas.»
O comentariado, como acontece com os deuses, está em toda a parte e, embora aqui e ali minado por umas honradíssimas excepções, equívocos esses que na maioria dos casos são rapidamente corrigidos, ensina-nos a entender o que as notícias elaboradas pelo jornalismo corporativo, em excelente português anglo-saxónico, nos explicam em primeira instância.
As honradíssimas excepções correspondem à presença frequente na televisão dos generais Carlos Branco e Agostinho Costa, que não deve considerar-se contra-natura como poderia supor-se. A sua experiência da actualidade militar no terreno é única e insubstituível; além disso, são qualificados, objectivos e informadíssimos analistas militares – e não comentadores – prestigiantes para os meios de comunicação que recorram aos seus conhecimentos e explicações. A profundidade e a minúcia das suas análises não estão ao alcance de outros altos quadros militares seleccionados e que, esses sim, engrossam as tropas do comentariado limitando-se a reproduzir, por dever canónico, o fundamentalismo político-militar da NATO.
Um sacerdócio, uma missão
Na sua ignorância atávica, e também induzida, os cidadãos vulgares, todos nós, podem não entender convenientemente a realidade em bruto que as notícias expõem.
«As honradíssimas excepções correspondem à presença frequente na televisão dos generais Carlos Branco e Agostinho Costa, que não deve considerar-se contra-natura como poderia supor-se.»
Para evitar que os possíveis equívocos gerados pela matéria noticiosa primária firam a magnífica e homogénea textura comportamental do tecido social que formamos, existem então os comentadores e comentadoras ensinando-nos preto do branco o que significam os dados noticiosos postos no ar, por vezes insuficientes porque tecnicamente subjugados pela «objectividade».
Além de uma corporação, o comentariado é um sacerdócio, uma missão. Os comentadores pairam sobre nós fazendo o papel de missionários que recomendam com uma paciente mas firme veemência o que devemos pensar, como devemos agir, mesmo que os factos apontem, com a sua maldosa lógica, em sentido diferente ou até contrário; que nos definem sem rodeios quem são os bons e os maus deste mundo, não vá dar-se o caso de os inimigos e detractores do catecismo da «civilizada» «ordem internacional baseada em regras» nos fazerem cair em heresia. Que nos ensinam a respeitar o seu soberano pluralismo, aplicado de maneira a que os resultados do exercício da nossa liberdade de olhar e interpretar o mundo coincidam exactamente com os que apregoam.
Os missionários do comentariado devem também ser peritos em demonstrar-nos que aquilo que estamos a ver não é aquilo que estamos a ver, corrigindo assim uma espécie de erro de paralaxe bastante frequente perante as peculiaridades da realidade oficial, fenómeno que deve atribuir-se ao maldito terrorismo subliminar disseminado pelos inimigos, sempre à espreita e diligentes.
Em casos extremos, felizmente raros, os praticantes do comentariado têm obrigação de corrigir, se necessário com firmeza, os moderadores que ousem colocar hipóteses e perguntas inadmissíveis, frutos talvez de ecos remotos das rajadas de mensagens inimigas.
«Os missionários do comentariado devem também ser peritos em demonstrar-nos que aquilo que estamos a ver não é aquilo que estamos a ver, corrigindo assim uma espécie de erro de paralaxe bastante frequente perante as peculiaridades da realidade oficial (...).»
Os comentadores, em suma, são sacerdotes que espalham a palavra da opinião única e do pensamento obrigatório para que prevaleçam as normas inquestionáveis do regime vocacionado para estender-se a todo o mundo levando com ele a verdadeira civilização; isto é, o culto da verdade autêntica, dos direitos humanos que nos interessam, dos preceitos religiosos inerentes à supremacia civilizacional e rácica, da certificação que nos garanta a posse dos bens do mundo, enfim o pluralismo próprio da democracia genuína, liberal (neoliberal, para ser mais preciso), ocidental, de matriz humanista e cristã.
Não surpreende, naturalmente, que o comentariado seja uma emanação da guerra como instrumento sempre disponível e justificado para que os direitos da «nossa civilização» não sejam postos em causa, sobretudo quando se trata de inimigos bárbaros, selvagens, até sub-humanos, ameaçando as delícias do «nosso jardim» amorosamente tratado. A paz não é assunto que diga respeito aos comentadores, a não ser essa que garantem encontrar-se no final do caminho da guerra.
