Uma das instituições sociais de séculos é a «Passagem de Ano».
Saudável pela participação social e partilha mais ou menos genuína da alegria e diversão, subjazem-lhe, no entanto, dois pressupostos cuja racionalidade é duvidosa: um, é o de que no último milionésimo segundo do último dia de cada ano para o primeiro milionésimo de segundo do ano seguinte há uma separação na vida de cada um e da sociedade; o outro pressuposto é o de que, então, há uma «passagem» para um outro tempo «novo» que sempre almejamos melhor («Bom», «Feliz», «Próspero»…) e não só mais tempo, o mesmo tempo.
Se bem que, afinal, quanto à classificação («velho», «novo») e separação dos anos, não surpreende, visto que tendemos a classificar tudo, a separar tudo:
- Separamos o passado do presente e este do futuro, quando sabemos (aprendemos com George Orwell) que o futuro é o passado que fizemos, tal como o presente é o futuro que quisermos;
- Separamos, por «idades», a própria vida em si: a idade da infância da idade da adolescência, esta da maioridade e, por sua vez, esta da idade maior, da velhice. Quando sabemos que, verdadeiramente, não existe na vida separação, mas sim íntima continuidade e interdependência entre estas idades humanas.
- Separamos a vida da morte, quando sabemos que a morte faz parte da vida e mesmo que, quando vimos (como já vimos) uma mãe (clinicamente) morta a dar à luz um bebé, a vida faz parte da morte;
- Separamos a saúde da doença, quando sabemos (aprendemos com a Organização Mundial de Saúde) que «saúde não é só a ausência de doença…»;
- Separamos a vida do trabalho, quando sabemos que a trabalhar, a «ganhar a vida», almejamos também ganhar vida (pela realização e integração profissional, pessoal e social) e não perder (ir perdendo, na doença) vida e, muito menos, num instante, perder (num acidente) a vida;
- Separamos a casa do trabalho, quando sabemos que «levamos» a casa (preocupações, pré-ocupações, pós-ocupações…) para o trabalho, tal como, até literalmente tantas vezes, levamos (o) trabalho para casa;
- Separamos o Homem da Natureza, quando sabemos que a natureza do Homem é fazer parte da Natureza;
- Separamos a Terra da Humanidade, quando sabemos que sem Terra não há Humanidade;
- Separamos e até abolimos, vamos abolindo (nas atitudes, nos comportamentos, nos propósitos, nas decisões e acções individuais ou colectivas e políticas), a humanidade da/na Humanidade, quando sabemos (aprendemos com Teixeira de Pascoaes) que «se eliminarmos a palavra humanidade ficaremos todos cobertos de pêlos num instante»;
- Separamos a economia da sociedade, quando sabemos (por exemplo, por Karl Polanyi e pelo Papa Francisco) que a economia, como ciência social que é – deve ser –, ou também é (para) a sociedade ou deixa de ser economia (para passar a ser mero economicismo);
- Separamos os pobres dos ricos, quando sabemos que «os pobres são pobres, porque os ricos são ricos» (e vice-versa);
- Separamos os negócios da amizade («amigos, amigos, negócios à parte»), quando sabemos que cada vez mais a própria amizade é objecto de negócio e que, assim, até são certas «amizades» que possibilitam grandes negócios (atas);
- Separamos o que dizemos do que fazemos, quando sabemos (aprendemos com Frei Tomás ...) que pouco diz o que dizemos se contraria o que (não) fazemos, tal como sabemos que pouco faz (se é que não desfaz) o que fazemos se contraria o que dizemos;
- Separamos o que somos do que fazemos, quando sabemos (aprendemos com Eduardo Galeano) que «o que somos é o que fazemos para mudar o que somos»;
- Separamos a teoria da prática, quando sabemos que não há melhor teoria do que uma boa prática e vice-versa;
- Separamos o caminhar do caminho, quando sabemos (aprendemos com António Machado) que «o caminho faz-se caminhando».
Separamos isto tudo e então, por esta altura, neste como em todos os anos da nossa vida, também, claro, separamos o «Ano Velho» do «Ano Novo».
Mesmo sabendo que «nada é cindível na vida» (citando uma saudosa primeira-ministra portuguesa, Eng.ª Maria de Lurdes Pintassilgo), mesmo sabendo que, como na canção (Sérgio Godinho) e na poesia (e nada há mais verdadeiro do que a poesia, no caso a de Eduardo Guerra Carneiro), «isto anda tudo ligado».
«Ano Velho» e «Ano Novo». Verdadeiramente, separamo-los?
É que então, se estes anos, o «velho» e o «novo», na realidade são inseparáveis, incindíveis, na nossa vida e na da sociedade, que «passagem» há de um para o outro, senão a de um calendário velho para um calendário novo?
Não será que, afinal, no primeiro dia do ano de cada novo calendário a vida neste tal ano «novo» vai continuar a ser apenas mais vida (e, infelizmente, para alguns nem isso…), a mesma vida… «velha»?
«É que então, se estes anos, o "velho" e o "novo", na realidade são inseparáveis, incindíveis, na nossa vida e na da sociedade, que "passagem" há de um para o outro, senão a de um calendário velho para um calendário novo?»
A não ser que entendamos que tempo não é (como não é) algo não meramente abstracto, que tempo é vida (individual, colectiva, social, …), vivência, que tempo é o que se faz (desfaz, refaz, deixa de se fazer…) com ele.
E, assim, «passagem de ano» poderá então não ser apenas mudar de calendário mas, na realidade, mudar de referências, de objectivos, de práticas. Enfim (José Mário Branco), «mudar de vida». Ao que não pode deixar de subjazer mudar apenas mudar de calendário, mas sim, sobretudo, mudar de ideário.
Um ideário que contemple, por exemplo – que não pode ser mais pertinente, porque actual, premente –, a passagem:
- Das desigualdades para a justiça social;
- Da competição desenfreada para a solidariedade;
- Do egoísmo para o altruísmo;
- Do individualismo para o relacionamento e participação social;
- Da exclusão e racismo para a inclusão;
- Da marginalização para a integração;
- Da pobreza para a dignidade das condições de vida;
- Da degradação das condições de trabalho e salários exíguos para o trabalho digno;
- Da exiguidade das (baixas) pensões para a dignidade da velhice e da invalidez;
- Do neoliberalismo para o Estado Social;
- Da mentira para a Verdade;
- Da guerra para a Paz…
Bem, mas de qualquer modo, à meia-noite em ponto de todos os anos, lá paramos (mesmo que a rodopiar alegremente num baile) todos (ou quase todos…) para «separar» o «Ano Novo» do «Ano Velho», para, na alegria (com)participada – o que é saudável – de umas passas, espumoso, música, fogo de artifício, festejarmos, feéricos, a «Passagem de Ano».
Ainda que no dia seguinte, logo um que tanto a isso agora nos empurra (como Dia Mundial da Paz), nos perguntemos: Passagem de Ano? Mesmo?
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