Imigração, (in)segurança pública e natureza da acção da polícia. Cada um destes assuntos, em si, bem como a relação entre eles, têm sido assunto do debate público, quer na/pela comunicação social, quer ao nível político-partidário, inclusive com projecção no Governo e na Assembleia da República.
Subjacentes a esse debate, para além de razões mais estruturais inerentes a cada um deles, estiveram situações mais próximas que, em síntese, se referem de seguida.
– Uma «comunicação ao país» (27/11/2024) do primeiro-ministro (PM), pela televisão, previamente anunciada e em «horário nobre» (e daí aguardada com a expectativa habitual de comunicações de assuntos graves ou muito importantes para as pessoas e para o país em geral), invocando o «aumento da percepção de insegurança» e assumindo a orientação do Governo para acções da polícia com «grande visibilidade»;
– Uma intervenção da Polícia de Segurança Pública (PSP) em Lisboa (21/10/2024), na qual um agente desta força de segurança matou a tiro um cidadão de origem caboverdiana a viver há 20 anos em Portugal, em condições que, para além de terem gerado violentos tumultos durante alguns dias, levou a que o Ministério Público (MP), agora, no fim de Janeiro, tenha acusado de homicídio esse agente da PSP por considerar essa sua acção «desproporcionada e lesiva dos princípios fundamentais do Estado de Direito»;
– Uma outra operação da PSP também em Lisboa (19/12/2024), numa rua (Rua do Benformoso, zona do Martim Moniz) muito frequentada por imigrantes (sobretudo indianos e paquistaneses), na qual dezenas de pessoas foram obrigadas a durante cerca de uma hora ficarem imóveis, voltadas para uma parede e com as mãos apoiadas nesta, para serem revistadas. Este tipo de acção da PSP originou o protesto de muitas personalidades de diversas áreas políticas, culturais e sociais, uma queixa à provedora de Justiça e uma manifestação (sob o lema «Não nos encostem à parede»), com a participação de milhares de pessoas e apoio de várias organizações, inclusive da Igreja.
Destas situações, muito impulsionado pela referida «comunicação ao país» do PM e, depois, alimentado por alguns responsáveis políticos e autarcas (com destaque para o presidente da Câmara Municipal de Lisboa), emergiu um debate político-partidário e mediático a empolar a polémica da associação ou não entre a imigração e a «percepção» de aumento da insegurança, apesar de todos os dados de fonte idónea (inclusive da própria PSP) garantirem que não tem fundamento tal associação.
Mais, evidenciarem até esses dados que, bem pelo contrário, é nos concelhos onde há mais imigrantes que a criminalidade é mais reduzida e mesmo que, em geral, a criminalidade no país tem diminuído anualmente. Aliás, o próprio PM enfatizou que «Portugal é um dos países mais seguros do mundo».
«Emergiu um debate político-partidário e mediático a empolar a polémica da associação ou não entre a imigração e a "percepção" de aumento da insegurança, apesar de todos os dados de fonte idónea (inclusive da própria PSP) garantirem que não tem fundamento tal associação.»
De qualquer modo, mantém-se esse debate público centrado nalguns temas mais específicos que é de admitir merecerem (até por prevenção de eventual desinformação que a seu pretexto se vise explorar negativamente do ponto de vista social) uma reflexão social, institucional e política sustentada e consequente para o efectivo interesse público: a realidade ou a mera «percepção» de insegurança, a associação da criminalidade à imigração, a política de imigração e as condições de trabalho e de vida dos imigrantes, a instrumentalização governamental das forças de segurança, a natureza da acção policial.
Este texto incide sobretudo sobre este último assunto e, sob uma perspectiva das forças de segurança (designadamente, a PSP) no plano institucional/organizacional e profissional como autoridades públicas, nas consequências sociais mais gerais das suas referências institucionais e da natureza da sua acção organizacional e profissional.
Com a dignidade e responsabilidade constitucional e estatutária de a sua acção «ser subordinada ao interesse público, à defesa da legalidade democrática e garantia da segurança interna e dos direitos fundamentais dos cidadãos», tal como a de outros serviços da Administração Pública, a função da polícia como serviço público é imprescindível em/para a democracia.