Observar os comentadores em acção, principalmente os membros daquela confraria dominante oriunda dos areópagos universitários, da cartomância da politologia, das catacumbas conspirativas dos think tanks anglo-saxónicos ou dos amestrados MBA dos estabelecimentos da iluminada Ivy League, é uma prática ilustrativa para entender as razões pelas quais a «democracia liberal» não pode prescindir deles e os elevou inclusivamente ao estatuto de corporação.
Eles são os cavaleiros andantes dos princípios sacrossantos da liberdade de opinião, de expressão, de pensamento, os argonautas do debate civilizado. A sua missão pode resumir-se assim: cultivar uma realidade paralela na qual acabem por mergulhar todos e cada um de nós; ou cuidar do rebanho dos fiéis da «democracia liberal» até que não haja alguma ovelha, carneiro ou borrego tresmalhados.
Infalíveis como os Papas
Os comentadores são peritos em utilizar palavras e expressões diferentes para dizerem exactamente a mesma coisa e induzirem conclusões obrigatórias – as deles, as do regime; estão sempre aptos para debates acalorados esgrimindo argumentos que simulam disparidades sobre temas em que, afinal, estão de acordo; ficcionam com talentos teatrais os antagonismos entre o lado da situação e o lado da oposição (e vice-versa), que praticam ambos a mesma política quando se alternam no governo. Isto é uma arte, um dom.
Não podem deixar-se em claro as prestações de comentadores sobredotados – putativos bastonários de uma previsível Ordem do Comentariado – nascidos com o dom de incarnar o pluralismo numa só pessoa, a um tempo governo e oposição, intérpretes das ideologias pretensamente antagónicas que dão vida à democracia liberal. Enfim, foram agraciados com a unção rara de conseguirem ser eles e os seus contrários em simultâneo. Talvez seja um pouco esquizofrénico mas é genial, sem dúvida. De tal maneira é assim que grandes corporações da informação os contrataram para cumprir as aconselháveis quotas de pluralismo de opinião. Eles merecem; e um desses génios seguiu o caminho natural para quem exibe tais atributos: o de Presidente da República.
Rui Calafate acha que Luís Montenegro está a ganhar popularidade porque ocupa o centro político, ao contrário de Pedro Nuno Santos. Viriato Soromenho Marques acusa os líderes europeus de serem os verdadeiros extremistas. Germano de Almeida defende que a cimeira da NATO não foi suficientemente clara nem assertiva no apoio à Ucrânia. E num artigo de Fernando Araújo, o diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde que a ministra do PSD demitiu, lê-se o seguinte: “Os maus líderes anseiam em transformar as organizações da saúde em reinos feudais, onde os súbditos devem aguardar pelas ordens superiores, da Corte. Essas monarquias há muito que falharam”. São os “Os Comentadores”, na última emissão antes de férias, com Nuno Ramos de Almeida, Paula Cardoso e Pedro Tadeu. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Já podes ver e ouvir nestas plataformas. Segue-nos!
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O comentariado, em suma, pode considerar-se uma das componentes ditatoriais do sistema autoritário em que se vai transformando o regime económico, político e social mais conveniente à selvajaria neoliberal.
Dirão os comentadores encartados pelo regime, a que maldosamente também chamam «cáfila de farsantes», que esta interpretação é própria dos inimigos, dos que tentam subverter a «nossa civilização». Os mesmos que se preocupam em provar como a democracia liberal não vê inconveniente em andar de braço dado com emanações do nazifascismo, designadamente o nazismo ucraniano; e que testemunham a ligação operacional da NATO a unidades militares nazi-banderistas integradas nas hostes da nova invasão ocidental da Rússia. O comentariado corta cerce estas maléficas elucubrações expondo, como lhes compete, a realidade paralela que fabricam e impõem para que a «nossa civilização» sobreviva. Daí o dogma: não há nazis na Ucrânia, nem fascistas genocidas em Israel ou em outros faróis do Ocidente.
O comentariado copiou dos papas o dom de ser infalível; como tal, os comentadores estão sempre do lado da razão e nunca têm dúvidas.
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