De facto, a instituição, investimento e exercício (organizacional e profissional) de poderes de autoridade pública (policial ou administrativa) legalmente previstos na (para a) missão de serviços públicos com atribuições em diversos domínios sociais (Justiça, Segurança Pública, Protecção Civil, Fisco, Condições de Trabalho, Segurança Alimentar e Económica e outros), é condição e instrumento de, e para, serem prosseguidos e concretizados os objectivos de interesse público nesses domínios.
Daí que tal condição de autoridade pública é, ao nível organizacional e profissional, também um dever (um poder-dever), sendo, como é, um meio de prestar um serviço (público) aos Outros.
Assim, a natureza, forma, dimensão e resultado do exercício desse poder, não só não pode alhear-se das referências e objectivos da missão do serviço público que o enquadra, como deve ter sempre que evidenciar, para além da legalidade decorrente do quadro normativo aplicável, a proporcionalidade com a natureza e dimensão do risco para os direitos individuais e sociais a, na circunstância, salvaguardar.
Os erros ou falhas no exercício dos poderes de autoridade pública sob este pressuposto suscitam o risco de o seu resultado como serviço público degenerar: em laxismo, por defeito no exercício desses poderes, não sendo bem protegidos os direitos individuais e sociais em causa; em autoritarismo, por excesso, desproporção, no exercício desse poder quanto ao seu objecto e objectivo de serviço público e, assim, com o resultado a degenerar de serviço aos Outros para poder sobre os Outros.
«Assim, a natureza, forma, dimensão e resultado do exercício desse poder, não só não pode alhear-se das referências e objectivos da missão do serviço público que o enquadra, como deve ter sempre que evidenciar, para além da legalidade decorrente do quadro normativo aplicável, a proporcionalidade com a natureza e dimensão do risco para os direitos individuais e sociais a, na circunstância, salvaguardar.»
É certo que certas situações de aparente laxismo ou autoritarismo no exercício de poderes de autoridade pública podem ter, mais do que uma explicação profissional ou mesmo meramente individual, uma razão mais de ordem institucional/organizacional, por exemplo, a formação, organização do trabalho e condições em que é realizado, os meios, a própria direcção/gestão que a instituição garante aos trabalhadores (agentes) que, no terreno, exercem esse poder-dever de autoridade pública.1
Ou, mesmo, serem influenciadas por condicionalismos contextuais de natureza económica, social ou política.
De qualquer modo, está sempre em causa nessas situações o exercício de uma profissão e, em princípio, há sempre, para o bem e para o mal, uma íntima relação entre as condições do exercício dessa profissão no quadro da organização/instituição em que se insere e a natureza, qualidade, modo e sobretudo o resultado do seu trabalho perante os respectivos destinatários – os cidadãos, a sociedade em geral.
Se tal relação for desproporcional (por defeito ou por excesso, por laxismo ou por autoritarismo), há o risco desse exercício profissional não só se esvaziar dos resultados de serviço público visados como, eventualmente, poder mesmo ser quanto a estes contraproducente. Por exemplo, no caso da acção da polícia em matéria de prevenção da insegurança, poder acabar por, de facto, gerar mais sentimento («percepção») de insegurança do que de segurança.
É portanto esse resultado como efectivo serviço público que, em última análise, determina o maior ou menor apoio, a maior ou menor crítica dessa profissão, com óbvias repercussões na instituição/organização que a enquadra.
E daí, grave, o risco de a própria profissão e respectiva instituição (seja ela qual for) perder algo do que também (lhe) é uma condição e instrumento determinante da qualidade, eficiência e eficácia da sua acção: a credibilidade pública, o suporte social.
- 1. É significativo que o sindicato que na PSP representa mais trabalhadores com funções policiais, a Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (ASPP/PSP), na voz do seu presidente da direcção, tenha publicamente assumido «reservas» relativamente à gestão da operação policial em 19/12/2024 no Martim Moniz (Lusa – Diário de Notícias, 24/12/2024).
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui